Em Cuba, não se discute o retorno ao capitalismo

20/02/2008
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Em entrevista ao Brasil de Fato, o historiador cubano Ariel Dacal relata que os setores pró-capitalistas estão enfraquecidos na sociedade e que critica aqueles que prevêem a adoção do modelo chinês por Cuba: "A criação social anticapitalista tem muitas outras opções e caminhos", afirma.

"Ilha de Fidel Castro". "Ditador insaciável". "Megalomaníaco". Essas são algumas das expressões usadas e repetidas pelos meios de comunicação conservadores para tratar, "imparcialmente", a decisão do presidente cubano, Fidel Castro, de rejeitar uma indicação à reeleição pelo Parlamento, no domingo (24).

Enquanto o Jornal da Globo “lembrava” que os militares se sentiam ameaçados pela influência de Fidel e essa foi uma das justificativas para o golpe de 1964, a notícia de sua renúncia provocou comoção em Cuba. Em entrevista ao Brasil de Fato, o historiador cubano Ariel Dacal, morador de Havana, comenta que nesses momentos tende-se até a exagerar os feitos de Fidel. Mas não hesita em dizer: “É certo que o sistema cubano se personalizou muito em sua figura, mas isso – desde um ponto de vista histórico – está muito distante da noção de ditadura não só do povo cubano, mas também dos povos da América”.

Ariel acompanha e participa do processo de discussões abertos pelo próprio governo em julho de 2007 para a população apontar e propor soluções a seus problemas cotidianos. Para ele, um aspecto positivo foi justamente o enfraquecimento de um discurso capitalista. “Apagou-se o discurso pró-capitalista que, durante algum tempo, parecia a única possibilidade de visão oposta”, avalia.

Mas ao contrário do que ocorre nos bairros cubanos, a voz que prevalece na mídia corporativa é a de que, em Cuba, o povo quer o fim do socialismo e Raúl Castro trabalhará por um modelo econômico próximo ao chinês. Dacal comenta: “O problema dos que promovem essa visão, fora do Brasil ou em outros lugares, é a limitação em entender ou compreender que a criação social anticapitalista tem muitas outras opções e caminhos que vão além do modelo chinês”. Leia a íntegra da entrevista abaixo.

Brasil de Fato - Como a população cubana reagiu ao anúncio de Fidel Castro?

Ariel Dacal – Em sua mensagem, Fidel comentou que já em cartas anteriores havia anunciado a possibilidade de que não se reelegeria (leia a carta). Sabia que era necessário preparar o povo psicologicamente. E agiu corretamente. O impacto entre os cubanos foi emotivo. As pessoas, o povo em geral, sentiram as notícias. Mas ao mesmo tempo se esperava, era uma das alternativas já em vista para a maioria dos cubanos e cubanas e seria o mais positivo dado o estado de saúde de Fidel. É quase um consenso entre o povo aceitar que foi uma saída “elegante”, muito bem decidida e que apenas exalta a estatura moral e história de Fidel. Em momentos como este, no qual a emoção pesa mais que a racionalidade, faz-se uma leitura muito positiva da obra de toda vida de Fidel.

A mídia corporativa explorou expressões como "mão dura", "ilha de Fidel Castro", "ditador que quase provocou a terceira guerra mundial... O povo cubano vê em Fidel um ditador?

Não creio que o povo o veja como um ditador. Tudo depende do significado de quem tem as palavras e para quem as usa. Para o povo cubano, desde a consciência cotidiana, os ditadores são assassinos que instalam regimes de terror onde milhares de pessoas perdem a vida. Recorde-se que foi precisamente a Revolução Cubana que derrotou um regime ditatorial que tinha essas características, um dos primeiros ensaios do imperialismo yanqui que depois se expandiu por todo o continente. A obra encabeçada por Fidel é o contrário disso. Deu educação, saúde, elevou o orgulho nacional onde nunca esteve antes, foi uma referência de soberania e respeito à vida humana. É certo que o sistema cubano se personalizou muito em sua figura, mas isso – desde um ponto de vista histórico – está muito distante da noção de ditadura não só do povo cubano, como também dos povos da América.

A mídia também tem divulgado que Raúl Castro seria mais inclinado a promover transformações em Cuba sob inspiração dos modelos de China e do Vietnam...

Essa idéia está dentro da ampla margem de possibilidades de mudança em Cuba. Mas na realidade não há sinais de que estamos seguindo nessas direção ou em outra, neste momento. O problema dos que promovem essa visão, fora do Brasil ou em outros lugares, é a limitação em entender ou compreender que a criação social anticapitalista tem muitas outras opções e caminhos que vão além do modelo chinês que, diga-se de passagem, não tem nada de anticapitalista. Ignoram que a criação humana coletiva tem muito mais possibilidades do que as leituras positivistas e se reduzem a elas.

Devemos esperar algum tipo de mudança de Cuba com relação à política externa ou seria ainda prematuro fazer qualquer avaliação de como seria o novo governo?

O primeiro é ver a composição do novo governo e as medidas que vão tomar. Depois, é analisar sobre a marcha dos acontecimentos.

Qual o significado prático da renúncia de Fidel à reeleição?

O significado prático é que o governo de fato de Raúl Castro passará a ser governo de jure (pela lei). Ou seja, o que na prática já acontecia desde a enfermidade de Fidel no verão de 2006 agora é um fato consumado em sua totalidade legal com a renúncia anunciada ontem. Na realidade, abriu-se uma variável importante na complexa situação cubana. Mas em última instância creio que os impactos institucionais verdadeiros estão por chegar. O que é fato, do ponto de vista prático, é uma mudança de referência psicológica, moral, constituída por Fidel durante cinco décadas. O interessante é o efeito sociológico da renúncia o qual deve-se esperar um tempo mais longo para avaliar em sua dimensão real.

Mas dentro desse efeito sociológico pode estar incluído o fortalecimento da oposição anti-socialista?

Não creio que seja assim. Nesses momentos muitas são as forças que, com mair ou menor estímulo, apresentam-se na cena nacional. No entanto, repito que mais que a renúncia de Fidel, a questão é ver que tipo de mudanças vão ser decididas e o curso que vão tomar a depender das forças, tendências e visões que as conduzirão. Certamente, para pessoas iludidas, que reduzem o sistema cubano à figura de Fidel, a renúncia pode ser significativa. Mas não entendem que a rede institucional cubana e as demandas atuais são muito mais complexas do que essa suposta subordinação total à figura de Fidel. E claro que ele renunciou, mas não morreu. E sempre será uma referência moral, de importância e um mediador a partir de suas opiniões. Ele se manterá escrevendo suas reflexões o que lhe permitirá uma presença constante na cena.

Desde julho de 2007, Raúl Castro incentivou um debate nacional sobre os problemas dos cubanos. Existe vontade popular de retorno ao capitalismo?

Em Cuba, não se discute o retorno ao capitalismo. Na realidade, o processo de discussão em que o país está metido mostra um apoio ao socialismo. Uma das características mais interessantes de todos esses meses, quase um ano, de debates de idéias, é justamente que se apagou o discurso pró-capitalista que, durante algum tempo, parecia a única possibilidade de visão oposta. Claro, outra coisa seria discutir “de que socialismo estamos falando”, ou seja, a qualidade desse socialismo que, em algumas ocasiões – e não com más intenções –, reproduz imaginários e projeções nominalmente socialistas, mas muito contraditórias e que carregavam consigo a orelha peluda do liberalismo.

Os cubanos temem uma intervenção externa dos EUA neste momento de transição?

Com que condições reais conta o governo de Bush para cumprir esse plano? Não se deve subestimar o que pode fazer um império na decadência, mas creio que não dará um passo além da retórica. O governo Bush chegou ao extremo de seu cerco contra Cuba. A única opção que resta a ele é a agressão, mas não tem condições para se meter nessa investida. Além disso, o Pentágono sabe muito bem das condições defensivas de Cuba e a CIA (agência de inteligência dos EUA) tem conhecimento que este tipo de ação está longe de separar um povo; pelo contrário, pode uni-lo de forma contundente.

Já é possível notar nos meios de comunicação conservadores uma ostentiva campanha contrária a Fidel Castro e ao regime socialista, O que os cubanos esperam, agora, da solidariedade internacional?

Apoio, compreensão e vigilância constante para desmentir as campanhas difamatórias e evitar a coordenação de agressões de qualquer tipo contra Cuba. E o mais importante é que se compreenda e se conscientize que o povo cubano carrega sobre seus ombros uma enorme responsabilidade prática e moral com a luta de todos os povos oprimidos. A luta de Cuba é a luta de todos os oprimidos.

Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/fr/node/125819
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