A vitória sobre o anjo
21/05/2008
- Opinión
Sei o que experimentou Jacó ao duelar com o anjo. Enfrentei-o quando aos meus pés faltou chão e, no horizonte, o sol se apagou aos meus olhos. A escuridão invadiu-me: primeiro engoliu as pernas; em seguida, os braços; depois, todo o meu ser. Por fim, dragão insaciável, tragou-me a identidade.
Mergulhado na noite, partido, perdido, exilei-me em dúvidas. No início, senti-me sugado pelo abismo. Tudo em volta se me evaporou. Fiquei às tontas, em queda livre num poço sem fundo. Todas as minhas certezas se volatilizaram, meu mapa converteu a geografia num hermético labirinto, minhas crenças professaram a negação de toda fé. Cego, viajei numa espiral alucinada, acorrentado à desrazão da insensatez. Sufocava-me o afluxo da vida em despropósito. Náufrago num oceano vazio de águas e limites, ocupei o lugar de Jonas no ventre da baleia.
Não há sofrimento maior do que perder-se de si torturado pelo esplendor da lucidez. Quem me dera, naquela noite escura, fosse eu tomado pela sadia loucura dos atropelos irreversíveis da mente. Quisera, qual demente, estar fora de mim sem a consciência do banimento ontológico. E apoiar-me em qualquer uma das referências que, até então, haviam servido de marco em minha estrada de vida: um sonho, um encantamento, uma idéia compulsiva, um desejo irrefreável, uma crença em forma de sacrário. Ao menos um ruído, como o apito do trem que cortava a minha cidade e, agora, ainda atravessa-me a nostalgia do coração. Ou o cheiro morno do pão de queijo trazido do forno à mesa, a suave elasticidade do polvilho, o aroma adocicado e quente do café.
Nada disso me consolava. Havia apenas o vazio, o vazio, o vazio. O caos primordial, antes que Javé despertasse de seu sono eterno e, distraído, tropeçasse na idéia de criar o mundo.
Deu-se então o início do meu aprendizado. Primeiro, a consciência de que era preciso fazer a travessia. Às cegas. Jogar-me no rio sem a menor noção de quão distante se encontrava a margem oposta. Caminhar rumo ao plexo solar. Desatar os nós. Mergulhar naquele abismo infindável, atirar-me do trapézio com os olhos vendados, empreender a ousada viagem no rumo da morte, apoiado apenas por um fio de esperança: do lado de lá me aguardava, não a morte, e sim a plenitude da vida.
Caminhei na senda escura entre escorpiões e escaravelhos, aranhas e lagartos, a mente assaltada por fantasmas que, nela, suscitavam desde as mais pavorosas fantasias ao hedonismo desenfreado. Desprendida da alma, a imaginação se ensoberbece e cavalga, alada, o carrossel da luxúria. A razão desalinha, as idéias esvoaçam, os propósitos atolam-se na lassidão do espírito fenecido.
É preciso pôr-se de joelhos e, reverente, escutar o silêncio. Como Elias, não aguardar o trovão, o rugir dos ventos, a voracidade flamejante do fogo. Apenas a brisa suave, assim como o navegador, finda a borrasca, recebe contente a chegada da calmaria. Mas isso custa. Isso é inesperado, indescritível, mistérios dos mistérios. Para chegar lá, urge amansar leões, enfrentar dragões, conviver, destemido, no ninho das serpentes. E saber perder. Vão-se as ilusões, as máscaras; vai-se aquele outro que insiste em se disfarçar de eu. No fogo tímido da lenha úmida, todas as falsas verdades são lentamente queimadas. Então, instaura-se a nudez. É a hora da vertigem.
No duelo com o anjo, apenas na hora da vertigem me dei conta de que não brotava de minhas forças o ímpeto que me fazia atingir a terceira margem do rio. Alguém soprava o vento que inflava as velas de meu barco. Alguém movia as águas. Essa consciência de que uma estranha energia me impelia sem que eu pudesse identificá-la, tornou-se progressivamente aguda. Sim, minha vontade havia dado o primeiro passo; minha razão denunciara, insistente, a insensatez da travessia; meus atavismos resistiram a abandonar a margem de origem.
Havia, porém, um outro fator que só percebi ao perder de vista a margem que deixara sem, no entanto, vislumbrar a oposta. A queda transmutou-se em ascensão; o abismo, em montanha; a vertigem, em enstase.
O anjo depôs armas, afastou-se da porta do Éden e deixou que Ele se me apossasse. Fiquei visceralmente apaixonado. Tudo em mim e à minha volta transluzia amor. E nada me atraía mais fortemente do que perder tempo na alcova. Outra coisa eu não pensava nem queria ou desejava do que sentir-me abrasado de amor. As entranhas queimavam; o peito ardia em febre; a mente, calada, observava a razão tragada pela inteligência. Eu me encontrava em alguém fora de mim que, no entanto, se escondia no recanto mais íntimo do meu ser e, de lá, projetava a sua luz sem se deixar ver ou tocar.
- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
A reprodução só pode ser feita mediante autorização por escrito de Frei Betto.
Mergulhado na noite, partido, perdido, exilei-me em dúvidas. No início, senti-me sugado pelo abismo. Tudo em volta se me evaporou. Fiquei às tontas, em queda livre num poço sem fundo. Todas as minhas certezas se volatilizaram, meu mapa converteu a geografia num hermético labirinto, minhas crenças professaram a negação de toda fé. Cego, viajei numa espiral alucinada, acorrentado à desrazão da insensatez. Sufocava-me o afluxo da vida em despropósito. Náufrago num oceano vazio de águas e limites, ocupei o lugar de Jonas no ventre da baleia.
Não há sofrimento maior do que perder-se de si torturado pelo esplendor da lucidez. Quem me dera, naquela noite escura, fosse eu tomado pela sadia loucura dos atropelos irreversíveis da mente. Quisera, qual demente, estar fora de mim sem a consciência do banimento ontológico. E apoiar-me em qualquer uma das referências que, até então, haviam servido de marco em minha estrada de vida: um sonho, um encantamento, uma idéia compulsiva, um desejo irrefreável, uma crença em forma de sacrário. Ao menos um ruído, como o apito do trem que cortava a minha cidade e, agora, ainda atravessa-me a nostalgia do coração. Ou o cheiro morno do pão de queijo trazido do forno à mesa, a suave elasticidade do polvilho, o aroma adocicado e quente do café.
Nada disso me consolava. Havia apenas o vazio, o vazio, o vazio. O caos primordial, antes que Javé despertasse de seu sono eterno e, distraído, tropeçasse na idéia de criar o mundo.
Deu-se então o início do meu aprendizado. Primeiro, a consciência de que era preciso fazer a travessia. Às cegas. Jogar-me no rio sem a menor noção de quão distante se encontrava a margem oposta. Caminhar rumo ao plexo solar. Desatar os nós. Mergulhar naquele abismo infindável, atirar-me do trapézio com os olhos vendados, empreender a ousada viagem no rumo da morte, apoiado apenas por um fio de esperança: do lado de lá me aguardava, não a morte, e sim a plenitude da vida.
Caminhei na senda escura entre escorpiões e escaravelhos, aranhas e lagartos, a mente assaltada por fantasmas que, nela, suscitavam desde as mais pavorosas fantasias ao hedonismo desenfreado. Desprendida da alma, a imaginação se ensoberbece e cavalga, alada, o carrossel da luxúria. A razão desalinha, as idéias esvoaçam, os propósitos atolam-se na lassidão do espírito fenecido.
É preciso pôr-se de joelhos e, reverente, escutar o silêncio. Como Elias, não aguardar o trovão, o rugir dos ventos, a voracidade flamejante do fogo. Apenas a brisa suave, assim como o navegador, finda a borrasca, recebe contente a chegada da calmaria. Mas isso custa. Isso é inesperado, indescritível, mistérios dos mistérios. Para chegar lá, urge amansar leões, enfrentar dragões, conviver, destemido, no ninho das serpentes. E saber perder. Vão-se as ilusões, as máscaras; vai-se aquele outro que insiste em se disfarçar de eu. No fogo tímido da lenha úmida, todas as falsas verdades são lentamente queimadas. Então, instaura-se a nudez. É a hora da vertigem.
No duelo com o anjo, apenas na hora da vertigem me dei conta de que não brotava de minhas forças o ímpeto que me fazia atingir a terceira margem do rio. Alguém soprava o vento que inflava as velas de meu barco. Alguém movia as águas. Essa consciência de que uma estranha energia me impelia sem que eu pudesse identificá-la, tornou-se progressivamente aguda. Sim, minha vontade havia dado o primeiro passo; minha razão denunciara, insistente, a insensatez da travessia; meus atavismos resistiram a abandonar a margem de origem.
Havia, porém, um outro fator que só percebi ao perder de vista a margem que deixara sem, no entanto, vislumbrar a oposta. A queda transmutou-se em ascensão; o abismo, em montanha; a vertigem, em enstase.
O anjo depôs armas, afastou-se da porta do Éden e deixou que Ele se me apossasse. Fiquei visceralmente apaixonado. Tudo em mim e à minha volta transluzia amor. E nada me atraía mais fortemente do que perder tempo na alcova. Outra coisa eu não pensava nem queria ou desejava do que sentir-me abrasado de amor. As entranhas queimavam; o peito ardia em febre; a mente, calada, observava a razão tragada pela inteligência. Eu me encontrava em alguém fora de mim que, no entanto, se escondia no recanto mais íntimo do meu ser e, de lá, projetava a sua luz sem se deixar ver ou tocar.
- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
A reprodução só pode ser feita mediante autorização por escrito de Frei Betto.
https://www.alainet.org/fr/node/127664
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020