É preciso parar a Rodada de Doha da OMC
23/06/2008
- Opinión
Apesar de sucessivos fracassos, alguns governos, especialmente o do Brasil, continuam insistindo em concluir as negociações da Rodada de Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), e pretendem, até o final de junho, fechar acordos que incidirão sobre o destino das perspectivas de desenvolvimento de todos os países. Desde a sua criação, em 1995, o objetivo da OMC é a crescente liberalização do comércio agrícola, de serviços, de investimentos, beneficiando assim as grandes corporações que visam expandir seus lucros no mundo, e para isso precisam de um ambiente livre de regulações, de leis nacionais e de políticas públicas.
Neste momento, as negociações estão pautadas em barganhas entre agricultura e indústria. De um lado, observa-se a pressão da Europa e dos Estados Unidos para que os países do Sul abram ainda mais seus mercados à importação de produtos industrializados, através de uma drástica redução de tarifas que, na prática, inviabilizaria a adoção de políticas industriais e eliminaria a possibilidade de manutenção de tarifas externas comuns em blocos regionais como o Mercosul. De outro lado, há a demanda de países exportadores agrícolas, liderados pelo Brasil, pela ampliação do acesso ao mercado da Europa e Estados Unidos para suas exportações. Ao buscar a crescente liberalização do comércio agrícola internacional, as negociações tendem a expor a produção familiar e camponesa – responsável, no caso brasileiro, por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país – a uma concorrência desigual com as transnacionais de alimentos e com o grande agronegócio exportador.
Nas negociações em curso sobre agricultura, não tem ocorrido nenhum movimento significativo por parte da Europa e dos Estados Unidos, no sentido de reduzirem os subsídios domésticos que tanto distorcem o comércio agrícola internacional e desestimulam a produção nos países do Sul. O caso do milho no México é emblemático, de como o chamado livre comércio pode destruir uma produção alimentar tão fundamental para um país. A nação que domesticou o milho sempre teve uma grande diversidade de sementes que abastecia uma vasta produção doméstica, que era a base alimentar dos mexicanos. Com a entrada em vigor do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre Estados Unidos, México e Canadá (NAFTA ), a produção de milho altamente subsidiada dos Estados Unidos e concentrada em grandes produtores passou a inundar o mercado mexicano, tornando inviável aos produtores domésticos seguir competindo, e jogando milhões de famílias de camponeses mexicanos na miséria.
Este modelo de liberalização e desregulamentação defendido pela OMC tem tudo a ver com a atual crise global de alimentos, que só poderá ser enfrentada se os países tiverem espaço para formular e aplicar políticas públicas voltadas à garantia da segurança e soberania alimentar, apoiando a produção familiar e camponesa destinada a abastecer o mercado doméstico de alimentos. Infelizmente o governo brasileiro, ao priorizar os interesses do agronegócio exportador nas negociações, coloca em plano secundário a defesa dos interesses da agricultura familiar e camponesa.
As negociações da Rodada de Doha estimulam o aprofundamento de um modelo baseado na exportação de produtos agrícolas primários, de baixo valor agregado, que exigem o uso intensivo de energia, água e insumos químicos na sua produção, e de vastas extensões de terras para a pecuária e os monocultivos, que aumentam a concentração fundiária, os desmatamentos e empobrecem a biodiversidade. A pauta de exportações brasileira é concentrada em produtos como carne bovina, soja, cana-de-açúcar, celulose, cujos impactos sócio-ambientais são negativos. A recente corrida para a produção de agrocombustíveis, e o interesse do governo brasileiro em liderar esta corrida, especialmente a do etanol a partir da cana-de-açúcar, pode aprofundar ainda mais estes problemas, expandindo os monocultivos em larga escala, deslocando outras produções para áreas ecologicamente importantes, desestimulando a produção de alimentos e favorecendo a exploração degradante das condições de trabalho no setor sucroalcooleiro.
Além da liberalização do comércio agrícola, as negociações também estão concentradas no tamanho do corte das tarifas de importação de produtos industriais. Os países do Norte passaram muitos anos adotando tarifas altas para estimular o desenvolvimento industrial e, agora que alcançaram um alto nível de desenvolvimento tecnológico e dominam os mercados mundiais, estes países pressionam a OMC para que os países do Sul não tenham o mesmo direito. Ainda que as propostas em negociação suponham que Europa e Estados Unidos façam algum corte em suas tarifas, as demandas de redução tarifária para os países do Sul são proporcionalmente muito mais drásticas.
Se a Rodada de Doha for concluída, haverá grandes prejuízos para os setores sociais e produtivos mais vulneráveis. Os desequilíbrios e assimetrias resultantes deste acordo levariam o Brasil e muitos outros países do Sul à desindustrialização, a uma ainda maior falta de segurança e soberania alimentar, ao avanço dos monocultivos voltados à exportação, a um aprofundamento da privatização de serviços, à perda de empregos e limitações para o atendimento na prestação de serviços à população.
Um outro mundo é possível
A OMC foi criada num período – os anos de 1990 – em que as teses do neoliberalismo eram hegemônicas no debate econômico e político. O Consenso de Washington pregava a máxima abertura comercial, ampla desregulamentação financeira e redução do papel do Estado. Hoje os termos do debate mudaram. Especialmente na América do Sul, estas políticas promoveram aprofundamento da pobreza e desigualdades, e logo a resistência começou a emergir. Assim, nasceram a Aliança Social Continental, a Campanha Contra a Alca, o Fórum Social Mundial, as estratégias de descarrilhamento de reuniões ministeriais da OMC, e a eleição de um ciclo de novos governos identificados com as demandas populares, por mudanças de paradigmas e pelo distanciamento das teses neoliberais. A conclusão da Rodada de Doha significaria um grande retrocesso em relação às conquistas obtidas nestas lutas de resistência. Significaria um distanciamento do Brasil da construção de alianças estratégicas com países como Argentina e Índia, que têm tentado resistir no processo negociador da OMC. Também significaria um bloqueio ao processo de integração regional em curso, pois este requer preferências e prioridades para o desenvolvimento para dentro de nossa região, ao invés de destinarmos nossas estruturas produtivas à exportação para os países do Norte. Por estes motivos, é preciso que a sociedade brasileira discuta e resista à conclusão destas negociações.
- Fátima Mello é da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
Jornal Brasil de Fato - Edição 277 – De 19 a 25 de junho
Neste momento, as negociações estão pautadas em barganhas entre agricultura e indústria. De um lado, observa-se a pressão da Europa e dos Estados Unidos para que os países do Sul abram ainda mais seus mercados à importação de produtos industrializados, através de uma drástica redução de tarifas que, na prática, inviabilizaria a adoção de políticas industriais e eliminaria a possibilidade de manutenção de tarifas externas comuns em blocos regionais como o Mercosul. De outro lado, há a demanda de países exportadores agrícolas, liderados pelo Brasil, pela ampliação do acesso ao mercado da Europa e Estados Unidos para suas exportações. Ao buscar a crescente liberalização do comércio agrícola internacional, as negociações tendem a expor a produção familiar e camponesa – responsável, no caso brasileiro, por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país – a uma concorrência desigual com as transnacionais de alimentos e com o grande agronegócio exportador.
Nas negociações em curso sobre agricultura, não tem ocorrido nenhum movimento significativo por parte da Europa e dos Estados Unidos, no sentido de reduzirem os subsídios domésticos que tanto distorcem o comércio agrícola internacional e desestimulam a produção nos países do Sul. O caso do milho no México é emblemático, de como o chamado livre comércio pode destruir uma produção alimentar tão fundamental para um país. A nação que domesticou o milho sempre teve uma grande diversidade de sementes que abastecia uma vasta produção doméstica, que era a base alimentar dos mexicanos. Com a entrada em vigor do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre Estados Unidos, México e Canadá (NAFTA ), a produção de milho altamente subsidiada dos Estados Unidos e concentrada em grandes produtores passou a inundar o mercado mexicano, tornando inviável aos produtores domésticos seguir competindo, e jogando milhões de famílias de camponeses mexicanos na miséria.
Este modelo de liberalização e desregulamentação defendido pela OMC tem tudo a ver com a atual crise global de alimentos, que só poderá ser enfrentada se os países tiverem espaço para formular e aplicar políticas públicas voltadas à garantia da segurança e soberania alimentar, apoiando a produção familiar e camponesa destinada a abastecer o mercado doméstico de alimentos. Infelizmente o governo brasileiro, ao priorizar os interesses do agronegócio exportador nas negociações, coloca em plano secundário a defesa dos interesses da agricultura familiar e camponesa.
As negociações da Rodada de Doha estimulam o aprofundamento de um modelo baseado na exportação de produtos agrícolas primários, de baixo valor agregado, que exigem o uso intensivo de energia, água e insumos químicos na sua produção, e de vastas extensões de terras para a pecuária e os monocultivos, que aumentam a concentração fundiária, os desmatamentos e empobrecem a biodiversidade. A pauta de exportações brasileira é concentrada em produtos como carne bovina, soja, cana-de-açúcar, celulose, cujos impactos sócio-ambientais são negativos. A recente corrida para a produção de agrocombustíveis, e o interesse do governo brasileiro em liderar esta corrida, especialmente a do etanol a partir da cana-de-açúcar, pode aprofundar ainda mais estes problemas, expandindo os monocultivos em larga escala, deslocando outras produções para áreas ecologicamente importantes, desestimulando a produção de alimentos e favorecendo a exploração degradante das condições de trabalho no setor sucroalcooleiro.
Além da liberalização do comércio agrícola, as negociações também estão concentradas no tamanho do corte das tarifas de importação de produtos industriais. Os países do Norte passaram muitos anos adotando tarifas altas para estimular o desenvolvimento industrial e, agora que alcançaram um alto nível de desenvolvimento tecnológico e dominam os mercados mundiais, estes países pressionam a OMC para que os países do Sul não tenham o mesmo direito. Ainda que as propostas em negociação suponham que Europa e Estados Unidos façam algum corte em suas tarifas, as demandas de redução tarifária para os países do Sul são proporcionalmente muito mais drásticas.
Se a Rodada de Doha for concluída, haverá grandes prejuízos para os setores sociais e produtivos mais vulneráveis. Os desequilíbrios e assimetrias resultantes deste acordo levariam o Brasil e muitos outros países do Sul à desindustrialização, a uma ainda maior falta de segurança e soberania alimentar, ao avanço dos monocultivos voltados à exportação, a um aprofundamento da privatização de serviços, à perda de empregos e limitações para o atendimento na prestação de serviços à população.
Um outro mundo é possível
A OMC foi criada num período – os anos de 1990 – em que as teses do neoliberalismo eram hegemônicas no debate econômico e político. O Consenso de Washington pregava a máxima abertura comercial, ampla desregulamentação financeira e redução do papel do Estado. Hoje os termos do debate mudaram. Especialmente na América do Sul, estas políticas promoveram aprofundamento da pobreza e desigualdades, e logo a resistência começou a emergir. Assim, nasceram a Aliança Social Continental, a Campanha Contra a Alca, o Fórum Social Mundial, as estratégias de descarrilhamento de reuniões ministeriais da OMC, e a eleição de um ciclo de novos governos identificados com as demandas populares, por mudanças de paradigmas e pelo distanciamento das teses neoliberais. A conclusão da Rodada de Doha significaria um grande retrocesso em relação às conquistas obtidas nestas lutas de resistência. Significaria um distanciamento do Brasil da construção de alianças estratégicas com países como Argentina e Índia, que têm tentado resistir no processo negociador da OMC. Também significaria um bloqueio ao processo de integração regional em curso, pois este requer preferências e prioridades para o desenvolvimento para dentro de nossa região, ao invés de destinarmos nossas estruturas produtivas à exportação para os países do Norte. Por estes motivos, é preciso que a sociedade brasileira discuta e resista à conclusão destas negociações.
- Fátima Mello é da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
Jornal Brasil de Fato - Edição 277 – De 19 a 25 de junho
https://www.alainet.org/fr/node/128331