Espanha, outono “caliente”

28/11/2008
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 Madri está excepcionalmente  quente para esta época do ano. Todos atribuem às mudanças climáticas. A crise  financeira encolhe o movimento nas lojas. Há menos gente nos restaurantes,  queixa-se o garçom do El Senador, onde se saboreia uma impecável perna  de cordeiro assada.

 

 No Congresso, debate-se o alcance da crise.  As ações do banco Santander descem a ladeira (baixa de 60,72% este ano). O  alarme soa em sua sede mundial, em Boadilla del Monte, na periferia de Madri,  construída em forma de disco voador. A recessão bate à porta e já leva às ruas  manifestações de trabalhadores da indústria automobilística. Protestam contra  os cortes anunciados.

 

 José Bono, presidente do Congresso e  membro da Opus Dei, propõe introduzir, na casa legislativa, a foto de madre  Maravilla de Jesus, carmelita canonizada por João Paulo II. A oposição  protesta em nome do caráter laico do Estado.

 

 Maravilla era  conservadora ao extremo. Ao retirar a proposta, Bono ofende a mãe de seus  colegas de partido que lhe recusaram apoio. O microfone aberto de um canal de  TV capta-lhe o palavrão. O político cora até a alma. A oposição lhe recomenda  umas tantas Ave-Marias em penitência...

 

 A segurança espanhola  comemora: capturado Txeroki, o chefe militar da ETA, próximo ao santuário de  Lourdes, na França. Tudo indica que a organização separatista basca se reduz,  hoje, a um punhado de militantes desarticulados.

 

 Enquanto isso,  os eleitores do socialista Zapatero reagem indignados frente ao seu recuo  quanto à apuração dos crimes da ditadura do general Franco (1936-1975). Em sua  primeira gestão, o primeiro-ministro deu início ao processo e aprovou a Lei de  Memória Histórica. Agora, prefere deixar o passado passar...

 

 O  juiz Baltazar Garzón, autor da denúncia dos crimes do regime franquista, se  sente desrespeitado. Porém, recebe o apoio de intelectuais indignados frente à  tentativa do governo de silenciá-lo. O manifesto é assinado também por José  Saramago e Ernesto Sábato. Em Granada, na noite de 20 de novembro, 33º  aniversário da morte do generalíssimo, estudantes ocupam as ruas e clamam por  justiça às vítimas. A polícia intervém.

 

 Entro no táxi no  aeroporto de Granada. O motorista torce para que as atrocidades franquistas  sejam investigadas. E que se abra a vala comum na qual supostamente se  encontram os restos mortais do mais famoso filho da cidade: Federico García  Lorca, assassinado, em 1936, pelos comparsas de Franco.

 

 O homem  se queixa: “Pouca gente nesta cidade se interessa por Lorca. Apanho  estrangeiros no aeroporto que, vindos até da Ásia, sabem mais sobre o poeta do  que nós que aqui vivemos”. Recordo Paulo Freire e dom Helder Camara, mais  conhecidos no exterior que no Brasil.

 

 Granada ferve, apesar do  frio. Muitos eventos mobilizam a cidade de meio milhão de habitantes: o  congresso mundial de filosofia debate o niilismo, que o filósofo italiano  Franco Volpi considera uma atitude positiva, de tolerância frente ao  pluralismo de idéias; os fabricantes de azeite analisam, acolitados por um  prêmio Nobel de medicina, as propriedades terapêuticas do extra-virgem,  antioxidante, capaz de reduzir o colesterol e evitar o câncer; o 7º congresso  internacional de teologia trinitária se ocupa de uma espiritualidade para esse  mundo marcado pela desigualdade.

 

 Falo sobre “uma espiritualidade  de rosto humano na periferia da vida”. Friso que Jesus nos ensina a encontrar  Deus na face dos pobres. E com eles se identifica: “tive fome e me deste de  comer”. Comparo as éticas de espiritualidade, a que enfatiza nossa condição de  pecadores, agravando-nos o sentimento de culpa neste “vale de lágrimas”, e a  que ressalta nossa condição de filhos e filhas de Deus, Pai/Mãe amoroso que  nos trata com misericórdia e compaixão, como Jesus a seus  contemporâneos.

 

 Las Gabias, próxima a Granada, é hoje uma cidade  “solar”: 8 mil moradias, 25 mil habitantes, recebem energia elétrica de uma  estação fotovoltaica que abriga 95 mil placas solares com potencial de 18  megabytes.

 

 O empreendimento, ao custo de cerca de R$ 400  milhões, evita a emissão, para a atmosfera, de 17.680 toneladas de CO2 –  volume que seria produzido se se utilizasse combustível fóssil. Uma iniciativa  desse porte exige, como suporte, a cultura de sustentabilidade.  

 

 Andaluzia já multiplicou por onze seu potencial de energia  solar, hoje calculado em 695 megabytes, aos quais se somarão, em 2010, mais  220. Desse total, 78,8 megabytes vêm das placas solares de Granada, que geram  eletricidade para 24 mil residências. Penso no Brasil: enquanto se louva o  pré-sal, se olvida o pós-sol, o potencial de fazer do nosso país uma imensa  Las Gabias.

 

 Para quem esteve na Espanha em outros tempos, chama a  atenção o clamoroso silêncio em relação a Ronaldo e Ronaldinho. Nem em lojas  de material esportivo se vêem suas fotos. Com o Real Madrid em crise, os  espanhóis se gabam das sucessivas vitórias de sua seleção. Até  quando?

 

 

- Frei Betto é escritor, autor de “A Menina e o  Elefante” (Mercuryo Jovem), entre outros livros.

https://www.alainet.org/fr/node/131118
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