Espanha, outono “caliente”
- Opinión
Madri está excepcionalmente quente para esta época do ano. Todos atribuem às mudanças climáticas. A crise financeira encolhe o movimento nas lojas. Há menos gente nos restaurantes, queixa-se o garçom do El Senador, onde se saboreia uma impecável perna de cordeiro assada.
No Congresso, debate-se o alcance da crise. As ações do banco Santander descem a ladeira (baixa de 60,72% este ano). O alarme soa em sua sede mundial, em Boadilla del Monte, na periferia de Madri, construída em forma de disco voador. A recessão bate à porta e já leva às ruas manifestações de trabalhadores da indústria automobilística. Protestam contra os cortes anunciados.
José Bono, presidente do Congresso e membro da Opus Dei, propõe introduzir, na casa legislativa, a foto de madre Maravilla de Jesus, carmelita canonizada por João Paulo II. A oposição protesta em nome do caráter laico do Estado.
Maravilla era conservadora ao extremo. Ao retirar a proposta, Bono ofende a mãe de seus colegas de partido que lhe recusaram apoio. O microfone aberto de um canal de TV capta-lhe o palavrão. O político cora até a alma. A oposição lhe recomenda umas tantas Ave-Marias em penitência...
A segurança espanhola comemora: capturado Txeroki, o chefe militar da ETA, próximo ao santuário de Lourdes, na França. Tudo indica que a organização separatista basca se reduz, hoje, a um punhado de militantes desarticulados.
Enquanto isso, os eleitores do socialista Zapatero reagem indignados frente ao seu recuo quanto à apuração dos crimes da ditadura do general Franco (1936-1975). Em sua primeira gestão, o primeiro-ministro deu início ao processo e aprovou a Lei de Memória Histórica. Agora, prefere deixar o passado passar...
O juiz Baltazar Garzón, autor da denúncia dos crimes do regime franquista, se sente desrespeitado. Porém, recebe o apoio de intelectuais indignados frente à tentativa do governo de silenciá-lo. O manifesto é assinado também por José Saramago e Ernesto Sábato. Em Granada, na noite de 20 de novembro, 33º aniversário da morte do generalíssimo, estudantes ocupam as ruas e clamam por justiça às vítimas. A polícia intervém.
Entro no táxi no aeroporto de Granada. O motorista torce para que as atrocidades franquistas sejam investigadas. E que se abra a vala comum na qual supostamente se encontram os restos mortais do mais famoso filho da cidade: Federico García Lorca, assassinado, em 1936, pelos comparsas de Franco.
O homem se queixa: “Pouca gente nesta cidade se interessa por Lorca. Apanho estrangeiros no aeroporto que, vindos até da Ásia, sabem mais sobre o poeta do que nós que aqui vivemos”. Recordo Paulo Freire e dom Helder Camara, mais conhecidos no exterior que no Brasil.
Granada ferve, apesar do frio. Muitos eventos mobilizam a cidade de meio milhão de habitantes: o congresso mundial de filosofia debate o niilismo, que o filósofo italiano Franco Volpi considera uma atitude positiva, de tolerância frente ao pluralismo de idéias; os fabricantes de azeite analisam, acolitados por um prêmio Nobel de medicina, as propriedades terapêuticas do extra-virgem, antioxidante, capaz de reduzir o colesterol e evitar o câncer; o 7º congresso internacional de teologia trinitária se ocupa de uma espiritualidade para esse mundo marcado pela desigualdade.
Falo sobre “uma espiritualidade de rosto humano na periferia da vida”. Friso que Jesus nos ensina a encontrar Deus na face dos pobres. E com eles se identifica: “tive fome e me deste de comer”. Comparo as éticas de espiritualidade, a que enfatiza nossa condição de pecadores, agravando-nos o sentimento de culpa neste “vale de lágrimas”, e a que ressalta nossa condição de filhos e filhas de Deus, Pai/Mãe amoroso que nos trata com misericórdia e compaixão, como Jesus a seus contemporâneos.
Las Gabias, próxima a Granada, é hoje uma cidade “solar”: 8 mil moradias, 25 mil habitantes, recebem energia elétrica de uma estação fotovoltaica que abriga 95 mil placas solares com potencial de 18 megabytes.
O empreendimento, ao custo de cerca de R$ 400 milhões, evita a emissão, para a atmosfera, de 17.680 toneladas de CO2 – volume que seria produzido se se utilizasse combustível fóssil. Uma iniciativa desse porte exige, como suporte, a cultura de sustentabilidade.
Andaluzia já multiplicou por onze seu potencial de energia solar, hoje calculado em 695 megabytes, aos quais se somarão, em 2010, mais 220. Desse total, 78,8 megabytes vêm das placas solares de Granada, que geram eletricidade para 24 mil residências. Penso no Brasil: enquanto se louva o pré-sal, se olvida o pós-sol, o potencial de fazer do nosso país uma imensa Las Gabias.
Para quem esteve na Espanha em outros tempos, chama a atenção o clamoroso silêncio em relação a Ronaldo e Ronaldinho. Nem em lojas de material esportivo se vêem suas fotos. Com o Real Madrid em crise, os espanhóis se gabam das sucessivas vitórias de sua seleção. Até quando?
- Frei Betto é escritor, autor de “A Menina e o Elefante” (Mercuryo Jovem), entre outros livros.
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