O Brasil e a crise mundial: impactos pesados, surpresas a analisar

31/05/2009
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Em cenário original até aqui, o governo realiza dois difíceis objetivos, ao transferir os custos para os trabalhadores (sem protestos nem desgaste) e atuando para conter os efeitos sobre o grande capital

 

O impacto da crise mundial sobre o Brasil foi muito forte e seus efeitos continuam se propagando. A brusca desaceleração da atividade produtiva gerou corte acentuado do emprego e da renda, em especial dos trabalhadores em situação mais precária. A queda da produção industrial no primeiro trimestre de 2009 ultrapassou as previsões mais pessimistas e confirmou a intensidade do choque sentido pela economia.

O forte impacto da crise, contudo, não gerou crise cambial, não provocou problemas relevantes nas finanças públicas e não abalou o sistema financeiro. Além disso, e também muito relevante, o governo conservou capacidade de reação, suficiente para adotar medidas como corte seletivo de impostos, programas de apoio e de estímulo à economia e até redução das taxas de juros. Para completar, a resistência dos trabalhadores é muito pequena e o governo conserva seu amplo leque de apoio, desde a direita até as centrais sindicais. Em suma: o custo da crise até aqui foi transferido para os trabalhadores e os pobres em geral, sem custo político para o governo, e, dentro do capital, o impacto maior caiu sobre o setor produtivo e não sobre os grandes bancos.

A percepção de que o governo mantém capacidade de iniciativa não quer dizer que a crise não seja grave e não quer dizer que o governo pode reverter seus efeitos com facilidade. O que se verifica até aqui é que o governo mantém capacidade de manobra: a crise não provocou uma desorganização da economia capaz de impedir que o governo tome iniciativas para atenuar seus efeitos e para transferir os custos para a população mais pobre. A originalidade do quadro atual aparece se for comparado com o que ocorreu com o Brasil e outros países da América Latina na crise do início dos anos 1980, que levou à crise da dívida externa e a quase dez anos de forte instabilidade econômica em nossos países.

Essas observações estão sendo escritas no começo de maio e nada assegura que o quadro não venha a se alterar, por fatores externos ou internos. Essa ressalva é indispensável, porque esta crise tem contornos muito originais, como em todos os processos de magnitude semelhante.

Dúvidas permanecem

As dúvidas sobre os desdobramentos da crise envolvem questões internacionais e questões internas. No plano externo, convém destacar três controvérsias: (i) se a crise é "apenas" financeira; (ii) se a posição singular dos EUA será afetada; (iii) se existem riscos de contração acentuada do comércio internacional.

Na primeira controvérsia, se a crise é predominantemente financeira, pode-se supor que a economia real poderá retomar o crescimento depois de saneados os circuitos financeiros, como os Estados dos países centrais estão fazendo. É claro que a crise resulta da reversão de uma expansão de crédito insustentável, mas essa expansão impulsionou o forte crescimento da economia mundial nesses anos, e no centro desse crescimento esteve a posição fortemente deficitária dos EUA. A capacidade da economia norte-americana de gerar déficits comerciais gigantescos ampliou as exportações do mundo e puxou o crescimento mundial. Passada a fase mais aguda da crise, não está claro se será possível voltar ao arranjo anterior. A adaptação forçada à queda da demanda por importações e os déficits comerciais dos EUA pode se revelar muito difícil para diversos países. Até agora, a sustentação do crescimento econômico da China manteve a demanda por produtos primários, o que beneficia o Brasil e outros exportadores de commodities.

A segunda controvérsia diz respeito à manutenção da posição singular dos EUA, como país emissor da moeda mundial, o que permite financiar seus déficits externos com a emissão de sua própria moeda e de seus próprios títulos. A continuidade desse papel do dólar como moeda mundial mantém a margem de manobra dos EUA para gerenciar a crise e afasta o risco de uma desordem financeira catastrófica, que poderia resultar de uma fuga desordenada da riqueza em busca de proteção fora do dólar.

A terceira controvérsia, por fim, diz respeito à magnitude da contração do comércio mundial. Além dos efeitos da recessão sobre a demanda por importações, as práticas protecionistas podem levar essa retração a níveis suficientes para exigir a adaptação acentuada e prolongada dos países mais abertos e que tiveram seu crescimento recente muito vinculado às exportações.

No Brasil

Não são claros os efeitos sobre o Brasil dos desdobramentos dessas três variáveis. Claro que o país perde com retração do comércio mundial, mas até aqui a demanda chinesa por commodities atenuou a redução das exportações brasileiras. A desorganização financeira mundial foi evitada e iniciativas recentes, como o G20 (grupo que reúne os 20 países mais ricos do mundo), apontam para a manutenção da liderança dos EUA e até a para a revitalização do FMI. E a manutenção do crescimento da China permanece como uma possibilidade real, o que significaria um "descolamento" da sua capacidade de crescimento em relação à demanda norte-americana.

No plano da economia brasileira, uma das principais surpresas é a permanência do saldo comercial positivo, garantia contra a ocorrência de uma crise cambial. Esse desempenho dá razão aos defensores da abertura comercial dos anos 1990, iniciada no governo Collor e ampliada no governo Fernando Henrique. Para eles, com maior volume de comércio, a economia teria maior resistência aos efeitos de uma crise externa: a queda de exportações seria compensada por quedas também das importações, em magnitude suficiente para evitar a ocorrência de déficits comerciais e de crises de financiamento externo. É o que tem ocorrido até aqui, com a ajuda da demanda chinesa. É evidente que caíram muito as exportações de produtos industrializados, enquanto se mantêm as vendas de produtos primários, um sinal negativo para o futuro do país. Ainda assim, a queda das importações permite que a recessão doméstica, o desemprego e a redução da renda dos trabalhadores acomodem os efeitos da crise externa, sem gerar crise cambial. Acrescente-se que o regime de câmbio flutuante também tem funcionado no mesmo sentido, inclusive por viabilizar que o encarecimento dos produtos importados não gere alta generalizada dos preços.

Na área fiscal, o governo conseguiu lançar medidas para conter a queda da indústria – corte de impostos no setor automobilístico, anúncio de obras públicas, o programa habitacional. Até agora não ocorreu a situação perversa do passado, em que o governo era levado a cortar gastos e aumentar impostos em momentos de crise, o que acentuava os efeitos recessivos. A carga tributária muito alta dá condições ao governo de fazer cortes de impostos seletivos.

Na área financeira, o governo conta com o sistema de bancos públicos para ampliar o crédito, em especial o Banco do Brasil e a Caixa. Esses dois bancos de grande porte estavam saneados no final do governo FHC, herança do neoliberalismo à brasileira dos tucanos, em que as privatizações não atingiram os bancos federais nem os grandes fundos públicos, como o FGTS. Por fim, e não menos importante, o governo consegue até mesmo reduzir os juros na crise, uma medida importante para reduzir os efeitos recessivos sem prejudicar os grandes bancos privados, cujo patrimônio foi continuamente engordado pelos juros elevados impostos pelo Banco Central sobre a dívida pública.

O desenvolvimento da crise até aqui mostra um cenário original. O governo consegue realizar dois objetivos difíceis: (i) transferir os custos para os trabalhadores, sem protestos nem desgaste político; (ii) atuar para conter os efeitos da crise sobre o grande capital, utilizando a margem de manobra de que dispõe na área cambial, fiscal e financeira.

Uma conclusão preliminar é que o atual modelo capitalista brasileiro é mais resistente do que se imaginava, capaz de suportar uma crise mundial de grandes proporções. Iniciado por Collor e mantido por FHC e Lula, o modelo manteve e reciclou os traços de exclusão social e dependência externa, mas parece dispor de boa capacidade de adaptação ao cenário internacional.

 

- Carlos Eduardo Carvalho é economista, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

https://www.alainet.org/fr/node/134085

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