Entrevista especial com Roberto Liebgott

A ameaça institucional, jurídica e física à existência dos povos indígenas

O governo eleito não admite que na Constituição Federal estejam expressos os direitos à diferença étnica, à terra demarcada e respeitada.

18/02/2019
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Imagem: Reprodução You Tube
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Detentores do direito inalienável à terra e aos próprios costumes, os povos indígenas do Brasil vêm sofrendo ataques à própria autonomia por meio de um processo contínuo de descumprimento da Carta Magna. “Intensificaram-se os ataques aos direitos indígenas tendo como foco a desconstituição do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que assegura aos povos originários a demarcação das terras que tradicionalmente ocupam. Os ataques visam abrir caminho para a exploração agrária e agrícola; a expropriação e o esbulho da terra; a expansão minerária, madeireira e hidráulica; e a cobiça pelos recursos ambientais”, descreve Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário - CIMI Sul, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

O posicionamento contrário à demarcação dos territórios indígenas tem a ver, em linhas gerais, a dois fenômenos: a confusão entre governo e Estado, em que o primeiro se coloca acima do segundo; e uma obsessiva visão de mundo que não leva em conta a diversidade dos modos de vida das populações. “O governo eleito não admite que na Constituição Federal (que ele [Bolsonaro] jurou defender) estejam expressos os direitos à diferença étnica, à terra demarcada e respeitada e o fato destas populações serem sujeitos de direitos”, destaca Liebgott.

 

Tal cenário obriga as instituições republicanas a se colocarem na dianteira de uma postura que defenda os preceitos previstos constitucionalmente. “Os povos precisarão – mais do que nunca – de um sistema de justiça que seja honesto e coerente com as normas constitucionais e que transmita credibilidade a partir de suas decisões. Igualmente se requer um Ministério Público Federal atuante, fiscal da lei e defensor dos povos, de seus modos de ser e de viver e assegurar a defesa da demarcação e garantia das terras”, complementa.

 

A instabilidade antes tão somente jurídica passou a ser, também, da existência física dos povos indígenas. No Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no dia 11 de janeiro de 2019, uma comunidade Mbya Guarani foi atacada a tiros durante a madrugada. Na região há um processo de retomada dos territórios tradicionais, o que é assegurado pela Constituição e por ampla jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF, mas segundo o entrevistado, “a área é alvo de forte especulação imobiliária, para a qual existe um projeto de construção de um condomínio de 2,3 mil unidades residenciais e comerciais”.

 

No curso do tempo, o período que vivemos tem sido marcado por uma curva ascendente de intolerância e racismo e, ao mesmo tempo, de um sentimento de impotência diante dos desafios. “O Bem Viver é a construção no chão da história e formado pelos esforços das muitas vidas que fecundam a terra para não deixar morrer os caminhos que nos aproximam de um lugar originário e desvirtuado pela sociedade da acumulação e do desenvolvimento capitalista. Os povos indígenas, com suas cosmovisões e culturas de reciprocidade, têm sido, há milênios, os guardiões da floresta e da utopia do Bem Viver”, propõe Liebgott.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que se sabe até agora sobre invasões a terras indígenas?

 

Roberto Liebgott – Vive-se no Brasil um período de grave insegurança jurídica no que tange aos direitos indígenas. Esta insegurança vem sendo gerada pelos discursos do presidente da República contrários às demarcações de terras. Desde a campanha eleitoral, e depois da eleição e posse de Jair Bolsonaro, intensificaram-se os ataques aos direitos indígenas tendo como foco a desconstituição do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que assegura aos povos originários a demarcação das terras que tradicionalmente ocupam. Os ataques visam abrir caminho para a exploração agrária e agrícola; a expropriação e o esbulho da terra; a expansão minerária, madeireira e hidráulica; e a cobiça pelos recursos ambientais. Os ataques beneficiam em essência empresários que visam a exploração primitiva dos bens e recursos existentes nas terras indígenas.

 

No Rio Grande do Sul percebemos que há dois movimentos muito intensos dos setores econômicos que desejam a exploração das terras indígenas: um no sentido de desqualificar as lutas dos povos e comunidades que reivindicam a demarcação de áreas de terras para nelas viverem; e outro segue a tendência de obtenção de usufruir da posse de áreas demarcadas, retirando dos indígenas o direito ao usufruto exclusivo das terras através de subterfúgios jurídicos ou políticos denominados de parcerias agrícolas e arrendamentos de terras. E, em âmbito nacional, o Cimi vem denunciando o aumento das invasões de terras por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, pescadores, empreendimentos imobiliários e empresários da mineração.

 

A prática de exploração de terras por não índios ocorre há muitas décadas via arrendamentos, que são ilegais tendo em vista que o seu usufruto das terras é exclusivo dos povos. Mas, se é proibido arrendar terras indígenas ou fazer qualquer parceria rural ou agrícola, por que, neste momento, se constrói essa perspectiva junto aos indígenas? Há três vertentes de pensamento nesta discussão. A primeira vincula-se ao pensamento preconceituoso da relativa capacidade dos indígenas de produzirem segundo os modelos expansionistas de atendimento das demandas do mercado; a segunda é justificada com argumento de que se deve combater a ilegalidade do arrendamento de terras e iniciar uma nova perspectiva, as das parcerias, para melhor distribuir os rendimentos obtidos com os contratos, tendo em vista que no contexto atual os arrendamentos beneficiam alguns poucos caciques e suas famílias, deixando as comunidades em estado de vulnerabilidade; o terceiro vincula-se a perspectiva do esbulho com o argumento de que há muita terra para poucos índios e nelas eles são improdutivos e, portanto, estas precisam ser disponibilizadas para a exploração econômica. Ressalte-se que essa perspectiva vem sendo assumida por procuradores federais e servidores da Funai em diversas regiões do Brasil. De outro lado, a discussão estabelecida segue a lógica de que os indígenas não sabem produzir e portanto, os brancos “desenvolvidos” farão isso nas terras que não são suas. Essa vertente de pensamento dos ruralistas pretende, em essência, tomar posse de bens que são da União e neles obter lucro fácil. Também visa, com o alargamento do tempo, lotear as terras e legitimar o esbulho, que comumente se fez nas terras em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e, atualmente, vem ocorrendo em terras indígenas demarcadas de Rondônia, Pará e Maranhão.

 

Política em curso

 

Há ainda, no tocante à política em curso, iniciativas para fomentar o divisionismo entre os povos indígenas, suas organizações e lideranças. Propagam-se discursos de que as entidades de apoio, as organizações indígenas e caciques de comunidades não querem que haja desenvolvimento econômico nas aldeias, que estes pretendem manter os indígenas em situação de atraso e vulnerabilidade e com isso obter vantagens. Argumentam que as organizações são contra o desenvolvimento econômico, cultural e políticos dos indígenas no país porque pretendem entregar as terras indígenas a outros países. Os discursos falaciosos jogam indígenas contra indígenas, estes contra seus parceiros e apoiadores e criam um ambiente de insegurança quanto aos direitos expressos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.

 

Tão grave quanto as declarações proferidas contra os direitos dos povos indígenas são as manifestações do presidente que incentivam os setores ruralistas a fazerem oposição as demarcações de terras em todas as regiões do país e, como consequência, acaba por incitar a violência contra lideranças, comunidades e apoiadores da causa indígena. São igualmente preocupantes as declarações do presidente eleito difundindo ameaças aos apoiadores da causa indígena, numa evidente tentativa de intimidar as ações e serviços prestados às comunidades e criminalizar aqueles que se colocam na defesa dos direitos constitucionais dos povos, em especial a defesa da demarcação das terras.

 

IHU On-Line – Qual tem sido o papel do Governo Federal em relação ao tema? O que significa a transferência da pauta indígena para o Ministério da Agricultura?

 

Roberto Liebgott – O presidente da República mantém seu discurso de que “não demarcará nenhum centímetro de terra” e fará, ao invés disso, a revisão das demarcações realizadas pelos governos anteriores. Enfatizou que pretende, durante o seu governo, fazer com que os “índios ganhem dinheiro vendendo as terras”, num total descompromisso com as normas da Carta Maior do país onde estabelece que as terras indígenas compõem o patrimônio da União, portanto são indisponíveis e não podem ser vendidas. Disse ainda, antes e durante a campanha, que os índios não necessitam de terra, mas precisam ser integrados à comunhão nacional, rememorando as teses genocidas e integracionistas do regime militar.

 

O presidente, em síntese, anunciou que vai impor a revisão dos direitos estabelecidos pelos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. Para os Povos Indígenas, seus direitos, os projetos de vida e de futuro do governo de Jair Bolsonaro representa um grave perigo, porque propagou o ódio, o preconceito, a violência e desdenhou das histórias, das lutas e da autonomia indígena. O governo eleito não admite que na Constituição Federal (que ele jurou defender) estejam expressos os direitos à diferença étnica, à terra demarcada e respeitada e o fato destas populações serem sujeitos de direitos. O presidente finge desconhecer que as terras indígenas são bens da União destinados ao usufruto exclusivo dos povos, que a demarcação administrativa de uma área não cria direito, apenas reconhece um direito preexistente, ou seja, explicita um direito originário, inalienável, e a Constituição é que determina que a terra indígena é indisponível e que os direitos sobre elas são imprescritíveis. Ele, presidente eleito, propaga as teses da Ditadura Militar quando dizia haver terras demais para índios.

 

O discurso depreciativo direcionado aos povos é, em essência, uma defesa daqueles que, ao longo da história, exploram as terras e oprimem as pessoas que delas tiram o seu sustento. Essa prática discursiva pode desencadear, no país, o absurdo sentimento de insegurança jurídica e de descrédito no governo. Neste contexto, os povos precisarão – mais do que nunca – de um sistema de justiça que seja honesto e coerente com as normas constitucionais e que transmita credibilidade a partir de suas decisões. Igualmente se requer um Ministério Público Federal atuante, fiscal da lei e defensor dos povos, de seus modos de ser e de viver e assegurar a defesa da demarcação e garantia das terras. Espera-se, por fim, que as políticas públicas em saúde, educação e atividades produtivas ocorram de modo permanente e de respeito às culturas, costumes, crenças e tradições e, por fim que os órgãos de assistência, proteção e fiscalização sejam fortalecidos e não desmantelados.

 

Me sirvo, para proceder a análise das pretensões do governo de Jair Bolsonaro no que tange as suas políticas para os povos indígenas de uma nota divulgada pelo Conselho Indigenista Missionário acerca das determinações expressas na Medida Provisória 870/2019 e de um texto de análise sobre tais determinações escrito pelo Secretário Executivo do Cimi Cleber Buzatto intitulado O Governo Bolsonaro e o Anticonstitucionalismo contra os Povos Indígenas. Em nota o Cimi diz que através da MP 870/2019 o Presidente da República Jair Bolsonaro promoveu a transferência da Fundação Nacional do Índio - Funai, que até então encontrava-se no Ministério da Justiça, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Concomitante a isso, retirou da Funai as suas principais atribuições, de proceder aos estudos de identificação e delimitação de terras, promover a fiscalização e proteção das áreas demarcadas, bem como aquelas onde habitam povos que ainda não estabeleceram contato com a sociedade nacional. O Cimi diz que o governo, além de esvaziar as funções legais do órgão de assistência aos povos e comunidades indígenas, transferiu para o Ministério da Agricultura, comandado por fazendeiros que fazem oposição aos direitos dos povos, a atribuição de realizar os estudos de identificação, delimitação, demarcação e registro de áreas requeridas pelos povos indígenas.

 

Em suma, o governo decretou, em seu primeiro ato no poder, o aniquilamento dos direitos assegurados nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, carta magna do país. Bolsonaro atacou severamente os povos indígenas, seus direitos fundamentais à terra, à diferença, o de serem sujeitos de direitos e suas perspectivas de futuro. Entregar a demarcação de terras indígenas e quilombolas aos ruralistas – transferindo tal responsabilidade da Funai e do Incra ao Ministério da Agricultura – o governo desrespeita as leis e normas infraconstitucionais, bem como afronta a Constituição Federal. Fere, de pronto, o Art. 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT – sobre povos indígenas e tribais, promulgada pelo Decreto n 5051, de 19 de abril de 2004, bem como afronta o Art. 1º do Decreto 1775/1996, Art. 19 da Lei 6001/1973 e os Arts. 1º e 4º do Decreto nº 9010/2017. A medida fere ainda os direitos culturais dos Povos Indígenas com fundamento no Art. 129, inciso V, da Constituição Federal.

 

IHU On-Line – Na prática, o que houve de mudanças na política de demarcação de terras em relação aos governos anteriores, incluídos aí os governos de esquerda?

 

Roberto Liebgott – É importante destacar que a Constituição Federal assegura aos povos indígenas o direito sobre suas terras e estabelece que estes direitos são originários e tradicionais, portanto anteriores a qualquer direito estabelecido com a chegada dos europeus e posterior a ela, ou seja, é um direito de origem, de ancestralidade, naquilo que é denominado de indigenato, pois funda-se no critério de que o direito territorial, relativo aos índios, vincula-se ao critério de que são eles os primeiros habitantes e naturais senhores da terra, estabelecendo-se a primazia desse direito sobre qualquer outro. Além do que os direitos indígenas são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre as terras imprescritíveis, portanto eles têm um direito de origem e este direito não termina com o decorrer do tempo.

 

No que tange a política indigenista dos últimos anos, parece-me que serviu para alicerçar e pavimentar o chão por onde Bolsonaro deve percorrer. Nela – a política – por ingerência da bancada ruralista no Congresso Nacional e das empresas de mineração foi promovida a desestruturação da Fundação Nacional do Índio - Funai, colocando sob suspeita a sua já frágil credibilidade e fixando nela servidores – CCS – que se posicionam contra os direitos indígenas. A Funai, aos poucos, acabou deslegitimada e impedida de exercer as suas principais funções de demarcação das terras e do desenvolvimento de ações para a sua fiscalização e proteção. O governo consolidou a inercia da Funai através do Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, o qual fixa como regra – na qual toda a administração pública deverá ficar vinculada – que a tese do marco temporal da Constituição Federal de 1988 deve ser referência e base fundamental para a demarcação das terras indígenas. De acordo com essa tese um povo ou comunidade indígena somente pode reivindicar a demarcação de terra se nela estivessem ocupando ou lutando por ela no ano de 1988. Ou seja, restringe o direito constitucional dos povos indígenas ao fato de estarem na posse da terra em 1988, rompendo com os princípios constitucionais estabelecidos no Artigo 231, onde foi expresso que os povos têm o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam e que os seus direitos são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre as terras imprescritíveis. A Advocacia Geral da União - AGU, nos anos de 2017 e 2018 passou a atuar contra os interesses da União, fazendo a defesa dos segmentos privados que pretendem desencadear um intenso processo de exploração e apropriação das terras indígenas, que compõem o patrimônio público federal. O Parecer 001/AGU-2017 constituiu-se, neste contexto, em mais um gargalo nas lutas dos povos indígenas.

 

Em paralelo aos freios impostos à Funai, a Bancada Ruralista atuou de forma incessante no Congresso Nacional no sentido de fazer aprovar projetos de lei que aniquilam com os direitos indígenas. Dentre os projetos em tramitação encontra-se o PL 6818/2013, tratado como prioritário pelos ruralistas uma vez que congrega todas as teses anti-indígenas retiradas de projetos que tramitavam na Câmara dos Deputados e Senado Federal. O PL incorpora o Parecer 001/AGU e aspectos contidos na PEC 215/2000. Os projetos de lei tramitaram de forma muito célere, tanto que a Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados aprovou o PL 490/2007, seguindo para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ e posteriormente apensado a outras proposições, transformado no Projeto de Lei de nº 6.818/2013, tendo por objetivo a modificação da Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio). O PL tem como relator o deputado Jerônimo Goergen do Partido Progressista, do RS, que pretende firmar entendimento sobre precedentes mais antigos do STF e ao mesmo tempo segue uma linha de reinterpretação do julgado no caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR), introduzindo ao seu parecer as teses do marco temporal, o renitente esbulho e as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol. Com essa estratégia, incorporam na proposta as medidas referidas acima adotadas pelo Governo Federal através do Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU.

 

Ainda, de forma contraditória, a proposta legislativa que foi submetida à  CCJ – Projeto de Lei n° 6.818, de 2013 – estampa em seu art. 5º, que “As novas demarcações respeitarão a diversidade étnica e cultural das comunidades indígenas envolvidas, vedado o agrupamento de etnias diversas em uma única área contínua”, o que configura uma afronta, inclusive ao que determina o julgamento da Pet 3388/RR, que vem amplamente referido na proposta legislativa. Vale, desde já, o registro de que a Suprema Corte tem refutado, em seus últimos julgamentos acerca das demandas demarcações de terras indígenas e quilombolas, as teses propostas. Mas apesar disso, Juízes federais e Desembargadores nos Tribunais Regionais têm adotado – nas decisões concedidas em ações contra procedimentos de demarcações de terras – as teses do marco temporal e do esbulho renitente como fossem normas jurídicas.

 

Lamentavelmente dezenas de procedimentos de demarcações de terras acabaram revogados ao longo do ano de 2018 impondo aos Povos Indígenas a condição de invasores dentro de suas próprias terras e submetendo a eles uma dramática insegurança jurídica já que seus direitos originários são desqualificados e desconstituídos judicialmente. E o mais grave, os povos e suas comunidades, estão sendo agredidos física, cultural e etnicamente por pessoas ou empresas que se sentem legitimados – pelas decisões da justiça e política do governo federal – a agirem de forma autoritária, arrogante e violenta.

 

IHU On-Line – O que foi o conflito com os indígenas da Comunidade Guarani Mbya da Ponta do Arado, em Porto Alegre, e quais foram as consequências a quem promoveu ataque?

 

Roberto Liebgott – A retomada Mbya Guarani da Ponta do Arado localiza-se no bairro Belém Novo, na zona sul de Porto Alegre, às margens do rio Guaíba, numa região de preservação ambiental que é, também, um importante sítio arqueológico do povo Guarani. Banhada pelo Guaíba, a área retomada fica no perímetro da antiga Fazenda do Arado Velho, de 426 hectares. Atualmente, a região divide-se entre uma área de preservação e algumas fazendas onde se cria gado e que contam com vigilantes particulares. Para chegar à retomada, é necessário passar pela entrada de duas destas propriedades.

 

A área é alvo de forte especulação imobiliária, para a qual existe um projeto de construção de um condomínio de 2,3 mil unidades residenciais e comerciais. Segundo o movimento Preserva Arado, que luta pela preservação do local, o empreendimento devastaria o ecossistema da região. A comunidade Mbya Guarani, desde a retomada da terra em 15 de julho de 2018 recebeu uma infinidade de ameaças dos seguranças da empresa, que chegaram a ameaçar inclusive os pescadores que faziam o transporte dos indígenas da comunidade e de seus apoiadores, de barco, e inviabilizar o acesso dos indígenas à água potável.

 

Em dezembro, a situação de ameaças e constrangimentos se agravou, com a instalação de uma cerca ao redor do acampamento, cerceando a locomoção dos indígenas, e a construção de uma casa para os seguranças do empreendimento dentro da área de ocupação dos Guarani.

 

Mas o fato mais grave ocorreu na madrugada de 11 de janeiro de 2019 quando, os Mbya Guarani foram atacados a tiros por homens encapuzados. Segundo o relato da comunidade, o ataque ocorreu por volta das três horas da manhã, quando dois homens com os rostos cobertos atiraram dezenas de vezes sobre os barracos dos indígenas. Além dos disparos, que não atingiram ninguém, os agressores também ameaçaram os Guarani, afirmando que, se não deixassem a área até o domingo seguinte, todos seriam mortos.

 

Está em discussão no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul um processo judicial onde se discute de quem é a competência para julgar e legislar sobre as demandas dos Mbya Guarani da Ponta do Arado. A comunidade aguarda com expectativa de que haja uma decisão no sentido de que a competência seja da Justiça Federal e não a Estadual, como aliás determina a Constituição Federal em seu Artigo 22, Inciso XIV.

 

IHU On-Line – Como o CIMI das diferentes regiões tem se articulado em perspectiva com o Sínodo Pan-Amazônico?

 

Roberto Liebgott – O Sínodo para a Amazônia foi uma resposta do Papa Francisco à realidade de sofrimento dos povos que habitam aquela grande região, bem como demonstra a preocupação da Igreja com o meio ambiente e os impactos ou consequências do processo de expansão econômica devastador. O Papa Francisco salienta que “o objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta.

 

O CIMI, através de seus missionários e missionárias se dispôs a dialogar com as comunidades indígenas acerca da perspectiva do Sínodo, bem como informá-las de que suas contribuições seriam de suma importância para esse evento, pois no nosso entender ele extrapola, em importância, os espaços de igreja. Portanto, as comunidades podem e devem apresentar suas preocupações em relação ao futuro, futuro este que pode estar comprometido em função de uma perspectiva de mundo que prioriza, através do grande capital predatório, a destruição do meio ambiente ao invés de sua proteção, que ataca e desrespeita direitos fundamentais de pessoas e dos povos.

 

Com o tema Amazônia: novos caminhos para a igreja e para uma ecologia integral se busca efetivamente estimular a discussão com a sociedade antes do Sínodo, ou seja, o evento precisa acontecer primeiro entre aqueles que compõem as comunidades e vivem os desafios de um desenvolvimentismo sem medidas e devastador. Precisamos ouvir as comunidades e fazer repercutir os clamores de todas as pessoas.
IHU On-Line – De que ordem são os desafios do CIMI e da Igreja especialmente no que diz respeito ao Sínodo Pan-Amazônico à proteção das populações indígenas e, ao mesmo, tempo às garantias a autodeterminação cultural e religiosa desses povos?

 

Roberto Liebgott – Os desafios, no atual contexto econômico, político e jurídico são imensos. Os ataques aos direitos individuais e coletivos se dão cotidianamente. O conjunto de interesses políticos e econômicos – diversos e associados entre si – em disputas no Brasil, fomentam e articulam a desconstitucionalidade de normas sem mexer na Constituição de forma direta, mas tangenciado, criando atalhos ou picadas para impedir a legítima interpretação daquilo que é legal. As teses esdrúxulas do Marco Temporal e do Renitente Esbulho são claramente um subterfúgio para tornar a expropriação das terras indígenas e o esbulho, questões de fato, e impor limites a novas demarcações no Brasil. As manobras legislativas que estão em curso no parlamento brasileiro têm a mesma intencionalidade, a de romper com os direitos fundamentais discutidos e estabelecidos por uma constituinte regularmente convocada. O chefe do Poder Executivo, por sua vez, atua no sentido de reforçar o que o parlamento projeta e estimula o Judiciário a tornar legal o que é constitucionalmente inválido. O que torna evidente essa tendência são as ações movidas contra procedimentos de demarcações tendo como argumentos as teses da temporalidade da presença indígena nas terras requeridas – marco temporal – e a necessidade de ter havido resistência, por parte dos indígenas, ao esbulho que se praticava em suas áreas hoje reivindicadas. Por fim, mas não menos notório, são as estratégias finais dos ruralistas de pretender deslegitimar a posse e usufruto exclusivo dos indígenas dentro de terras regularmente demarcadas, através de uma espécie de solução final (encampada pela Funai e procuradores da República) que é a anomalia jurídica das parcerias agrícolas, através das quais pretendem explorar, sem constrangimento, as terras que são propriedade da União e destinadas – como direito originário – a posse permanente e exclusiva dos povos indígenas.

 

O período que vivemos certamente deixará marcas profundas nas pessoas sendo, a primeira delas, o fato de ter sido permitida a intolerância e o racismo contra aqueles que são os primeiros cultivadores e protetores das terras brasileiras; a segunda será o sentimento de impotência diante da devastação que se praticou contra o meio ambiente e todos os seres nele viventes, somando-se a isso o fato de terem de sobreviver num mundo intoxicado pelo veneno e por alimentos transgênicos; além disso, a marca de terem, cada um e cada uma, permitido irresponsavelmente que se retomasse, como prática social, a intolerância contra pessoas pobres, negros, imigrantes e se permitisse a decretação de que não há direitos humanos, não há direitos fundamentais e que cada um deve traçar seu próprio caminho tendo como força motora a competição contra os outros e obtenção de lucros e privilégios. Essa é a sociedade que se desenha. A quebra dos princípios constitucionais mais elementares leva a um contexto de barbárie. Assiste-se isso contra os povos indígenas, assiste-se isso contra quilombolas, assiste-se isso contra os jovens negros, assiste-se isso contra os imigrantes e os mais empobrecidos da sociedade.

 

IHU On-Line – Como ampliar a sensibilização da sociedade civil em torno das questões indígenas?

 

Roberto Liebgott – Nós, apesar das adversidades, confiamos de que caminhos do Bem Viver sejam retomados. Temos que cultivar em nós as sementes da solidariedade e da justiça. Deveremos nos opor a qualquer forma de preconceito e discriminação. Temos que nos rebelar contra um modelo de desenvolvimento que engole pessoas, comunidades e destrói a terra, aterra os rios e contamina os mares. Temos que enfrentar os desequilibrados e inimigos da democracia no governo e fora dele. Vamos nos opor às tendências de uma sociedade intolerante, preconceituosa, racista, machista, misógina. Vamos enfrentar aqueles que pretendem identificar nas desigualdades econômicas, políticas, culturais, étnicas, religiosas e de gênero, razões para a desagregação e para o ataque, ainda maior a grupos minoritários, como povos indígenas e quilombolas. Vamos enfrentar as elites controladoras dos comportamentos, do pensamento, das riquezas econômicas e dos saberes. Se assim fizermos, a solidariedade vai se consolidando como caminho e ampliaremos nossas relações e nos fortaleceremos como humanidade, onde todos possam ser respeitados em seus direitos, em suas culturas e modo de ser.

 

E para concluir esta entrevista me aproprio de uma reflexão escrita pelo Teólogo Paulo Suess onde nos diz que devemos retomar o sentido de comunidade humana, que ela possa ser o centro das relações, onde se respeita a alteridade e pluralidade, pois são os eixos fundamentais para o Bem Viver, onde todos se preocupam com todos e o mais importante é a vida, sendo todos os seres vivos e a Mãe Terra portadores de direitos. O Bem Viver, como tal, não é uma experiência plenamente vivida atualmente pelos povos indígenas. No contexto brasileiro é muito mais uma bandeira de luta que, por um lado, denuncia o fato de que eles não são contemplados nos projetos históricos do Estado, que os ameaça com as inúmeras violações de direito. Porém, aponta o sonho dos povos indígenas de viver de maneira plena, em seus territórios, na harmonia com os espíritos e os outros seres da criação.

 

Enquanto houver desrespeito aos direitos dos povos indígenas e persistir o descompasso entre justiça, terra e paz, o Bem Viver será ainda uma perspectiva utópica para nos fazer caminhar. É preciso a permanente resistência e mobilização para construir na história espaços de liberdade, fartura de bebida, comida, danças e sonhos de esperança. O Bem Viver é a construção no chão da história e formado pelos esforços das muitas vidas que fecundam a terra para não deixar morrer os caminhos que nos aproximam de um lugar originário e desvirtuado pela sociedade da acumulação e do desenvolvimento capitalista. Os povos indígenas, com suas cosmovisões e culturas de reciprocidade, têm sido, há milênios, os guardiões da floresta e da utopia do Bem Viver

 

18 Fevereiro 2019

http://www.ihu.unisinos.br/586730-a-ameaca-institucional-juridica-e-fisica-a-existencia-dos-povos-indigenas-entrevista-especial-com-roberto-liebgott

 

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