O Brasil em distopia democrática
- Análisis
Após a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018 e os primeiros meses de seu mandato, as inquietudes não cessam de crescer sobre a evolução democrática do Brasil. Neste texto¹, voltando às circunstâncias desta eleição e, notadamente, ao clima político-judiciário que prevaleceu para além do voto, Jean-Jacques Kourliandsky² examina as consequências econômicas, políticas e sociais da chegada ao poder de uma extrema direita reivindicando e colocando em prática seus preceitos ideológicos.
O Brasil ainda é uma democracia? A questão pode parecer, à primeira vista, incongruente. Aqueles que se lamentam da chegada ao poder, em 1º de janeiro de 2019, de um presidente intolerante e reacionário, não seriam maus perdedores? O Brasil não reencontrou o espírito das leis, reenviando os militares aos quartéis em 1985? Os governantes do Brasil não são, a partir dessa data, designados pela maioria dos cidadãos por meio de sufrágio universal? A Constituição de 1988 não é uma das mais democráticas?
Tudo isso é verdade. A página da ditadura, aberta em 1964, foi realmente fechada em 1985. O presidente da República e os parlamentares eleitos em 2018 são provenientes de uma consulta pública, cujas modalidades materiais não foram contestadas por ninguém. A Constituição de 1988, ainda em vigor, é reivindicada por todos os atores da vida política, pelo atual chefe de Estado, Jair Bolsonaro, assim como pelos 517 deputados empossados desde 1º de janeiro de 2019.
A direita liberal e a extrema direita estariam legitimadas, estando em total adequação às regras democráticas, tanto as do Brasil quanto aquelas universalmente admitidas. As aparências seriam enganosas? Nós podemos apenas nos interrogar. Os anúncios e a adoção de medidas de caráter sectário ou radicalmente excludentes feitos pelo novo governo nos interpelam tanto quanto a legalidade democrática da equipe governamental anterior, presidida por Michel Temer de 2016 a 2018.
Dupla realidade assinalando uma prática perene de exceção democrática. Dupla realidade reveladora de uma nova abordagem, restritiva e intolerante, da democracia.
I. Uma democracia de participação limitada
Essa exceção planejada começou em 2016. Os eleitos representantes da elite econômica e financeira, no Congresso e no Senado, validaram, de fato, pelo voto majoritário do Congresso, e em função de uma interpretação em desconformidade com a Constituição, a destituição da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 sob as cores progressistas e democráticas do Partido dos Trabalhadores (PT). As “elites” contestavam a pertinência econômica, social e fiscal da política da presidenta e distorceram, interpretando de modo oportuno e abusivo o artigo 86 da Constituição – que previa a destituição do Chefe de Estado por “crime contra a Constituição”. Assim, sob o rótulo do vocábulo anglo-saxão “impeachment”, buscou-se validar “magicamente” uma decisão inconstitucional.
A justiça interveio a partir daquele momento, tomando numerosas decisões, todas convergentes, e em prazos excepcionalmente rápidos, acusando de corrupção os responsáveis do PT, seus aliados e as empresas próximas deste partido. A alavanca desse processo, a chamada Lava Jato, colocou em evidência licitações fraudulentas e pagamento de propinas em benefício de partidos mais votados e de personalidades governamentais. Os fatos tinham, para alguns, seus fundamentos. A vida política brasileira repousa, desde 1988, sobre o presidencialismo de coalizão³. Os presidentes, na ausência de maioria – rara, considerando o sistema eleitoral –, abrem-se a um mercato político, permeável a todos os tipos de falta de deontologia. O PT, chegando ao poder em janeiro de 2003, pensou, por sua vez, poder se beneficiar deste tipo de governo, o que ele pôde efetivamente fazer em período favorável de plena expansão até 2014. As elites apitaram o fim da partida quando a crise chegou. A Justiça foi mobilizada e, com a ajuda do Congresso, concentrou suas investigações, quase exclusivamente, sobre o perímetro ligado ao PT. Suspeitos de corrupção, Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmin, todos do PSDB, e Michel Temer, do PMDB⁴, para citar os responsáveis mais conhecidos, beneficiaram-se, como parlamentares, da benevolência das instituições judiciárias.
Mas há questões mais preocupantes. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso por corrupção em 7 de abril de 2018, a alguns meses da eleição presidencial. Foi uma prisão seguida de condenação, em 12 de julho de 2017, a mais de doze anos de reclusão – prisão esta amplamente difundida midiaticamente, dando assim uma espécie de credibilidade à sentença pelo consentimento midiático universal. Essa condenação se embasa na delação de dirigentes de uma empreiteira, a OAS. No Direito brasileiro, a delação permite a diminuição de pena de condenados que façam delação, podendo, então, constituir-se como um elemento de prova. No entanto, a despeito da falta de elementos materiais corroborando o delator, o juiz sinalizou sua convicção íntima para justificar a condenação. O cenário se repetiu alguns meses mais tarde. A magistrada Gabriela Hardt, tendo herdado dossiês concernentes a Lula, condenou-o, em 6 de fevereiro de 2019, com o mesmo raciocínio – apoiando-se nos argumentos de um outro delator, sem provas materiais e em virtude de sua convicção íntima, a mais doze anos de prisão. Para justificar a sentença, a juíza explicou que os delitos de corrupção “não são cometidos de modo público, deixando poucos rastros, e que as provas [materiais] são difíceis de encontrar”.⁵ Neste intervalo, Lula foi proibido de sair excepcionalmente para acompanhar o funeral de seu irmão mais velho, falecido em 30 de janeiro de 2019. O código penitenciário brasileiro dá a possibilidade de as pessoas encarceradas assistirem aos funerais dos familiares falecidos. No entanto, uma juíza afirmou que Lula, sendo um personagem “fora do comum”, a lei, no que o concerne, não poderia ser aplicada. Em audiência no Tribunal Superior, este direito de Lula foi finalmente reconhecido, vinte minutos antes do enterro…
O tratamento orçamentário reservado pelas autoridades governamentais à instituição judiciária, em um tal contexto, intriga. No fim do mandato do presidente Michel Temer, em agosto de 2018⁶, os juízes obtiveram uma revalorização de seus salários em 16,3%. Este aumento surpreende em um momento no qual, por razões de equilíbrio orçamentário, as mesmas autoridades haviam congelado os gastos públicos, em 2017, por 20 anos consecutivos. Além disso, o juiz Sérgio Moro, de Curitiba – que instruiu o primeiro processo e a primeira condenação de Lula – foi nomeado Ministro da Justiça, em janeiro de 2019, pelo presidente Jair Bolsonaro, que havia centrado sua campanha na demonização do PT e de seu líder histórico, Lula…
Paralelamente a essa neutralização judiciária e parlamentar do PT, a ascensão e vitória eleitoral de Jair Bolsonaro são acompanhadas de uma liberação de interditos democráticos. Campanhas de ódio nas redes sociais, ameaças físicas, destruição de bens multiplicaram-se contra os opositores do vencedor e os simpatizantes ou supostos simpatizantes deles. Em 14 de março de 2018, a vereadora municipal pelo PSOL no Rio de Janeiro, Marielle Franco – militante feminista, antirracista e LGBT –, foi assassinada. Um ano mais tarde, seus assassinos ainda não foram encontrados⁷. Em 24 de janeiro de 2019, o deputado do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Jean Willys foi obrigado a renunciar, ameaçado sucessivamente e de modo anônimo nas redes sociais, assim como sua mãe e sua irmã, com a utilização de fotos de suas residências. Decisão saudada pelo presidente como um “grande dia”, comentário que reflete uma intolerância democrática militante insólita por parte de um chefe de Estado que se diz democrático. Notamos, além disso, o crescimento de um clima de caça às bruxas. Assim, Jair Bolsonaro obrigou um certo número de intelectuais progressistas, como Débora Diniz, antropóloga e defensora da descriminalização do aborto, o escritor Anderson França ou ainda a filósofa Marcia Tiburi a se expatriarem.
Por outro lado, notamos a colonização do Estado por grupos praticando uma endogamia política distante da cultura do diálogo e do acordo inerente a todo sistema democrático. Jair Bolsonaro fez sua família entrar no aparelho do Estado. Este nepotismo, que é uma novidade no Brasil, concerne os três filhos do presidente, Carlos, Flávio e Eduardo. O governo, nomeado em janeiro de 2019, incorporou personalidades adeptas de correntes de pensamento radicais e intolerantes. Os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, da Educação, Ricardo Vélez⁸, e da Família, Damares Alves, são conhecidos por declarações que pretendem liberar a função pública do “marxismo cultural” e pregam “uma escola” dita “sem partido”. Ernesto Araújo anunciou também uma purificação de seu ministério. Ricardo Vélez indicou que a universidade “devia ser reservada a uma elite intelectual”.⁹
Enfim, de pouco a pouco, assistimos a uma espécie de “bordaberrysação”¹⁰ do governo, isto é, a uma extensão progressiva do campo de responsabilidade dos militares na gestão do país. Em 3 de abril de 2018, o chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro, Eduardo Villas Boas, fez uma declaração insólita endereçada aos juízes do Supremo que julgavam o pedido de habeas corpus impetrado pelos advogados do ex-presidente Lula, lembrando aos magistrados a necessidade de cumprirem seu dever. O habeas corpus foi, com efeito, negado pelos juízes em 4 de abril. Em 9 de setembro de 2018, em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, o general fez novamente declarações de caráter claramente político. Em 13 de setembro de 2018, um de seus subordinados diretos, colocado em disponibilidade há algumas semanas, o general Fernando Azevedo, entrou no Supremo Tribunal Federal como conselheiro do presidente dessa instituição. Ele é, desde 1º de janeiro de 2019, membro do governo de Jair Bolsonaro, como muitos de seus colegas. Hoje são ministros de origem militar: Fernando Azevedo e Silva, da Defesa; Bento Costa Albuquerque, de Minas e Energia; Tarcísio Gomes, de Infraestrutura; Augusto Heleno, Segurança Institucional; Hamilton Mourão, vice-presidente; Floriano Peixoto, secretário geral da presidência; Maynard Santa Rosa, secretário de Assuntos Estratégicos; Carlos Alberto dos Santos Cruz, secretário do governo; Guilherme Theophilo, secretário de Segurança Pública. Com 8 dos 22 ministros, mais um com formação militar (Tarcísio Gomes), o governo de Jair Bolsonaro é o que conta com o maior número de fardas desde o restabelecimento da democracia¹¹.
II – Uma doutrina de exclusão nacional
Essa exclusão democrática dos partidos de centro-esquerda em geral – para além do Partido dos Trabalhadores – visa o eleitorado que esses partidos representam: as categorias mais modestas da sociedade. O objetivo buscado é, então, o mesmo que aquele dos autores dos golpes militares do fim do século passado. Com uma diferença fundamental: o roteiro não é mais a “doutrina de segurança nacional”¹² que supunha um recurso à violência armada, mas uma instrumentalização da democracia representativa, que poderíamos qualificar, para marcar a continuidade, de “doutrina de exclusão nacional”.
As iniciativas tomadas pelo governo de Michel Temer (2016 – 2018) e de Jair Bolsonaro (a partir de 1º de janeiro de 2019) cumprem esse objetivo de duas maneiras.
Um bloco de medidas visa controlar a sociedade e as eventuais contestações sociais sob o pretexto do combate à insegurança, mobilizando as forças de “ordem”. Nesse contexto, o Exército ocupou lugar central, substituindo a força policial por decisão do poder federal. Ele foi encarregado de duas retomadas da gestão da segurança durante algum tempo de 2017, em Brasília, e de modo prolongado, no estado do Rio de Janeiro, desde 2018. A primeira lei implementada pelo governo de Bolsonaro visa reforçar a capacidade federal de gerir essas questões. Paralelamente, e sob a forma de compensação à restrição das liberdades civis, a permissão de porte de armas foi flexibilizada pelo decreto de 15 de janeiro de 2019. O principal beneficiário desta medida foi a fabricante de armas Taurus, cujas ações na bolsa subiram radicalmente. As vítimas dessa política de segurança, excluídas fisicamente da sociedade civil e política, são em sua maioria os jovens, os pobres e os negros. Também está sendo estudada, conforme anunciado no programa eleitoral do atual presidente, a categorização das ações lideradas pelos movimentos dos trabalhadores rurais sem-terra (MST) e trabalhadores sem teto (MSTS), de ocupação de terras não produtivas e ocupação de habitações desocupadas, como crimes terroristas.
Outras decisões tomadas ou pretendidas enfatizam a urgência de um equilíbrio orçamentário. De 2016 a 2018, o governo de Michel Temer congelou constitucionalmente os gastos públicos por 20 anos a fim de atender a esse objetivo. Ademais, mobilizou a administração federal para então reduzir o número de beneficiários dos programas sociais: mais de um milhão de pessoas foram excluídas do programa Bolsa Família. A segunda lei apresentada pelo Ministro da Economia de Jair Bolsonaro objetiva “reformar” a Previdência, introduzindo um sistema de pensão por capitalização e aumentando para os aposentados as exigências requeridas em números de anos de trabalho e contribuição. Apenas os militares foram excluídos do âmbito da aplicação desse projeto de lei!
Foram anunciadas ainda outras medidas para os próximos meses, como a liberalização da economia, que foi uma das prioridades das primeiras semanas. Liberalizar por meio da redução das restrições, quer sejam sociais – não há mais Ministério do Trabalho, nem Ministério da Integração Racial –, quer sejam ambientais. Um representante da agroindústria foi nomeado Ministro da Agricultura. Fortes ressalvas foram emitidas sobre a permanência do Brasil no Acordo de Paris acerca do aquecimento global. Além disso, desde o primeiro dia de sua posse, Jair Bolsonaro colocou fim, por meio de decreto, às atividades do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, e tudo isso a despeito da catástrofe ecológica de Brumadinho (Minas Gerais) em 25 de janeiro de 2019, onde, por falta de fiscalização e controle das empresas potencialmente perigosas, uma barragem de dejetos minerais cedeu, provocando a morte de centenas de pessoas e graves prejuízos ambientais. Um vasto programa visando a privatização de um grande número de empresas públicas foi anunciado. O âmbito dessas privatizações, que concerne a infraestruturas federais – a saber, 10 terminais portuários, 12 linhas de estrada de ferro, 12 aeroportos, 6 rodoviárias, a Eletrobrás, a Casa da Moeda, a loteria Lotex e toda ou parte da Petrobrás – não foi ainda definido. Foi confirmada a venda da empresa de aviação privada Embraer, sem dúvida a empresa de ponta mais importante do país, à sua concorrente Boeing. Além disso, em 30 de janeiro de 2019, a Petrobrás cedeu por 562 milhões de dólares à empresa norte-americana Chevron uma refinaria comprada por 1,18 bilhões.¹³
Um segundo pacote de medidas também foi anunciado a fim de atuar na revisão dos currículos escolares. Um grupo de trabalho foi criado com o objetivo de ‘peneirar’ os livros didáticos e os currículos escolares com o intuito de “limpar” qualquer influência do “marxismo cultural” e, mais precisamente, de dar ao ensino um horizonte estritamente profissional, excluindo qualquer assunto social ou cívico que no imaginário parlamentar passam a ser de competência da família.
A exclusão democrática do PT, da esquerda, e a relegação das categorias mais modestas vão além, tanto da instrumentalização partidária da Constituição quanto dos projetos de lei. Com efeito, assistimos à implementação da deturpação consciente e racional da democracia a fim de reduzir seu campo de aplicação. As autoridades no poder desde 2016 lançaram as bases de normas democráticas restritivas, permitindo legitimar, a posteriori, o distanciamento de grupos de esquerda e de seus dirigentes, e de justificar a adoção de leis destinadas a perpetuar a hegemonia cultural e política das forças de direita e de extrema-direita.
A alternativa econômica neoliberal inspirada nas escolas de Chicago e da Áustria e a primazia social dada à individualidade foram desde muito tempo encorajadas material e financeiramente por vários interesses privados. Ao longo dos anos, uma rede particularmente densa de círculos, fundações e instituições com esse objetivo foi formada. O Iedi (Instituto de Estudos para Desenvolvimento Industrial), o Instituto Atlântico, o MBE (Movimento Brasil Eficiente), o Lide (Grupo de Líderes Empresariais), o Clube de milionários, o Imil (Instituto Millenium), o MBC (Movimento Brasil Competitivo), o IL (Instituto Liberal), o IEE (Instituto de Estudos Empresariais), o Fórum da Liberdade, o IMB (Instituto Mises Brasil) ou ainda o MBL (Movimento Brasil Livre) entre outros¹⁴, transformaram-se, com o apoio da mídia e da Fiesp¹⁵, em atores políticos, difundindo e popularizando¹⁶ temáticas de desvalorização do PT, associado à corrupção, e justificando o golpe de estado parlamentar de 17 de abril de 2016¹⁷, denunciando as iniciativas do poder público, taxadas de totalitaristas e comunistas, em especial no campo da proteção da diversidade ecológica e cultural. Esses laboratórios de ideias, a imprensa e a Fiesp validaram essas teorias, destacando o fracasso do estatismo comunista na Venezuela. Ao longo dos anos, eles elaboraram estratégias e consolidaram alianças para construir uma candidatura presidencial que atendesse às suas expectativas. Paulo Guedes, ministro da Economia, é o representante dessa tendência de pensamento ultraliberal no governo de Bolsonaro.
Esses setores ultraliberais foram ao encontro dos movimentos do evangelismo pentecostal. Essas igrejas são organizadas politicamente para impor sua moral, estando presentes no seio das instituições. Elas disseminam uma interpretação da religião cristã que valoriza a salvação pessoal, o diálogo direto com Deus, aliado ao sucesso material. Essa teologia, dita da “prosperidade”, é duplamente compatível com o pensamento neoliberal, centrada, de fato, no indivíduo e na busca da salvação por meio do dinheiro. Essas igrejas pretendem encerrar a moralidade individual num espaço tradicionalista restrito. Condenam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade e o aborto em nome dos valores da família. Ademais, têm certas características que retiveram a atenção dos neoliberais. Demonizam outras religiões, particularmente as afro-brasileiras, apoiando-se sobre “o texto” fundador e sagrado, a Bíblia, o que permite, por extensão, demonizar as correntes políticas socialistas e similares, e criar um oximoro, o ódio democrático¹⁸. Elas também penetraram profundamente nas classes populares, como mostram os estudos sobre a análise de votos publicados após a eleição presidencial de 2018, nos quais 69% dos evangélicos, segundo o instituto Datafolha, escolheram Jair Bolsonaro como candidato presidencial¹⁹. No seio do governo, essa corrente é representada pelo presidente Jair Bolsonaro e pela ministra da Mulher e da Família, a pastora Damares Alves. ²⁰
Uma terceira corrente veio se juntar a elas, aquela dos generais e dos nostálgicos da ordem que os militares teriam imposto aos brasileiros, para seu próprio bem, de 1964 a 1985. Essa tendência surgiu em 2013 através dos manifestantes que assumiram os protestos contra o aumento do preço do transporte público. Ela foi amplificada com a crise econômica de 2014 e com o projeto da presidenta Dilma Rousseff de criar uma Comissão da Verdade encarregada de esclarecer as violações da lei durante a ditadura militar. Até o golpe de estado parlamentar de 2016, a expressão pública dessa tendência foi encampada pelos militares aposentados. Jair Bolsonaro, então deputado e ex-capitão, justificou seu voto a favor da destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, alegando a exemplaridade dos oficiais que a torturaram.
O denominador comum a essas diferentes correntes foi inventado por um jornalista filósofo autodidata, como ele mesmo se intitula, Olavo Luiz Pimentel de Carvalho²¹. Ele reside em Richmond, nos Estados Unidos, assim como Steve Bannon, que o colocou em contato com vários círculos de oficiais nos Estados Unidos. “Olavo […] aborda de modo formidável o marxismo cultural que destruiu a política sul-americana […] É um herói […] global da direita”, declarou o ideólogo conservador norte-americano ao jornal Folha de S.Paulo em 7 de fevereiro de 2019. Olavo de Carvalho é consultado pelo presidente Bolsonaro e seus filhos. Ele é reivindicado como uma inspiração por dois ministros da equipe governamental, os titulares das Relações Exteriores e da Educação, Ernesto Araújo e Ricardo Vélez Rodriguez. Após ter fabricado uma aliança das extremas direitas no Brasil, esse grupo se esforça, hoje, para construir um “contra Foro de São Paulo”, uma cúpula conservadora latino-americana, que efetivamente realizou um encontro constitutivo em Foz do Iguaçu em 8 de dezembro de 2018. Coordenado por Eduardo Bolsonaro e pela Fundação Índigo, um desdobramento do PSL (Partido Social-Liberal, o partido presidencial), reuniu participantes brasileiros, chilenos, cubanos exilados em Miami, paraguaios e venezuelanos. O ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, participou por videoconferência.
III – Distopia democrática
A ofensiva das direitas e da extrema-direita brasileira a partir de 2016 até agora ficou sem resposta. A crise econômica, o desgaste do poder, a violência da ofensiva judiciária e religiosa paralisaram o PT. O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), outro partido de esquerda submetido a pressões paralelas, está na defensiva. O candidato do PDT (Partido Democrático Trabalhista) às eleições presidenciais de 2018, Ciro Gomes, recusou qualquer perspectiva de uma frente democrática com o PT, cuja crise ele interpreta como um favor tanto para si mesmo quanto para seu partido. Ao contrário do PT, priorizam-se ajustes de contas partidárias e ideológicas e propõe-se “o esgotamento do lulismo” e “seu reformismo fraco” ²².
Essa afasia e essa autocrítica concorrentes da oposição de esquerda e centro-esquerda, paradoxalmente, fragmentaram o campo das direitas. Consolidado durante a campanha eleitoral pelo “antipetismo”, esse campo é confrontado atualmente com o desafio de ser um poder não contestado por uma alternativa progressista e que por enquanto se encontra fora do jogo. Os meios econômicos, por exemplo, se interrogam sobre a capacidade do capitão Bolsonaro de presidir o país. A fraqueza de seu discurso no Fórum de Davos, em 22 de janeiro de 2019, foi uma amostra. O poderoso grupo midiático Globo tomou uma distância crítica, assim como o grande jornal de São Paulo, a Folha. Ambos estão preocupados com a crescente influência de uma rede midiática pentecostal, a Rede Record. O peso incômodo da família do presidente provocou uma grave crise que foi resolvida com a entrada de um oitavo general na equipe governamental. Os militares, em particular o vice-presidente, general Mourão, retransmitiram as ressalvas concernentes à mudança anunciada por Jair Bolsonaro da embaixada do Brasil em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, bem como a possibilidade da instalação de uma base militar dos Estados Unidos no norte do país, próximo à Venezuela.
Essas desordens são aquelas próprias das “raposas soltas” da extrema direita social e liberal no galinheiro democrático brasileiro, abandonado pelos defensores da diversidade política, social e cultural. Essas tensões podem ganhar em intensidade, em afrontamentos judiciais e várias outras “jornadas dos desiludidos”, e podem alimentar uma mudança no alto escalão do Estado. Essas desordens, em si mesmas, não apontam para nenhuma saída de emergência para uma oposição democrática, há muito enfraquecida por suas divisões e, deixam, de fato, as forças econômicas, em suas diversidades predatórias concorrentes, consolidarem “sua reconquista do poder”²³, “fabricando o consentimento”²⁴ e “a utopia de uma refundação”²⁵ democrática, reduzindo assim o alcance da cidadania.
- Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatoire de l’Amérique Latine e pesquisador junto ao IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe.
Tradução: Luzmara Curcino, Pâmela da Silva Rosin, Simone Garavello Varella
NOTAS
¹ Texto publicado originalmente em francês, em 13 de março de 2019, no site da Fundação Jean-Jaurès: Penser pour Agir, com sede em Paris. Disponível em: https://jean-jaures.org/nos-productions/le-bresil-en-dystopie-democratique
² É diretor do Observatoire de l’Amérique Latine e pesquisador junto ao IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe.
³ Cf. Sergio Abranches. Presidencialismo de coalizão: Raízes e evolução do modelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
⁴ N.T: Em dezembro de 2017, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro retoma seu nome original, voltando a se chamar MDB – Movimento Democrático Brasileiro.
⁵ Folha de São Paulo, 07 de fevereiro de 2019.
⁶ N.T: Michel Temer ficou no poder até 31/12/2018.
⁷ N.T.: Em março de 2019, foram presos dois ex-policiais militares suspeitos do assassinato de Marielle Franco e de fazer parte de uma milícia, um deles vizinho e próximo da família do presidente.
⁸ N.T.: Ele foi substituído, em 08/04/2019, pelo economista Abraham Weintraub, que atuou 18 anos no Banco Votorantim, é fã de Olavo de Carvalho e visa combater o “marxismo cultural” na educação.
⁹ Valor Econômico, 28 de janeiro de 2019.
¹⁰ Juan Maria Bordaberry, presidente do Uruguai eleito em 1972, ficou no poder após o golpe militar de 1973 e cedeu seu lugar ao general Alberto Demicheli em 1976.
¹¹ Cf. Marcelo Godoy, “Fortes no governo, os generais estão vigilantes; entenda por que”, Estadão, 1º de janeiro de 2019.
¹² Ver Joseph Comblin, Le pouvoir militaire en Amérique latine, l’idéologie de la sécurité nationale, Paris, Jean-Pierre Delarge, 1976.
¹³ Cf. O Globo, 31 de janeiro de 2019.
¹⁴ Cf. A obra exaustiva de Flávio Henrique Calheiros Casimiro, A nova direita, São Paulo, Editora Expressão Popular, 2018.
¹⁵ Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, principal associação patronal do Brasil.
¹⁶ Particularmente via internet, cf. O Globo, 3 de fevereiro de 2019, “O neoconservadorismo ao alcance de um clique”.
¹⁷ Cf. Jessé de Souza, A radiografia do golpe, Rio de Janeiro, Leya, 2016.
¹⁸ Cf. Esther Solano Gallego, coord., Ódio como política, São Paulo, Boitempo Editorial, 2018.
¹⁹ Cf. Ronaldo de Almeida, Deus acima de todos, in Coll., « Democracia Em Risco? », São Paulo, Companhia Das Letras, 2019.
²⁰ Jair Bolsonaro se batizou nas águas do Jordão em 2016 por um pastor da igreja Assembleia de Deus. Damares Alves é pastora da Igreja Evangelho Quadrangular.
²¹ Cf. Olavo de Carvalho, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, Rio de Janeiro, Record, 2013.
²² Cf. Vladimir Safatle, Só mais um esforço, São Paulo, Três Estrelas, 2018 e André Singer, Os sentidos do lulismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
²³ Cf. Rubens R. R. Casara. O Estado pós-democrático. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
²⁴ Cf. David Colon. Propagande, la manipulation de masse dans le monde contemporain. Paris: Belin, 2019.
²⁵ Op. cit,. Cf. nota 24.
Edição 1035, 30/04/2019
http://observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/o-brasil-em-distopia-democratica/
Del mismo autor
- Haïti : un assassinat organisé en poupées russes ? 23/07/2021
- Desafios e programas nas últimas eleições presidenciais no Peru 23/06/2021
- Regionalismo latino-americano: de confusão à diluição 16/06/2021
- Paradoxos da urgência de vacinas na América Latina 10/03/2021
- Evangelismo, democracia e reação conservadora na América Latina 19/12/2019
- O Brasil em distopia democrática 01/05/2019