A proposta singular do Populismo de Esquerda
Cabe à esquerda deixar comodismo e velhas fórmulas, recuperar espírito rebelde e dialogar com a revolta.
- Análisis
Gostaria de deixar claro, desde o início, que o meu objetivo não é acrescentar outra contribuição ao já pletórico campo dos “estudos do populismo”, uma vez que não tenho a intenção de entrar no debate acadêmico estéril sobre a “verdadeira natureza” do populismo. Este livro é uma intervenção política e reconhece abertamente a sua natureza partidária. Definirei o que entendo por “populismo de esquerda” e argumentarei que, na conjuntura atual, ele proporciona a estratégia adequada para recuperar e aprofundar os ideais de igualdade e de soberania popular, que são constitutivos na política democrática.
Como cientista política, minha forma de teorizar orienta-se a partir de Maquiavel, quem, como Althusser nos lembrou, situava-se sempre “na conjuntura”, em vez de refletir “sobre a conjuntura”. Seguindo o exemplo de Maquiavel, descreverei minha reflexão numa conjuntura específica, procurando por aquilo que ele chamou de verità effettuale della cosa (verdade efetiva da coisa) do “momento populista” que hoje testemunhamos nos países europeus ocidentais. Limito minha análise à Europa Ocidental. Embora a questão do populismo seja, sem dúvida, também relevante no leste europeu, é necessária uma análise especial para esses países. Eles são marcados pela especificidade de sua história sob o comunismo, e sua cultura política apresenta diferentes características. Esse é também o caso das diversas formas do populismo latino-americano. Enquanto há “semelhanças de família” entre vários populismos, eles correspondem a conjunturas específicas que precisam ser apreendidas de acordo com os seus diversos contextos. Espero que minhas reflexões sobre a conjuntura europeia ocidental forneçam algumas percepções úteis para abordar outras situações populistas.
Mesmo tendo um objetivo político, uma parte significativa das minhas reflexões será de natureza teórica, porque a estratégia populista de esquerda que defenderei está fundada numa abordagem teórica antiessencialista, que defende que a sociedade está sempre dividida e discursivamente construída por meio de práticas hegemônicas. Muitas críticas dirigidas ao “populismo de esquerda” se baseiam na falta de entendimento dessa abordagem e essa é a razão mais importante para explicitarmos aqui. Farei referência aos princípios centrais da perspectiva antiessencialista em muitos pontos do meu argumento e darei esclarecimentos adicionais em um apêndice teórico ao final do livro.
Para desfazer possíveis confusões, iniciarei especificando o que entendo por “populismo”. Descartando o sentido pejorativo do termo, que tem sido imposto pela mídia para desqualificar todos aqueles que se opõem ao status quo, seguirei a abordagem analítica desenvolvida por Ernesto Laclau, a qual permite abordar a questão do populismo de uma forma que considero particularmente fecunda.
Em seu livro, A Razão Populista,1 Laclau define o populismo como uma estratégia discursiva de construção de uma fronteira política, dividindo a sociedade em dois campos e apelando para a mobilização dos “excluídos” contra “aqueles que estão no poder”.2 O populismo não é uma ideologia e a ele não pode ser atribuído um conteúdo programático específico. Tampouco ele é um regime político. Trata-se de um modo de fazer política que pode ter diferentes formas ideológicas, de acordo com o tempo e o lugar, compatível com diversas estruturas institucionais. Podemos falar de um “momento populista” quando, sob a pressão de transformações políticas ou socioeconômicas, a hegemonia dominante é desestabilizada pela multiplicação de demandas insatisfeitas. Nessas situações, as instituições existentes falham em garantir a lealdade das pessoas, na tentativa de defender a ordem existente. Como resultado, o bloco histórico que estabelece a base social de uma formação hegemônica é desarticulado e surge a possibilidade da construção de um novo sujeito de ação coletiva — o povo — capaz de reconfigurar uma ordem social tida como injusta.
Essa situação, sustento, é precisamente o que caracteriza a nossa conjuntura atual e, por essa razão, é apropriado chamá-la de “momento populista”. Esse momento populista indica a crise da formação hegemônica neoliberal, a qual foi implementada progressivamente na Europa Ocidental durante a década de 1980. Tal formação hegemônica neoliberal substituiu o Estado de bem-estar social keynesiano social-democrata que, em trinta anos após o final da Segunda Guerra Mundial, forneceu o principal modelo socioeconômico nos países democráticos da Europa Ocidental. O centro dessa nova formação hegemônica é constituído por um conjunto de práticas políticas e econômicas que visam impor a regra do mercado — desregulamentação, privatização, austeridade fiscal — limitando o papel do Estado à proteção dos direitos de propriedade privada, livre mercado e livre comércio. Neoliberalismo é o termo atualmente usado para se referir a essa nova formação hegemônica, a qual, longe de estar limitada ao domínio econômico, também significa toda uma concepção de sociedade e de indivíduo fundada em uma filosofia de individualismo e posses.
Esse modelo, implementado em vários países da década de 1980 em diante, não enfrentou nenhum desafio significativo até a crise financeira de 2008, quando começou seriamente a mostrar seus limites. A crise, iniciada em 2007, nos Estados Unidos, com o colapso do mercado hipotecário de alto risco (subprime), evoluiu para uma completa crise bancária internacional, com a falência do banco de investimentos Lehman Brothers no ano seguinte. Massivos resgates de instituições financeiras tiveram de ser implementados para impedir o colapso do sistema financeiro mundial. A recessão econômica global que se seguiu afetou profundamente várias economias europeias e provocou uma crise da dívida no continente. Para lidar com essa crise, políticas de austeridade foram implementadas em muitos países europeus, com drásticos efeitos, particularmente nos países do sul.
Na ocasião da crise econômica, uma série de contradições se condensaram, levando ao que Gramsci chama de um interregnum: um período de crise durante o qual uma série de premissas consensuais estabelecidas em torno de um projeto hegemônico são desafiadas. A solução para a crise ainda não está à vista, e isso caracteriza o “momento populista” no qual nos encontramos hoje. O “momento populista” é, portanto, a expressão de diversas resistências às transformações políticas e econômicas observadas durante os anos de hegemonia neoliberal. Essas transformações têm levado a uma situação que poderíamos chamar de “pós-democracia”, para indicar a perda de dois pilares do ideal democrático: igualdade e soberania popular.
“Pós-democracia”, termo proposto primeiramente por Colin Crouch, assinala o declínio do papel dos parlamentos e a perda da soberania como consequência da globalização neoliberal. De acordo com Crouch:
A causa fundamental do declínio democrático na política contemporânea é o desequilíbrio agora em desenvolvimento entre o papel dos interesses corporativos e aqueles de praticamente todos os outros grupos. Tomado em conjunto, com a inevitável entropia da democracia, tem levado a política a se tornar novamente um negócio de elites fechadas, como foi nos tempos pré-democráticos.3
Jacques Rancière também usa o termo, o qual ele define da seguinte forma:
Pós-democracia é a prática de governo e a legitimação conceitual de uma democracia depois do demos, uma democracia que eliminou a aparência, o erro na conta e o litígio do povo, redutível assim ao jogo único dos mecanismos de Estado e das combinações das energias e dos interesses sociais.4
Mesmo não discordando de nenhuma das definições, meu uso do termo é um tanto diferente, porque, através da reflexão sobre a natureza da democracia liberal, pretendo trazer à tona uma característica diferente do neoliberalismo. Como é bem conhecido, etimologicamente falando, “democracia” vem do grego demos/kratos, que significa “o poder do povo”. Quando falamos de “democracia” na Europa, referimo-nos, contudo, a um modelo específico: o modelo Ocidental, que resulta da inscrição do princípio democrático em um contexto histórico particular. Esse modelo recebeu vários nomes: democracia representativa, democracia constitucional, democracia liberal, democracia pluralista.
Em todos os casos, o que está em questão é um regime político caracterizado pela articulação de duas tradições diferentes. De um lado, a tradição do liberalismo político: o Estado de direito, a separação dos poderes e a defesa da liberdade individual; de outro lado, a tradição democrática, cujas ideias centrais são a igualdade e a soberania popular. Não há uma relação necessária entre essas duas tradições, mas apenas uma articulação histórica contingente que, como C. B. Macpherson mostrou, teve lugar através de lutas comuns dos liberais e dos democratas contra regimes absolutistas.5
Alguns autores, como Carl Schmitt, afirmam que essa articulação produziu um regime inviável, porque o liberalismo nega a democracia e a democracia nega o liberalismo. Outros, seguindo Jürgen Habermas, mantêm a “co-originalidade” dos princípios da liberdade e da igualdade. Schmitt tem toda a razão em apontar a existência de um conflito entre a “gramática” liberal, que postula a universalidade e a referência à “humanidade”, e a “gramática” da igualdade democrática, que requer a construção de um povo e uma fronteira entre um “nós” e um “eles”. Porém, acredito que ele esteja enganado em apresentar esse conflito como uma contradição que leva inevitavelmente uma democracia liberal plural à autodestruição.
Em O Paradoxo Democrático (The Democratic Paradox), concebi a articulação dessas duas tradições — de fato, em última instância, irreconciliáveis —, sobre o modo de uma configuração paradoxal, como o locus de uma tensão que define a originalidade da democracia liberal como uma politeia, uma forma de comunidade política que garante o seu caráter plural. A lógica democrática da construção de um povo e da defesa de práticas igualitárias é necessária para definir um demos e para subverter a tendência do discurso liberal de um universalismo abstrato. Contudo, a sua articulação com a lógica liberal nos permite desafiar as formas de exclusão que são inerentes às práticas políticas de determinação das pessoas que governarão.
A política democrática liberal consiste num processo de negociação constante, através de diferentes configurações hegemônicas nessa tensão constitutiva. Esta tensão, expressa em termos políticos ao longo da fronteira entre direita e esquerda, pode ser estabilizada apenas temporariamente, por meio de negociações pragmáticas entre forças políticas, e essas negociações sempre estabelecem a hegemonia de uma delas sobre a outra. Revisitando a história da democracia liberal, descobrimos que, em algumas ocasiões, a lógica liberal prevaleceu, enquanto que, em outras, foi a democrática. No entanto, as duas lógicas permaneceram em vigor e a possibilidade de uma negociação “agonística” entre direita e esquerda, que é específica do regime democrático-liberal, sempre se manteve viva.
As considerações anteriores preocupam-se apenas com a democracia liberal, considerada como um regime político, mas é evidente que aquelas instituições políticas nunca existem independentemente de suas inscrições em um sistema econômico. No caso do neoliberalismo, por exemplo, estamos lidando com uma formação social que articula uma forma específica de democracia liberal com o capitalismo financeiro. Embora seja necessário levar essa articulação em consideração quando se estuda uma formação social específica, é possível, no nível analítico, examinar a evolução do regime democrático-liberal como uma forma política de sociedade, trazendo à tona algumas de suas características.
A situação atual pode ser descrita como “pós-democracia”, porque, nos últimos anos, como consequência da hegemonia neoliberal, a tensão “agonística” entre os princípios liberais e os democráticos, a qual é constitutiva da democracia liberal, foi eliminada. Com o fim dos valores democráticos de igualdade e soberania popular, os espaços “agonísticos”, onde diferentes projetos de sociedade poderiam se confrontar entre si, desapareceram, e os cidadãos são privados da possibilidade de exercer seus direitos democráticos. Com certeza, a “democracia” é ainda mencionada, mas ela foi reduzida ao seu componente liberal e significa apenas a existência de eleições livres e a defesa dos direitos humanos. O que se tornou cada vez mais central foi o liberalismo econômico com a sua defesa do livre mercado e muitos aspectos do liberalismo político foram relegados ao segundo plano ou simplesmente eliminados. Isso é o que eu entendo por “pós-democracia”.
Na arena política, a evolução para a pós-democracia se manifestou através do que propus em Sobre o Político chamar de “pós-política”, a qual borra a fronteira política entre direita e esquerda.6 Sob o pretexto da “modernização”, imposto pela globalização, partidos social-democratas aceitaram os ditames do capitalismo financeiro e os limites que eles impuseram às intervenções do Estado e às suas políticas redistributivas.
Como resultado, o papel dos parlamentos e das instituições que possibilitam aos cidadãos influenciar as decisões políticas foi drasticamente reduzido. As eleições já não oferecem mais qualquer oportunidade para decidir sobre alternativas reais, através dos tradicionais “partidos de governo”. A única coisa que a pós-política permite é a alternância bipartidária de poder entre partidos de centro-direita e centro-esquerda. Todos aqueles que se opõem ao “consenso de centro” e ao dogma de que não existe alternativa à globalização neoliberal são apresentados como “extremistas” ou desqualificados como “populistas”.
Portanto, a política se tornou mera questão de gestão da ordem estabelecida, um domínio reservado aos especialistas e a soberania popular foi declarada obsoleta. Um dos pilares simbólicos fundamentais do ideal democrático — o poder do povo — foi minado, porque a pós-política elimina a possibilidade da luta agonística entre diferentes projetos de sociedade, que é a própria condição para o exercício da soberania popular.
Ao lado da pós-política, há outro desenvolvimento que precisa ser levado em consideração para o entendimento das causas da condição pós-democrática: o crescimento da “oligarquização” das sociedades europeias ocidentais. Mudanças no plano político tiveram vez no contexto de um novo modo de regulação do capitalismo, em que o capital financeiro ocupa um lugar central. Com a financeirização da economia, houve uma grande expansão do setor financeiro em detrimento da economia produtiva. Isso explica o crescimento exponencial das desigualdades que testemunhamos nos últimos anos.
As privatizações e as políticas de desregulamentação contribuíram para a deterioração drástica das condições dos trabalhadores. Sob os efeitos combinados da desindustrialização, da promoção de mudanças tecnológicas e dos processos de transferência de indústrias para países onde o trabalho era mais barato, muitos empregos foram perdidos.
Com os efeitos das políticas de austeridade impostos após a crise de 2008, essa situação afetou também grande parte da classe média, que entrou em um processo de pauperização e precarização. Como resultado desse processo de oligarquização, o outro pilar do ideal democrático — a defesa da igualdade — foi também eliminado do discurso democrático-liberal. O que agora domina é uma visão individualista liberal que celebra a sociedade do consumo e a liberdade que os mercados oferecem.
É no contexto pós-democrático da erosão dos ideais democráticos da soberania popular e da igualdade que o “momento populista” deve ser apreendido. Ele é caracterizado pela emergência de múltiplas resistências contra um sistema político-econômico que é cada vez mais percebido como sendo controlado por elites privilegiadas surdas às demandas de outros grupos da sociedade. No início, a maior parte da resistência política ao consenso pós-democrático vinha da direita. Nos anos 1990, partidos populistas de direita, como o FPÖ, na Áustria, e a Frente Nacional, na França, começaram a se apresentar com o objetivo de devolver ao “povo” a voz que lhe tinha sido privada pelas elites. Recorrendo à fronteira entre o “povo” e o “sistema político”, eles foram capazes de traduzir, em um vocabulário nacionalista, as demandas dos setores populares que se sentiam excluídos do consenso dominante.
Foi assim, por exemplo, que Jörg Haider transformou o Partido da Liberdade da Áustria em um partido de protesto contra a “grande coalizão”. Mobilizando temas da soberania popular, ele conseguiu articular a crescente resistência à forma como o país era governado por uma coalizão de elites que impedia o verdadeiro debate democrático.7
O panorama político, que já tinha dado sinais de radicalização de esquerda com diversos movimentos antiglobalização, mudou significativamente em 2011. Quando as políticas de austeridade começaram a afetar as condições de vida de amplos setores da população, importantes protestos populares ocorreram em muitos países europeus e o consenso pós-político começou a se desfazer. Na Grécia, o Aganakitsmenoi, e, na Espanha, os Indignados do M15 ocuparam as praças centrais exigindo “Democracia Agora!”. Eles foram seguidos pelo movimento Occupy, que nasceu nos Estados Unidos, e que teve manifestações em diversas cidades da Europa, particularmente em Londres e em Frankfurt. Mais recentemente, o Nuit Debout, na França, em 2016, foi a expressão dessas formas de protestos referidas como os “movimentos das praças”.
Esses protestos foram o sinal de um despertar político após anos de relativa apatia. Contudo, a recusa desses movimentos horizontais de se envolver com instituições políticas limitou o seu impacto, e, sem uma forma de articulação com a política institucional, logo começaram a perder o seu dinamismo. Embora tais movimentos de protesto tenham certamente desempenhado um papel na transformação da consciência política, foi apenas quando eles foram acompanhados por movimentos políticos estruturados, prontos para se envolverem com instituições políticas, que conseguiram alcançar resultados importantes.
É na Grécia e na Espanha que assistimos aos primeiros movimentos políticos que implementam uma forma de populismo voltada ao restabelecimento e ao aprofundamento da democracia. Na Grécia, o Syriza — uma frente social unificada nascida da coalizão entre diferentes movimentos de esquerda em torno do Synaspismos, o antigo Partido Eurocomunista — sinalizou a emergência de um novo tipo de partido radical, cujo objetivo foi desafiar a hegemonia neoliberal por meio da política parlamentar. Estabelecendo uma sinergia entre movimentos sociais e partidos políticos, o Syriza foi capaz de articular, de uma vontade coletiva, uma variedade de demandas democráticas, e isso permitiu-lhe chegar ao poder em janeiro de 2015.
Infelizmente, o Syriza não foi capaz de implementar o seu programa antiausteridade, em função de uma resposta brutal da União Europeia, que reagiu com um “golpe financeiro” e forçou o partido a aceitar os ditames da Troika. Tal fato não invalida a estratégia populista que levou o partido ao poder, mas certamente levanta importantes questões pertinentes às limitações que a adesão à União Europeia impõe acerca da possibilidade de levar a cabo políticas que desafiam o neoliberalismo.
Na Espanha, em 2014, a ascensão meteórica do Podemos deveu-se à capacidade de um grupo de jovens intelectuais de aproveitar o terreno criado pelos Indignados. Isso levou à criação de um movimento partidário, visando romper o impasse da política consensual estabelecida através da transição para a democracia, cuja exaustão tornou-se evidente. A estratégia do Podemos de criar uma vontade coletiva popular, construindo uma fronteira entre as elites (la “casta”) e o “povo”, ainda não conseguiu desalojar o direitista Partido Popular do governo, mas membros do Podemos conseguiram entrar no Parlamento, onde depuseram um importante grupo de deputados. Desde então, eles representaram uma força importante na política espanhola e transformaram profundamente o cenário político na Espanha.
Desenvolvimentos semelhantes ocorreram em outros países: na Alemanha, com o Die Linke, em Portugal, com o Bloco de Esquerda, e na França, com La France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, o qual, em junho de 2017, um ano após a sua criação, elegeu dezessete deputados no Parlamento e agora representa a principal oposição ao governo de Emmanuel Macron. Finalmente, o inesperado bom resultado do Partido Trabalhista britânico, sob a liderança de Jeremy Corbyn, também em junho de 2017, é outro sinal de uma nova forma de radicalismo emergindo em diversos países europeus.
Os partidos social-democratas, que, em muitos países, desempenharam um papel importante na implementação de políticas neoliberais, são incapazes de compreender a natureza do momento populista e de enfrentar o desafio que ele representa. Prisioneiros de seus dogmas pós-políticos e relutantes em admitir os seus erros, eles não conseguem reconhecer que muitas das demandas articuladas pelos partidos populistas de direita são democráticas e uma resposta progressista deve ser dada a elas. Muitas dessas demandas vêm de grupos que são os principais prejudicados pela globalização neoliberal e que não podem ser satisfeitos dentro do projeto neoliberal.
Classificar os partidos populistas de direita como de “extrema-direita” ou “neofascistas” e atribuir o seu apelo à falta de educação é especialmente conveniente para as forças de centro-esquerda. É uma forma fácil de desqualificá-los sem reconhecer a própria responsabilidade da centro-esquerda na sua emergência. Estabelecendo uma fronteira “moral” que exclui os “extremistas” do debate democrático, os “bons democratas” acreditam que eles podem impedir a ascensão das paixões “irracionais”. Tal estratégia de demonização dos “inimigos” do consenso bipartidário pode ser moralmente confortável, mas é politicamente frágil.
Para impedir a ascensão dos partidos políticos de direita, é necessário conceber adequadamente uma resposta política através de um movimento político de esquerda que aliará todas as lutas democráticas contra a pós-democracia. Em lugar de excluir a priori os eleitores dos partidos políticos de direita, como necessariamente movidos por paixões atávicas, condenando-os por manterem-se eternamente prisioneiros dessas paixões, é necessário reconhecer o núcleo democrático na origem de muitas dessas demandas.
Uma abordagem populista de esquerda deve tentar oferecer um vocabulário diferente, a fim de orientar essas demandas em direção a objetivos mais igualitários. Isso não significa tolerar a política dos partidos populistas de direita, mas recusar imputar aos seus eleitores a responsabilidade pela forma como suas demandas são articuladas. Não nego que há pessoas que se sentem perfeitamente à vontade com esses valores reacionários, mas estou convencida de que há outras que são atraídas por esses partidos porque sentem que eles são os únicos a se preocupam com os seus problemas. Acredito que, se uma linguagem diferente estiver disponível, muitas pessoas podem lidar com seus problemas de uma forma diferente e participar da luta progressista.
Já há diversos exemplos de que tal estratégia pode funcionar. Por exemplo, nas eleições legislativas de 2017, na França, Jean-Luc Mélenchon e outros candidatos de La France Insoumise, tais como François Ruffin, receberam o apoio de eleitores que, anteriormente, tinham votado em Marine Le Pen. Argumentando com as pessoas que, sob a influência da Frente Nacional, foram levadas a ver os imigrantes como responsáveis por sua privação, ativistas conseguiram fazer com que esses eleitores alterassem seus pontos de vista. Seu sentimento de terem sido deixados para trás e seu desejo por reconhecimento democrático, anteriormente expresso numa linguagem xenófoba, pôde ser formulado por um vocabulário diferente e dirigido para outro adversário. Algo similar ocorreu na Grã-Bretanha, nas eleições de junho de 2017, quando 16% dos eleitores do Partido de Independência do Reino Unido (UKIP), partido populista de direita, votaram em Jeremy Corbyn.
Agora que o discurso antissistema também vem do lado progressista e que as forças políticas de esquerda estão traçando uma fronteira entre o “povo” e a “oligarquia”, estamos realmente no centro de um “momento populista”. O que está em jogo, neste momento, portanto, é como a resistência à pós-democracia será articulada e como “o povo” será construído. Há muitas formas de fazer isso. Nem todas as construções da fronteira política populista têm objetivos igualitários, mesmo quando a rejeição ao sistema existente é feita em nome da devolução do poder ao povo.
Ambos os tipos de populismo visam a aliar demandas de insatisfação, mas eles o fazem de maneiras muito diferentes. A diferença reside na composição de um “nós” e como o adversário, o “eles”, é definido.
O populismo de direita alega que trará de volta a soberania popular e que restaurará a democracia, mas essa soberania é entendida como “soberania nacional” e reservada àqueles considerados os verdadeiros “nacionais”. Os populistas de direita não tratam da demanda por igualdade e constroem um “povo” que exclui numerosas categorias, normalmente imigrantes, vistos como uma ameaça à identidade e à prosperidade da nação. Vale a pena assinalar que, embora o populismo de direita articule muitas resistências contra a pós-democracia, ele não necessariamente apresenta o adversário do povo como constituído pelas forças do neoliberalismo. Seria, portanto, um equívoco identificar a sua oposição à pós-democracia como uma rejeição ao neoliberalismo. Sua vitória poderia levar a formas nacionalistas autoritárias de neoliberalismo que, com o intuito de recuperar a democracia, na verdade, a restringiria drasticamente.
O populismo de esquerda, ao contrário, procura recuperar a democracia para aprofundá-la e ampliá-la. Uma estratégia populista de esquerda visa aliar as demandas democráticas em uma vontade coletiva para construir um “nós”, um “povo”, confrontando um adversário comum: a oligarquia. Isso requer o estabelecimento de uma cadeia de equivalência entre as demandas dos trabalhadores, dos imigrantes e da classe média precarizada, assim como outras demandas democráticas, tais como as da comunidade LGBT. O objetivo dessa cadeia é a criação de uma nova hegemonia que permitirá a radicalização da democracia.
1 N do T: LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
2 LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. Nova York e Londres: Verso, 2005.
3 CROUCH, Colin. Post-Democracy. Cambridge: Polity, 2004, p. 104.
4 RANCIÈRE, Jacques. Disagreement: Politics and Philosophy. Tradução de Julie Rose, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999, p. 102.
5 MACPHERSON, C. B. The Life and Times of Liberal Democracy. Oxford: Oxford University Press, 1977.
6 MOUFFE, Chantal. On the Political. Abingdon: Routledge, 2005.
7Em “The ‘End of Politics’ and the Challenge of Right-Wing Populism”, analisei o crescimento do Partido da Liberdade da Áustria sob Jörg Haider. Veja em: Francisco Panizza (Ed.), Populism and the Mirror of Democracy (Nova York e Londres: Verso, 2005), pp. 50-71.
- Chantal Mouffe {e uma cientista política pós-marxista belga. Desenvolve trabalhos na área da teoria política. Estudou em Lovaina, Paris e Essex e tem trabalhado em várias universidades na Europa, América do Norte e América Latina.
Esse texto é o primeiro capítulo do livro Por um Populismo de Esquerda, de Chantal Mouffe, publicado pela editora Autonomia Literária.
13/01/2020
https://outraspalavras.net/outrapolitica/a-proposta-singular-do-populismo-de-esquerda/
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