Dialética da dependência
05/12/2000
- Opinión
O pensamento social latino-americano é responsável por alguns dos maiores
avanços teóricos da segunda metade do século XX. A crítica da teoria do
comércio internacinal -feita pela Cepal e, em particular, por seu fundador,
Raul Prebisch- desmascarou os argumentos que pretendiam naturalizar,
legitimizar e perpetuar a divisão entre um centro capitalista industrializado
e uma periferia primário exportadora.
A denúncia do intercâmbio desigual esteve na base dos processos de
industrialização em países da periferia que, mesmo com suas deformações e
limitações, constituiram uma das grandes novidades positivas do século XX. A
industrialização substitutiva de importações foi a estratégia que comandou
esse processo.
A internacionalização da economia e o surgimento de ditaduras militares em
vários países do continente fez com que a teoria da dependência passase a
ocupar o centro das preocupações do pensamento social latino-americano. Uma
das versões da teoria da dependência foi protagonizada por Fernando Henrique
Cardoso e pregava a internacionalização aberta das nossas economias, como
forma de crítica dos obstáculos corporativos que, do seu ponto de vista,
freavam a continuidade do desenvolvimento no continente. Sua obra desembocou
numa proposta de interdependência (como demonstra Roberta Traspadini, em seu
livro "A teoria da (inter)dependência", Ed. Topbooks), de que seu governo,
com a abertura da economia ao mercado internacional, a desregulação, a
privatização e a dependência do capital externo são as expressões mais
claras.
A outra vertente da teoria da dependência, de caráter marxista, teve no
também brasileiro Ruy Mauro Marini, seu principal expoente. Marini, formado
no Rio de Janeiro, pertenceu à primeira geração de professores da
Universidade Nacional de Brasilia, pertendendo também ao primeiro grupo de
pessoas condenadas pela ditadura militar, junto com Darcy Ribeiro, entre
outros, a 15 anos de prisão. Marini seguiu sua carreira intelectual no Chile
e no México, onde suas obras, com dezenas de edições, o transformaram num dos
intelectuais mais importantes da América Latina.
Sua teoria articula a forma de inserção das economias periféricas no mercado
internacional com os mecanismos de acumulação de cpaital e de exploração do
trabalho. Tendo chegado tarde ao mercado mundial, as burguesias da periferia
buscam compensar o atraso tecnológico elevando o nível de exploração da força
de trabalho por baixo do seu valor, no que Marini chama de "super-exploração"
do trabalho. Esse mecanismo, por sua vez, entre outras consequências,
estreita ainda mais o mercado de consumo popular, provocando uma cisão entre
este e a esfera alta do consumo, do qual passa a depender em grande medida a
realização do capital, junto com os mercados externos, via exportação.
Dessa forma Marini pôde desvendar o mecanismo essencial de acumulação de
capital nas economias dependentes, responsável pelo caráter deformado e
acumulador de cada vez maiores contradições no seu desenvolvimento. Seus
textos foram os mais importantes para que a nova esquerda pudesse compreender
o caráter do golpe militar e da ditadura que se instalava no Brasil em 1964,
enquanto os cepalinos e seus seguidores de distintos matizes se perdiam em
previsões sobre a estagnação a que estaria condenado o país, ao dissociar
desenvolvimento econômico e democracia política.
A obra de Marini ganhou tal importância, que FHC e José Serra dedicaram um
longo artigo a tratar de critica-la, recebendo uma resposta correspondente da
parte de Marini. No Brasil, no entanto, a obra de Marini era, até aqui,
praticamente inédita, salvo um pequeno livro de artigos, já esgotado. A
crítica de FHC e Serra foi publicada pela revista do Cebrap, porém, numa
demonstração do caráter desses autores, não deram espaço para a resposta de
Marini -textos que haviam sido publicados originalmente no mesmo número da
Revista Mexicana de Sociologia.
O lançamento agora no Brasil de uma antologia dos principais textos de Ruy
Mauro Marini, pela editora Vozes, na coleção "A outra margem", do Laboratório
de Políticas Públicas da UERJ, permite aos brasileiros tomar conhecimento da
obra de Marini, três anos depois de sua morte, no Rio de Janeiro. O volume
inclui suas principais obras, entre elas o texto completo de seu livro mais
conhecido "Dialética da dependência", que dá nome ao conjunto dos textos.
O volume inclui ainda a resposta integral de Marini às críticas de FHC e
Serra, permitindo visualizar plenamente as diferenças substanciais entre as
duas concepções da teoria da dependência -a da interdependência e a marxista.
Mais ainda, possibilita constatar a atualidade dessa teoria e os mecanismos
que permitem sua adequação à fase histórica atual do capitalismo.
As duas últimas décadas do século XX viram, por um lado, diversificarem-se os
mecanismos de dependência, sofisiticando-se tanto a tecnológica quanto a
financeira. Desde a crise da dívida das economias periféricas, estas
perderam capacidade de expansão e viram seus espaços internacionais
diminuídos. Por outro lado, as formas de super-exploração do trabalho, até
então típicas das sociedades periféricas, se estenderam até o próprio centro,
com o fim do pleno emprego na Europa ocidental e a generalização das
políticas de "flexibilização laboral". Estas fizeram com que o trabalho
precário elevasse de forma acentuada sua proporção no mercado laboral, mesmo
nos países centrais do capitalismo, tendo como modelo os EUA -onde a jornada
laboral tornou-se mais extensa até mesmo do que a japonesa- e a Inglaterra,
isto é, os casos típicos de flexibilização laboral, imposta pelo
neoliberalismo clássico e aprofundada pela chamada "terceira via", oxigênio
novo para aquela ideologia.
Uma interpretação contemporânea das sociedades capitalistas -agora não apenas
das periféricas, mas também das centrais- tem na obra de Ruy Mauro Marini um
apoio e uma referência indispensáveis para os que consideram que a dinâmica
do processo de acumulação e suas correspondentes determinações sociais
fornecem o marco geral obrigatório para a compreensão da natureza das
contradições que movem as formas de organização e de reprodução social dos
homens.
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