Entrevista Márcio Pochmann:

País é prisioneiro da elite nacional

03/03/2006
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O professor e pesquisador Márcio Pochmann, da Unicamp, deixa claro que o modelo econômico não permite a adoção das políticas sociais universais que o país precisa. O Brasil vive a crise mais grave do padrão de desenvolvimento do capitalismo da sua história, afirma o economista Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Pochmann acredita que a sociedade brasileira passou por um processo de regressão social e econômica, que coloca o país cada vez mais distante do seu potencial de desenvolvimento. Em 1980, a renda per capta do brasileiro era um terço do morador dos Estados Unidos. Atualmente está em um quinto. No mesmo período, diminuiu substancialmente também a porcentagem do Trabalho no Produto Interno Bruto (PIB). “O quadro social pode colocar abaixo a democracia, considerando que somos um país de baixa cultura democrática”, prevê o economista, que foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy) e coordenou o "Atlas da Exclusão Social no Brasil", série de estudos com uma radiografia da exclusão social. Para ele, o País não está condenado ao desemprego nem à exclusão social, conseqüências das políticas de sucessivos governos. “Estamos prisioneiros pela opção da elite nacional, que praticamente abandonou a política do pleno emprego, da produção e do trabalho em nome da financeirização da riqueza”, afirma. O processo de desaburguesamento da classe média e de desproletarização da classe operária cria a oportunidade de união política dos dois grupos em torno de mudanças. “A forma de desestruturação da sociedade brasileira está constituindo uma oportunidade de resistência em melhores condições que tivemos no passado recente”, acredita. Pochmann questiona estudos produzidos a partir dos números da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), elaborada a partir de entrevistas com 400 mil pessoas e de visitas a cerca de 140 mil domicílios em todo o país, realizada em 2004, pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A pesquisa indica que a desigualdade caiu sistematicamente desde 1993. O índice Gini, que mede a concentração de renda, passou de 0,571, em 1993, para 0,535, em 2004 (mais perto de zero, maior a igualdade). Segundo o estudioso, a pesquisa foi explorada de forma ideológica pela imprensa e pelo governo. “O grande destaque aos números da pobreza e redução da desigualdade foi muito mais conivência com o modelo econômico do que uma posição de cientista social comprometido com a verdade”. Pochmann avalia que o índice Gini trabalha com uma base de dados restrita ao centro da distribuição da renda e apresenta apenas informações de parte dos estratos sociais. Os números dos mais pobres e ricos ficam de fora. Independente disso, a Pnad não significa elevação da qualidade de vida dos pobres. “A redução da desigualdade se deve não pela melhoria de todas as rendas, sendo que a dos mais pobres teria crescido mais que a dos mais ricos. Foi decorrente da queda em termos reais da renda dos mais ricos. Isso não aponta para uma redução da desigualdade que indique uma melhora social de forma generalizada”, diz o pesquisador. Os novos empregos com carteira assinada criados durante o governo Lula representam um ponto positivo, mas apresentam baixa remuneração. Dados do economista indicam que de cada três postos abertos, dois pagam até 450 reais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sustentado que a política econômica não atrapalha a realização de políticas sociais. “É um equívoco do presidente, que não entendeu que para um governo de esquerda a centralidade é a economia”. Leia a seguir a entrevista exclusiva com Marcio Pochmann. - Quais as principais conseqüências da política econômica e social para a população brasileira nas últimas duas décadas? MP – Estamos diante da mais grave crise do padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A evolução da renda por habitante mostra um quadro de estagnação. Crescendo levemente acima da média nos últimos 25 anos, comparavelmente à evolução população economicamente ativa. No conjunto do país, há indicadores de regressão social e econômica. Estamos nos distanciando daquilo que poderíamos ser. Em 1980, tínhamos cerca de um terço da renda per capta dos Estados Unidos. Em 2004, o Brasil caiu para um quinto. Temos também uma regressão na distribuição funcional da renda, que permite separar trabalho e capital. - Qual o tamanho da regressão? MP - Em 1980, o Brasil tinha uma renda do trabalho de metade do PIB. Em 2003, a renda do trabalho era 36%. Houve uma regressão de 14%. Nos países desenvolvidos, a renda do trabalho representa mais de 60%. Os indicadores de violência e desemprego também regrediram. Não existe possibilidade de se manter por mais tempo nessa situação, que não aponta para perspectivas de um país. O quadro pode colocar abaixo a democracia, considerando que somos um país de baixa cultura democrática, lamentavelmente. O país não possui 50 anos de democracia, tratada tão somente pelo sufrágio universal e pelo voto direto. Os órgãos internacionais vêm para o Brasil e identificam que metade da população aceita mudanças de sistema político, porque a democracia no Brasil não possibilitou mudanças concretas para melhor nas condições de vida. Precisamos considerar até onde conseguiremos levar um quadro econômico tão desfavorável para o conjunto da população. - O país apresenta cerca de 10% da população desempregada e 25% na informalidade, junto com um processo de desindustrialização. Como ficou o mundo do trabalho? MP - Há algumas interpretações da desestruturação do mundo do trabalho. Uma delas sustenta que foi decorrente das grandes transformações tecnológicas. O avanço causaria o desemprego, que deveria estar associado ao aumento da produtividade. Com isso, não haveria do que reclamar, já que cresceríamos tecnologicamente. Seria o custo do progresso. Para outra interpretação, as empresas estariam ávidas a contratar mais trabalhadores, que não estariam preparados para ocupar as vagas ofertadas. As duas explicações tiram a responsabilidade da política econômica e dos governos pelo desemprego. Foram levadas à exaustão e perderam a validade. Não somos um país condenado ao desemprego nem à exclusão social, que resultam das opções dos governos. A Pnad de 2004 mostrou que quando há crescimento econômico, amplia-se o nível de emprego, inclusive assalariado com carteira assinada, o melhor emprego gerado pelo capitalismo brasileiro. - Por que estamos nessa situação? MP - Estamos prisioneiros pela opção da elite nacional, que praticamente abandonou a política do pleno emprego, da produção e do trabalho em nome da financeirização da riqueza. O Estado nas últimas duas décadas financia organismos financeiros concentrados em pequenas famílias. Isso não é produtivo para a geração de postos de trabalho. O nível de desemprego é um caso sem paralelo. Desestrutura famílias e leva a uma grave dificuldade de inserção dos jovens. Esse é um dos principais problemas nacionais. - Quais as maiores dificuldades da juventude? MP - Temos a quinta maior população juvenil do mundo. A cada duas pessoas desempregadas, uma tem menos de 25 anos. Em nenhuma geração, a juventude viveu uma situação tão grave, que requer uma ação muito mais contundente enquanto prioridade nacional. Temos uma geração que infelizmente não conhece o trabalho sério e bem remunerado. Isso não apenas compromete as próximas gerações como reforça as contradições do país. Embora sejamos um país de baixa escolaridade, com a média do brasileiro de seis anos e seis meses, nossos jovens têm muito mais escolaridade do que a média nacional. Os jovens com maior escolaridade não encontram postos de trabalho decente e estamos exportando mão de obra qualificada para outros países, porque aqui não são geradas as vagas necessárias. - Em 20 anos, como ficou a qualidade de vida da maioria da população? MP - Depende da lente que usamos para analisar. Tomando como referência o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que é uma tentativa de síntese, teria havido aparentemente uma melhora. Precisamos discutir com maior profundidade o conceito de desenvolvimento humano, sustentado sobre três indicadores gerados em um ambiente neoliberal, que permite países regredirem econômica e socialmente - como é o caso do Brasil - e melhorem no IDH. Isso mostra a contradição dos indicadores. - Qual a sua avaliação das transformações sociais tendo como base o IDH? MP - Do ponto de vista do balanço das duas ultimas décadas, a expectativa média de vida aumentou em geral. O que represente deixar de viver 60 anos na pobreza para viver 70 anos na pobreza extrema? É um ganho viver mais, sem dúvida. No entanto, viver dez anos a mais na extrema pobreza é desenvolvimento humano? A pessoa continua pobre durante mais tempo. Apresenta-se isso como melhoria humana. Eu concordo, mas o indicador precisa ser mais bem qualificado. O outro indicador aponta que caiu a taxa de fecundidade de forma substancial, especialmente nas famílias pobres, reduzindo inclusive a mortalidade infantil de forma expressiva. Parte da explicação pela queda da mortalidade infantil é que as mulheres pobres deixaram de ter filhos. Devemos levar em consideração que o filho que não nasceu não pode morrer. Tivemos avanços importantes no saneamento básico. Mesmo assim, estamos longe de estar bem, especialmente na coleta de lixo. Houve melhoras em determinadas cidades com a urbanização de favelas. Todos os indicadores nos colocam ainda procurando vencer problemas que outros países resolveram 60 anos atrás. No balanço geral, é muito pouco considerando o potencial do Brasil se não tivesse abandonado o compromisso com o crescimento econômico desde a década de 80. - Hoje existe uma diversidade de formas de contratação de trabalhadores. Foram criados mecanismo que levaram à precarização, como a criação de cooperativas de empregados e a contratação de autônomos. Qual influência disso na estrutura social brasileira? MP - O quadro de semiparalisia econômica vem acompanhado de mudanças profundas na sociedade brasileira, que é muito diferente de 25 anos atrás. Por exemplo, a classe operária dos anos 80 é diferente de agora. Algumas mudanças estão associadas à profunda reforma trabalhista que tivemos nos anos 90. Do ponto de vista legal, os avanços foram relativamente pequenos, comparando inclusive com outros países. No entanto, houve no Brasil uma reforma trabalhista branca feita pelo mercado. Tínhamos nos anos 80 cerca de cinco tipos de contrato de trabalho. Hoje temos algo como 18. Houve uma flexibilização enorme, que trouxe impactos não apenas na remuneração, mas também na identificação daqueles que trabalham. Foram introduzidos novos métodos de gestão junto com novas formas de contratação, que tornaram parte importante dos trabalhadores não mais companheiros, mas competidores por metas de produção e venda, que faz com que a renda do trabalho fique cada vez mais variável. Isso torna muito mais insegura a vida daqueles que dependem do trabalho, porque não há garantia de que amanhã ou no ano que vem terá renda suficiente para viver de forma digna. - Com essas transformações, quais as novas características dos estratos sociais? MP - Houve um desaburguesamento da classe média brasileira, em relação ao padrão de vida, financiamento, credito e consumo durante seu auge nos anos 70 e 80. Isso está diretamente associado a alterações na estrutura sócio-ocupacional da classe média. Com relação à classe operaria, que dependia fundamentalmente de sua força de trabalho física e mental para financiar sua sobrevivência, há sinais de desproletarização. Percebemos hoje que há cerca de 4 milhões famílias no Brasil sem remuneração. Não são nem monetizadas. A cidade de São Paulo, de acordo com o senso demográfico de 2000, tinha 350 mil famílias sem renda. Isso caracteriza um processo de desproletarização, que coloca numa sociedade moderna capitalista a inexistência de salários como mecanismo principal financiamento dos que dependem do trabalho. São dois sinais que mostram uma crescente heterogeneidade no interior das classes, com impactos importantes na organização do trabalho e na representação em sindicatos e partidos políticos. - No pensamento de esquerda clássico, o trabalho forjava a resistência ao capital. Como fazer a luta política agora, com grande parte da população desempregada e na informalidade? MP - A resistência não é forjada simplesmente porque aqueles que estão submetidos à opressão tendem a se conscientizar, mas também pelas próprias contradições geradas pelo desenvolvimento capitalista. Inclusive acredito que a forma de desestruturação da sociedade está constituindo uma oportunidade de resistência em melhores condições que tivemos no passado recente. Com o desaburguesamento da classe média, temos pela primeira vez a possibilidade da união do que seria a classe operária e a classe média. A classe média no Brasil nunca constituiu uma aliança com os trabalhadores. A eleição do presidente Lula em 2002 foi uma oportunidade inédita, porque parte importante da classe média direcionou seu voto para o PT em função da avassaladora crise que vive em termos de reprodução social. A oportunidade não foi aproveitada, mas isso não significa que novas alianças não possam ser construídas. - Os dados da Pnad indicam que a desigualdade cai sistematicamente no Brasil desde 1993 e o índice Gini melhorou. Por outro lado, a renda dos lares caiu 16%. Como você avalia esses números? MP - Os dados devem ser compreendidos dentro daquilo que representam. A Pnad é uma informação por amostra, por domicílio, que se refere muita mais à renda do trabalho do que outras formas, como o capital, juros, lucro, renda da terra, aluguel de imóveis etc. A renda do trabalho representa 36%, ou seja, temos boas informações sobre parte da renda nacional. Os ricos, de maneira geral, não fazem parte da pesquisa. São representados, mas há uma subestimação da renda. O Pnad representa 60% da renda pessoal disponível na contabilidade nacional. Há uma sub-declaração. Isso não retira o reconhecimento de que houve uma redução da desigualdade. Não porque todas as rendas cresceram. Por exemplo, a renda do trabalho ficou congelada em 2004. Mas houve melhorias porque a renda do segmento com melhor remuneração na pesquisa, com cerca de R$9 mil mensais, perdeu poder aquisitivo. - O que isso significa? MP - A redução da desigualdade se deve não pela melhoria de todas as rendas, sendo que a dos mais pobres teria crescido mais que a dos mais ricos. Foi decorrente da queda em termos reais da renda dos mais ricos. Isso não aponta para uma redução da desigualdade que indique uma melhora social de forma generalizada. Temos fundamentalmente que reconhecer que as mudanças no mercado de trabalho trazem dificuldades para medir a renda. Os dados mostram uma redução da desigualdade e da taxa de pobreza extrema, mesmo assim, devemos reconhecer que a desigualdade é extremamente alta no Brasil e precisamos de uma ação de longo prazo que fortaleça a sua diminuição. - A grande imprensa e o governo deram bastante destaque aos números, mas não foi a renda dos pobres que melhorou significativamente, mas houve uma proletarização da classe média? MP - Exatamente. É isso que indica o índice Gini, que tem referência no centro da distribuição da renda. Não é um bom indicador de desigualdade nas pontas. Está acontecendo um desaburguesamento da classe média, que está derretendo. Por isso, o índice dá impressões que não são as mais concretas. O país vive com tantos dados negativos, mas os positivos foram muito bem realçados. Isso não é necessariamente um compromisso com a verdade. Pode ser muita ideologia. Em alguns aspectos, o que nós tivemos na interpretação do Pnad foi muito mais ideológico do que uma análise séria. O grande destaque aos números da pobreza e da redução da desigualdade foi muito mais conivência com o modelo econômico do que uma posição de cientista social comprometido com a verdade. - O governo divulgou também que foram criados mais de 3,5 milhões de empregos com carteira assinada em três anos. Quais as características dos novos postos? MP - A expansão aconteceu por causa do aumento do nível de emprego e pela formalização de informais, que foram registrados. Em parte, isso se deve a posição mais rígida da Justiça do Trabalho, do Ministério Público e pela fiscalização do Ministério do Trabalho. Os dois movimentos resultaram em dados positivos. O emprego formal aumentou mais quando a economia cresceu, como em 2004 e agora em 2005. Com crescimento, o país terá mais emprego. Por outro lado, o emprego com carteira assinada aberto tem um perfil de remuneração muito baixo. Em 2005, de 1 milhão e 500 mil postos de trabalho abertos até outubro, 90% são com remuneração até dois salários mínimos - cerca de 600 reais. De cada três postos abertos, dois estão na faixa de um a um e meio salário mínimo - até 450 reais. Não são salários dos melhores. O país teve problemas grandes para gerar empregos. Agora geramos em número não suficiente e com problema de qualidade. A questão agora é como melhorar a qualidade do emprego em termos de remuneração. É um bom problema quando comparado a um período que nem emprego existia. - No entanto, os empregos de remuneração baixa não contribuem para o aumento da renda do trabalho no PIB. MP - Isso ainda é algo a ser considerado. O país apresenta ganhos financeiros bastante significativos. Entre 7 a 8% do PIB são transferidos para poucas famílias, detentoras dos títulos públicos. O emprego precisa crescer mais rapidamente com melhores salários, com a diminuição substancial da taxa de juros e a renegociação da dívida para evitar a transferência de ganhos financeiros para famílias muito ricas. - O professor sustenta que com crescimento econômico vai diminuir o desemprego. Como fica a idéia da reforma trabalhista como forma de desonerar a produção e gerar empregos? MP - Os dados de 2004 mostram que o emprego formal cresceu tanto nas micro e pequenas empresas como nas grandes empresas. É mais uma argumentação que foi utilizada de forma ideológica na tentativa de destruição dos direitos dos trabalhadores. No capitalismo, o emprego não é determinado pelo custo do trabalho. Se houver demanda e renda para consumir aumentará a produção e, por conseqüência, o emprego. Fora disso, temos uma visão distorcida que levou a questão para o lado da oferta, ou seja, quanto menor o custo de trabalho, maior o emprego. É um equívoco que não se mostrou correto. - De acordo com o professor, no período da democratização do país, na década de 80, houve um consenso sobre o pagamento da dívida pública. Depois disso, o Estado brasileiro passou a ser estruturar para servir aos interesses dos credores financeiros. Como isso aconteceu? MP - Tivemos o ciclo da industrialização, que começou em 1930 e foi até 1980. Desde então, vivemos o ciclo da financeirização. Os principais mecanismos de valorização do capital são financeiros, fictícios. Não são operacionais, produtivos e concretos como anteriormente. O financiamento desse ciclo vem sendo sustentado no setor público. Tivemos nos anos 80 um forte crescimento da dívida pública, em parte associada ao problema da dívida externa. Com isso, alguns segmentos específicos, especialmente os exportadores, foram os principais privilegiados pela política de financeirização. O sobre-fôlego da financeirização foi possível a partir da entrada de recursos externos no Brasil. - Dessa forma, o Brasil colocou em marcha políticas neoliberais? MP - O país teve que fazer as privatizações e a regulamentação financeira, que tornou os ricos com maior poder para a condução da política econômica. Isso faz com que a economia seja conduzida hoje de acordo com os interesses de 20 mil clãs de famílias, que respondem por 80% da totalidade dos títulos dívida pública. Esse segmento tem um poder tão grande que são capazes de orientar a política econômica. Não deixam cair a taxa de juros, senão pegam o dinheiro, deixam de financiar a dívida e vão embora. A economia brasileira foi organizada para atender cada vez mais esses interesses. Foi criada uma secretaria do Tesouro, que controla o gasto público no país, com o objetivo de canalizar recursos para o pagamento do serviço da dívida pública. A área econômica tem uma coordenação e a equipe tem metas e cronogramas, discutidos diariamente pelos analistas econômicos e pelos jornais. - Diferentemente da área social, que não recebe o mesmo tratamento... MP - A questão social ao longo do tempo permaneceu esquecida, inclusive porque a área não tem coordenação. Não existe o reconhecimento da dívida social, metas e cronogramas. Só aparece como tragédia. É traduzida pelos meios de comunicação quando há um assassinato ou uma chacina. A temática não é politizada, a despeito de ser o problema mais grave do país. - A política econômica não é apenas uma imposição externa. Contempla também os interesses dessas 20 mil famílias? MP - Com certeza. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) reclama quando a taxa de juros está alta, mas as grandes empresas também são ganhadoras com a política econômica. Se a economia cresce, ganham vendendo mais. Se a economia não crescer e a taxa de juros estiver muito alta, ganham porque parte importante da sua riqueza está financeirizada. Na realidade, há um apoio político à macroeconomia. O mais fácil para um governo é fazer essa opção. Difícil é tentar uma alternativa. Para fazer algo diferente, será preciso mexer com poucos setores com um poder decisivo na opinião pública, na mídia e nos partidos políticos. - A carga tributária é alta, baixa ou mal estrutura no Brasil? MP - Temos uma carga tributária regressiva. Pagam mais impostos aqueles que menos ganham. Ela é alta e concentrada na população pobre. Porém, é baixa em relação aos extratos superiores de riqueza. Precisamos de tributos cada vez maiores sobre a renda, não sobre o consumo, que faz pessoas pobres e ricas pagarem o mesmo imposto para comprar o mesmo produto. Isso é uma estrutura regressiva que penaliza os mais pobres. O Brasil é um país para poucos do ponto de vista da dominação da riqueza. Isso está associado ao país não ter passado por rupturas. É um país sem passado revolucionário e reformas civilizatórias. Nunca tivemos uma reforma tributária progressiva, que fizesse os ricos pagarem impostos. Os ricos praticamente não pagam impostos, tanto porque encontram brechas na legislação ou pela falta de leis, como taxas sobre a riqueza e herança. Há uma estrutura de privilégios desde a tributação até o financiamento do consumo, que dificilmente se encontra em outros países. - O professor trabalha com uma dívida social em torno de R$7,2 trilhões para promover a cidadania a todos os brasileiros. Como vocês chegaram ao número? MP - O objetivo do estudo foi mostrar que os governos brasileiros estão gastando muito pouco na área social. Para reverter o quadro, precisamos de investimentos muito maiores. É possível em um período relativamente curto de tempo superar as nossas mazelas. Para isso, precisamos reconhecer o tamanho da dívida, seja na educação, saúde, habitação, transporte, saneamento, pobreza e questão agrária. O esforço que fizemos foi identificar em oito complexos da intervenção pública a distância que separa o Brasil de hoje do país da inclusão. Também dimensionamos o custo que representaria os investimentos nessas áreas. A estimativa da dívida social, dez vezes maior que a dívida financeira pública, é para chamar atenção que precisamos de uma mudança cultural no entendimento dos principais problemas da sociedade. Também para levar a uma conscientização da inversão de prioridades que precisamos fazer. Não dá para gastar mais a quantidade de recursos em transações financeiras e deixar a área social exposta à escassez de recursos. - Como pagar a dívida social? MP - É possível pagar com o compromisso com o crescimento econômico. Se o país crescer entre 5% e 6% ao ano, podemos ter em 10 anos por meio da carga tributária uma quantidade de recursos para financiar a área social três vezes maior. Enfrentaríamos as mazelas sociais crescendo e alterando o padrão das políticas públicas, que precisam operar de maneira convergente, integrada e articulada. Não dá mais para continuar tendo políticas que tratem dos pobres da saúde, da educação, do trabalho. O pobre é um só e precisa de uma interferência pública multidimensional. - O presidente Lula tem afirmado que a macroeconomia não impede a execução de políticas sociais. Você concorda? MP - É um equívoco do presidente, que não entendeu que para um governo de esquerda a centralidade é a economia. Nos últimos 25 anos, o modelo econômico não permitiu políticas sociais decentes. O Brasil precisa de políticas universais e focalizadas. O que vem acontecendo é uma opção por políticas focalizadas, em detrimento de universais. Para fazer políticas universais, é preciso comprometer recursos significativos. O país apresenta pobreza universalizada e querem combatê-la com políticas focalizadas. O modelo econômico não permite as políticas sociais decentes e universais que o país precisa.# A sociedade brasileira em números Dívida social R$7,2 trilhões Riqueza Nacional 5 mil clãs de famílias controlam 40% 10% da população rica se apropria de 75% 90% do povo brasileiro fica apenas com 25% Títulos da Dívida Pública R$120 bilhões de reais no pagamento dos títulos repassados para 20 mil clãs de famílias (cerca de R$6 milhões de reais por família ao ano) Previdência Social R$140 bilhões de reais no atendimento de 21 milhões de famílias de aposentados (cerca de R$6 mil por família ao ano) Bolsa Família R$7 bilhões de reais na assistência de 8 milhões de famílias (cerca de R$72 por mês para cada família) Trabalho Em 1980, a renda do trabalho era 50% do PIB. Agora representa 36% 4 milhões famílias vivem sem remuneração (350 mil famílias na cidade de São Paulo) Novos empregos De três novos postos abertos, dois estão na faixa de um a um e meio salário mínimo (até 450 reais) Educação e Juventude De duas pessoas desempregadas, uma tem menos de 25 anos 4 milhões e 300 mil de jovens desempregados 1 milhão e 350 mil jovens qualificados saíram do país na década de 90 em busca de oportunidades A cada 10 alunos matriculados no primeiro ano do ensino fundamental, somente um conclui a universidade Enquanto o Brasil tem 35% dos jovens de 15 a 17 anos matriculados nas escolas, o Chile apresenta 85%. Para chegar nesse nível, o Brasil teria que incorporar 4,9 milhões de jovens, que implica a construção de 50 mil salas de aulas e a contratação de 500 mil professores - Igor Felippe Santos é jornalista.
https://www.alainet.org/pt/active/10739
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