As mentiras que nos contaram na escola

22/02/2000
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"Não nos enganemos: a imagem que temos de outros povos - e até de nós mesmos - está associada à História que nos foi contada quando éramos crianças. A afirmação abre o livro do historiador francês Marc Ferro, "Como se conta a história às crianças no mundo inteiro", em que ele repassa os mitos e as verdades da história colonizada, da falta de identidade dos países que não resgatam sua história nas escolas, dos mitos aparentemente inofensivos que carregam uma brutal carga de preconceito e discriminação. Sem romper esse espelho em que nos constituímos como indivíduos resultantes de uma visão eurocentrista do mundo, não adquiriremos identidade própria, apenas refletiremos em nossa identidade a história dos outros. Um historiador norte-americano - James W. Loewen - faz um trajeto parecido, abordando diretamente o que seu livro anterior denominou "As mentiras que meu professor me contou" e no novo, "Mentiras na América". Para ele o maior escândalo da história norte-americana é a forma como são ainda hoje tratados a escravidão, a guerra civil e a longa história norte-americana de discriminação racial. Quem for a Washington encontrará um museu nacional dedicado ao holocausto do povo judeu, mas praticamente nada sobre outro holocausto - quantitativamente muito mais numeroso e brutal - o dos escravos negros - um dos maiores genocídios já cometidos cometidos contra a humanidade. A tal ponto que Loewen afirma que o comércio de escravos, um elemento central da economia do sul dos EUA antes da guerra civil, "desapareceu da história pública". Os monumentos no sul do país glorificam os soldados e generais que lutaram pelos ideais dessa região na guerra civil, como se sua luta fosse pelos ideais de "liberdade, direitos individuais e autonomia individual", sem nenhuma referência à escravidão e ao tráfico de escravos. E no Brasil, que mentiras nos foram (e continuam sendo) contadas - ou que silêncios foram calaram sobre tantas coisas essenciais - nas escolas? A lista é interminável. Para começar, nunca nos é dada a exata medida do que significou a conquista, pelos colonizadores, dos territórios americanos. Não ficamos sabendo que a chegada do capitalismo colonizador a estas terras representou o maior banho de sangue que a humanidade já presenciou - se unimos a destruição dos povos indígenas e o tráfico de escravos, junto com a escravidão. A chegada do capitalismo - sim, por que disto se trata: a "descoberta" é um capítulo da revolução comercial que, por sua vez, pertence ao que Marx chamou de "acumulação primitiva"- a nossos pagos se deu em meio ao maior genocídio da história da humanidade. A chamada "independência", por sua vez, não nos é contada na sua verdadeira natureza - o pacto de elite, um negócio de pai para filho, pelo qual se impôs o gattopardismo e, com ele, a monarquia em lugar da república, a continuação da escravidão em lugar do triunfo do trabalho livre. Menos ainda nos dizem que se formalizava a hegemonia inglesa sobre nossa economia, substituindo a ibérica. Pior: na independência, que nos transmitam as palavras do monarca para seu filho: "Ponha a coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça", sem dizer que esses "aventureiros" éramos nós, brasileiros e que a operação tratava de evitar que tivéssemos por aqui "aventureiros" como Bolivar, San Martin, Artigas, Sucre, O'Higgins, patriarcas da independência, fazendo com que tivéssemos que nos contentar com os esforços solitários de José Bonifácio. O mais tardio final da escravidão das Américas, por sua vez, é atribuído à bondadosa princesa Isabel, quando já havia terminado na prática, sem que os abolicionsitas ganhem seu lugar devido. A própria "revolução de 30" - o movimento de maior transcendência, até aqui, na nossa história - não menciona que o novo pacto de elites que a funda deixa ao abandono os direitos da maioria esmagadora da população, localizada no campo, perpetuando o monopólio da terra e separando o destino dos trabalhadores da cidade daqueles do campo. Não nos relatam na escola - e menos o faz a grande imprensa - o conluio que gerou o crime de ruptura da democracia no Brasil em 1964. Não fiamos sabendo que o conjunto das elites orquestrou o maior complô da nossa história contra a democracia, com participação protagonista da grande imprensa na sua unanimidade, exceção feita à Última Hora. Não saímos portanto da escola preparados para cobrar tribunais que julguem os responsáveis por aquele crime e por todos os outros cometidos posteriormente durante a ditadura militar. Estamos "preparados" para conviver com os nossos pactos de elite, em que os carrascos renovam seus discursos, para culpar o povo pelo "atraso" do país. Uma identidade democrática começa a ser forjada na escola, pela compreensão do que é o mundo de hoje, de que como chegamos ao que somos hoje, de quem detêm as alavancas fundamentais do poder, de quem é responsável pelo mundo tal qual ele é e como ele pode ser transformado num universo mais humano e solidário. Nesse sentido, somente uma educação política - não no sentido partidário, mas cidadão - nos prepara para o resgate das misérias - materiais e morais - que as elites dominantes têm imposto ao Brasil.
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