Reconciliação entre todos os brasileiros
03/09/2001
- Opinión
O Exército Brasileiro compara o MST ao crime organizado e aos maiores
inimigos do país e, mais do que chocados, nos deixa perplexos. Essa
avaliação, antes que preconceito, instransigência ou incompatibilidade
ideológica, revela uma profunda desinformação e uma desatenção histórica.
Afinal, o que nos difere dos animais irracionais é o processo de
aculturação,a possibilidade de aproveitar às gerações contemporâneas,o
conhecimento e a experiência das gerações passadas. Senão vejamos: O MST luta
e defende, in totem, os mesmos valores e ideais da Revolução Francesa de
1789.
Num país em que 1% de poderosos detem 46% das terras agriculturáveis e 32
milhões de pessoas passam fome, lutar pelo acesso à terra é lutar pela
dignidade dos homens, por seus direitos humanos. Um desígnio que , antes de
ser um dogma de qualquer ideologia política, é uma aspiração cristã,
difundida por seu maior teórico, Jesus Cristo.
Há anos trabalho com meninos infratores presos e é significante a parcela
destes que se revela filhos ou netos de agricultores expulsos do campo pela
impossibilidade de sobrevivência, expulsos do campo para engrossar as
fileiras do crime nas grandes cidades, perpetualizando o paradigma brasileiro
que, segundo Joel Rufino, é o da competência das elites para manter a
dominação e a competência do povo em sobreviver a essa dominação. Talvez o
que preocupe o exercito seja a contundência do MST na sua estrategía, mas não
podemos nos esquecer que, se houve de fato distribuição de terra neste país,
ela só se deu em áreas em que o MST foi mais incisivo, tomando a iniciativa e
pressionando, pois sob esse governo, ou sob seus antecessores, reforma
agrária nunca foi agenda prioritária. Endossa essa afirmação a constatação de
que o governo FHC gastou no pagamento do serviço da dívida pública, somente
no ano de 1999, mais do que os recursos destinados à reforma agrária nos
últimos 73 anos da República. Ainda assim, pelos resultados obtidos até hoje,
conseguindo o extraordinario feito de dar terra a mais 1% de todos os
brasileiros, é admirável que o movimento dos sem-terras tenha se mantido
dentro de parâmetros logísticos extremamente éticos, ocupando áreas devolutas
e improdutivas, e delas se retirando imediatamente quando equivocado em sua
avaliação, ou demandado por decisão judicial. Na sua análise o Exército
Brasileiro revela-se também preocupado com atividades urbanas do MST,
especialmente com invasôes de próprios públicos, consideradas demonstrações
de perigosa radicalização e classificas como atentatórias à ordem pública,
fingindo desconhecer que essas iniciativas encontram acolhida nos direitos
civis, defendidas por intelectuais da dimensão de Noam Chomsky do
Massachussets Institut of Tecnology e Pierre Bourdieu, do College de France,
como parte de uma ampla açao global contra o stablishment político-economico,
uma contra-ofensiva internacional que diminua os gravames da globalização,
cuja lógica é a excludência de dois terços da humanidad. Propondo políticas
que assegurem,como pleiteou Rui Barbosa, que se trate igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na exata medida da sua desigualdade.Uma singela
máxima cristã. Também não podemos esquecer que o MST , graças aos dados
censitários disponíveis, já produziu a maior distribuição de terras da
história deste país, e que por isso mesmo, não deveria ser objeto da
perseguição,muito menos ser comparado ao crime organizado. Afinal, nesta
grande batalha que se dispôs a lutar, o MST não produziu uma só vítima de
morte, enquanto já sofreu mais de 1600 baixas, com apenas três dos seus
algozes condenados.
Acredito , sinceramente, que exista nos quadros do exército expressiva, e
ouso dizer, majoritária parcela, que consiga entender a dimensão histórica
deste movimento e que veja a confrontação ideológica com o MST como nada mais
do que um ranço do passado.
O MST é hoje o mais importante e abrangente movimento da sociedade civil em
todo o mundo, e centenas de milhares de brasileiros vâo passar a noite de
hoje sob um teto próprio e de barriga cheia, graças à sua maravilhosa
ousadia. Sua proposta de um país mais justo, em que a terra onde viceja o
capim possa produzir comida para os famintos, onde a migração para os grandes
centros urbanos possa ser desestimulada, criando no campo condições básicas
para a dignidade de todos, há de um dia ter força para diminuir a
intolerância e propor a reconciliação entre os brasileiros.
Movimento pacífico e pacifista, o MST nos provoca a reflexão e nos propôe um
desafio: mais do que uma população brasileira, precisamos sonhar com um povo
brasileiro.A concretização desta personalidade não se dá pelo compartilhar do
mesmo idioma, música, paixões esportivas e bandeira comum. Mas se dará quando
o Brasil tiver, como seus maiores patrimônios, a ética e a justiça social,
valores que sâo o lastro moral do MST.
* Antonio Veronese, Artista plástico, Autor do painel Tensão No Campo,
símbolo do MST instalado desde 1996 no Congresso Nacional em Brasília.
https://www.alainet.org/pt/active/1426
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