Lições da crise energética
29/10/2001
- Opinión
Odebate acerca das causas e soluções para a crise energética corre o
grande risco de ficar dominado pela perspectiva de curto prazo,
submetido a uma verdadeira chantagem do imediato. De um lado, o
Governo parece querer transformar a crise em pretexto para aprofundar
a opção privatista. Assim é que se promete a chamada "garantia
cambial", que em bom português significa indexar as tarifas ao
câmbio. Promete-se comprar toda a energia que for produzida, ao preço
que for solicitado. desde que, "pelo amor de Deus, nos ajudem a sair
da trapalhada em que nos metemos!"
Esta opção implica a elevação das tarifas, com graves ônus tanto para
os consumidores residenciais quanto para o desenvolvimento do país.
Implica também a entrega a interesses privados de importante
patrimônio público, representado tanto pelas empresas estatais ainda
não vendidas quanto pelas águas e pelo potencial hidrelétrico.
De outro lado, muitos críticos do projeto privatista têm defendido o
modelo de grandes barragens hidrelétricas, modelo que alcançou seu
ápice sob a ditadura militar e cujas conseqüências principais foram o
aprofundamento das desigualdades sociais e regionais. Um milhão de
pessoas deslocadas compulsoriamente por grandes barragens engrossaram
o êxodo rural e o crescimento da miséria nas favelas e periferias
urbanas. Isso para não falar da ocupação violenta dos territórios de
povos indígenas; da destruição acelerada de recursos ambientais; da
transformação das empresas estatais em mecanismos de poder e
corrupção, operando à margem de qualquer controle social.
Este modelo operava segundo dois princípios básicos: em primeiro
lugar, um sistema altamente centralizado; em segundo lugar, a
dependência quase exclusiva da hidreletricidade e, mais
particularmente, de megaempreendimentos hidrelétricos.
A tentativa de resgatar o modelo dos anos 70 e 80 está fundada em
mito segundo o qual um sistema nacional interligado, estruturado
sobre grandes barragens hidrelétricas, é eficiente, barato e pouco
impactante do ponto de vista ambiental. Esse mito cai por terra
quando se lê o relatório "Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo
para a Tomada de Decisões", lançado em novembro de 2000 pela Comissão
Mundial de Barragens, organismo independente do qual participaram
representantes de diferentes setores envolvidos com o tema.
Após dois anos consagrados a uma ampla avaliação das grandes
barragens no mundo, a comissão concluiu: a) grandes barragens custam
muito mais que o previsto e produzem menos energia que o planejado;
b) seus impactos ambientais são enormes e irreversíveis; c) além de
terem deslocado de 40 a 80 milhões de pessoas em todo o mundo,
provocaram o empobrecimento nas regiões onde se formaram imensos
lagos artificiais.
Mais importante: o relatório concluiu que a economicidade de grandes
barragens "permanece imponderável, pois os custos ambientais e
sociais foram mal contabilizados". E acrescentou: "a não-
contabilização desses impactos e o não-cumprimento dos compromissos
assumidos levaram ao empobrecimento e sofrimento de milhões de
pessoas".
Como se vê, o mundo vem aprendendo com o fracasso do modelo baseado
em grandes barragens. Já se encontra em discussão no Congresso
americano projeto para que os representantes dos Estados Unidos em
organismos multilaterais votem contra qualquer proposta de construção
de barragens que não considere as recomendações da Comissão Mundial
de Barragens.
E o que recomendou a comissão? Em primeiro lugar, que todas as
alternativas sejam profundamente estudadas, tanto para economizar ou
produzir energia quanto para promover a oferta de água e o controle
de cheias. Em segundo lugar, que nenhuma barragem seja construída sem
a aceitação pública das populações atingidas.
E quais são as lições que podemos tirar de nossa crise energética? A
primeira delas é que a política energética de um país como o Brasil
não pode ser objeto de decisões secretas. O modelo e a política
energéticas, assim como as decisões relativas a recursos hídricos,
podem hipotecar o futuro da nação, e, por esta razão, devem resultar
de amplo debate público. Ora, na contramão da história, o governo
federal baixou medida provisória reduzindo os prazos para que os
órgãos ambientais examinem estudos e relatórios de impacto ambiental.
Segunda lição a tirar da crise: é possível reduzir o consumo de
eletricidade. A economia seria infinitamente maior se, ao invés da
simples pressão sobre o consumidor residencial, fossem revistos os
acordos de fornecimento com indústrias eletrointensivas que se
beneficiam de enormes subsídios. As indústrias de alumínio, por
exemplo, exportam 70% da produção e recebem subsídios de 200 a 250
milhões de dólares ao ano para as fábricas do Pará e Maranhão.
Trocado em miúdos, isto quer dizer que destruímos nossas florestas,
inundamos terras férteis, expulsamos do campo populações ribeirinhas,
eliminamos cultural e, mesmo, fisicamente, populações indígenas .
para subsidiar o consumo de alumínio nos países dominantes - que,
desde a crise do petróleo, deslocaram para os países periféricos os
setores industriais que consomem grandes quantidades de energia.
Na verdade, precisamos rever todo um modelo econômico que apostou na
chamada "inserção competitiva" baseada, entre outras coisas, na
exportação de bens primários eletrointensivos. Isto para não falar
dos efeitos internos: enquanto a indústria de alumínio emprega 2,7
trabalhadores por cada 1.000 MWh consumidos, a indústria de alimentos
e bebidas, voltada essencialmente para o mercado interno, oferta 70,2
postos de trabalho para o mesmo consumo energético.
A terceira lição é que temos muito a fazer no terreno da redução e
racionalização do consumo. Compare-se o consumo energético de um
shopping center, cuja arquitetura energeticamente estúpida exige
iluminação e refrigeração artificiais por todo o dia, com as
tradicionais áreas comerciais de nossas cidades. E quanto ainda
poderia ser economizado se fosse aumentada a eficiência de nossos
eletrodomésticos, de nossas indústrias?
O próprio sistema elétrico opera hoje com perdas técnicas da ordem de
16,5%, que ocorrem nas linhas de transmissão mal isoladas e nas redes
de transmissão com transformadores antigos ou defeituosos. Se
alcançássemos o padrão internacional, de 6% de perdas, resultaria uma
economia equivalente à metade da produção de Itaipu, ou cerca de 10%
de toda a potência instalada no país. Se ao lado disso se engajasse
um programa de repotenciação de usinas, das usinas com mais de 20
anos de operação, poder-se-ia alcançar um acréscimo de potência de
7.7607.600 MW. Ou seja: sem nenhum nova usina se poderia obter uma
quantidade de energia equivalente aos 20% de economia que o governo
impôs à nação.
A quarta lição diz respeito às enormes possibilidades abertas por
fontes alternativas de energia cujos impactos sociais e ambientais
são irrisórios quando comparados com as energia de fonte térmica ou
hídrica. Podemos olhar para o futuro. Explorar a inesgotável fonte
representada pela economia, racionalização e conservação da energia.
E avançar na fronteira promissora das fontes alternativas.
* CARLOS B. VAINER é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da UFRJ; CÉLIO BERMANN é professor do Programa de
Pós-Graduação em Energia da USP.
https://www.alainet.org/pt/active/1516
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