As imagens do socialismo
23/01/2007
- Opinión
Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos: ou se assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo ou se assenta no aparato estatal, um rumo já conhecido.
A polêmica nascida no calor da recente proposta do presidente Hugo Chávez de criar um partido único de seus partidários na Venezuela, que vai no sentido da sua iniciativa de construir o socialismo do século XXI, parece uma boa oportunidade para animar um debate sempre vigente e necessariamente não concluído sobre o outro mundo, o qual tanto aspiramos. Como disse o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, é impossível avançar no debate sem fazer um balanço do socialismo real. Para nós formados no pensamento de Marx, a experiência passada e presente do "movimento histórico que se está desenvolvendo diante de nossos olhos" (Manifesto Comunista) é a referência inevitável neste debate.
As trajetórias de muitos movimentos sociais latino-americanos têm estreita relação com as metáforas, nas quais Marx apelou para delinear suas visões da revolução e o mundo novo. Marx não se empenhou em formular uma "teoria da revolução", ao contrário do que alguns de seus seguidores afirmavam, mas se limitou a pensar com base em imagens oriundas da experiência concreta. Suas construções teóricas pretendiam impulsionar o movimento real, não indicar um caminho único, atemporal, ahistórico, válido para todos os tempos e em todas as latitudes.
Na linha da Comuna de Paris, recordou que "os operários não têm nenhuma utopia listada para implantar pelo decreto do povo (...) não têm que realizar nenhum ideal, senão simplesmente livrar da nova sociedade os elementos que a velha sociedade burguesa agonizante leva em seu seio". Em outras ocasiões, recorreu à imagem da revolução como parteira: não é a revolução que cria o mundo novo, ela, 'simplesmente', o ajuda a nascer. Nunca considerou o Estado como a ponta de lança na construção do socialismo, instituição que sempre considerou como obstáculo ao caminho emancipatório.
Diante de nossos olhos aparecem hoje múltiplas práticas de mudança social que crescem no seio dos movimentos, da Selva Lacandona à Patagônia. São criações originais de parcelas dessas outras sociedades (de indígenas, sem-terra, desempregados, pobres das periferias urbanas) às margens do mercado e contra a acumulação de capital. No geral, não respondem a desenhos pré-fixados por tal ou qual corrente política - "não se baseam em idéias e princípios inventados por tal ou qual reformador do mundo", como disse o Manifiesto -, mas bebem nos inesgotáveis mananciais das culturas e tradições dos de baixo. Como todas elas são diferentes, suas criações são igualmente diversas e díspares.
Nos territórios dos movimentos, que são outras sociedades em movimento, surgem práticas educativas, de saúde, de produção, assentadas em relações sociais não-capitalistas. Operários de fábricas recuperadas que produzem sem capatazes e reinventan formas de divisão do trabalho que não geram hierarquias; camponeses que criam assentamentos que supõem uma verdadeira revolução cultural na vida rural; indígenas que recuperam seus saberes curandeiros ancestrais; desempregados que inventam mercadorias e as trocam com outros desempregados. Nestes espaços, a educação se converte, amiúde, em autoeducação e, portanto, adquire traços emancipatórios ao dissolver a clássica relação sujeito-objeto que reina nas aulas.
Se alguém pretende delinear o aspecto que terá o socialismo, não tem mais que observar estes outros mundos para captar traços que vão se revelando aos poucos, em multiplas práticas que são embriões do mundo novo. Mas o primordial está por vir. Ainda não sabemos como será o socialismo porque, no fundamental, vai tomando forma nas diferentes experiências dos oprimidos na medida que vão demonstrando suas potências criativas. Ao contrário dessa imagem tão apreciada por certos revolucionários, que asseguram que "o caminho está traçado" e somente falta percorrê-lo.
O entendido como propiedade estatal dos meios de produção e desenvolvimento das forças produtivas fracassou retumbantemente. O mundo novo cresce de dentro para fora e se expande horizontalmente, por fora e na contramão das instituições. Para o parto desta sociedade nova, parece necessário contar com uma ferramenta de caráter estatal - a força, a violência organizada -, esses fórceps que ajudam a 'romper a casca', para voltar às imagens de Marx. Depois, os fórceps devem ser descartados para que não se transformem em um fim em si mesmos e acabem desfigurando o mundo novo.
Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos. Ou se assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo, nos mais de 6 mil comitês de terra urbana ou nas 2 mil mesas técnicas de água, para colocar apenas dois exemplos, onde milhões de pessoas estão participando; ou se assenta no aparato estatal. Neste caso, o Estado se encarrega da produção, saúde e da educação, e com o tempo de todos os aspectos da vida. Será um Estado cada vez mais fuerte, mais poderoso, mais centralizado, que formará uma sociedade a sua imagem e semelhança: homogênea, idêntica a si mesma, sem espaços para a diferença e a dissidência. É um caminho conhecido. Com toda segurança, conduz à melhora dos índices de vida da população, mas não tem nada a ver com o socialismo nem com a emancipação. A relação mando-obediência, um dos eixos do sistema capitalista e do Estado, seguirá ocupando um lugar dominante.
Este modelo tem em seu favor a previsibilidade. Sabe-se até onde conduz, quem tem o timão e quem executa as ordens. Ao contrário, os caminhos que levam a um outro mundo, ao socialismo, digamos, são incertos, imprevisíveis e devem reinventar-se sempre. Não há modelos. No meu modo de ver, a experiência de autogoverno dos de baixo mais avançada que existe hoje é Chiapas, onde todos e todas aprendem a governar-se, dissolvendo assim o Estado. Longe de ser um modelo, é apenas um ponto de referência, a prova palpável de que é possível ir mais além do que existe, além dos caminhos trilhados que a história de mais de um século tem mostrado que reproduzem formas de opressão intoleráveis.
- Raul Zibechi é jornalista uruguaio, editor do semanário Brecha.
A polêmica nascida no calor da recente proposta do presidente Hugo Chávez de criar um partido único de seus partidários na Venezuela, que vai no sentido da sua iniciativa de construir o socialismo do século XXI, parece uma boa oportunidade para animar um debate sempre vigente e necessariamente não concluído sobre o outro mundo, o qual tanto aspiramos. Como disse o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, é impossível avançar no debate sem fazer um balanço do socialismo real. Para nós formados no pensamento de Marx, a experiência passada e presente do "movimento histórico que se está desenvolvendo diante de nossos olhos" (Manifesto Comunista) é a referência inevitável neste debate.
As trajetórias de muitos movimentos sociais latino-americanos têm estreita relação com as metáforas, nas quais Marx apelou para delinear suas visões da revolução e o mundo novo. Marx não se empenhou em formular uma "teoria da revolução", ao contrário do que alguns de seus seguidores afirmavam, mas se limitou a pensar com base em imagens oriundas da experiência concreta. Suas construções teóricas pretendiam impulsionar o movimento real, não indicar um caminho único, atemporal, ahistórico, válido para todos os tempos e em todas as latitudes.
Na linha da Comuna de Paris, recordou que "os operários não têm nenhuma utopia listada para implantar pelo decreto do povo (...) não têm que realizar nenhum ideal, senão simplesmente livrar da nova sociedade os elementos que a velha sociedade burguesa agonizante leva em seu seio". Em outras ocasiões, recorreu à imagem da revolução como parteira: não é a revolução que cria o mundo novo, ela, 'simplesmente', o ajuda a nascer. Nunca considerou o Estado como a ponta de lança na construção do socialismo, instituição que sempre considerou como obstáculo ao caminho emancipatório.
Diante de nossos olhos aparecem hoje múltiplas práticas de mudança social que crescem no seio dos movimentos, da Selva Lacandona à Patagônia. São criações originais de parcelas dessas outras sociedades (de indígenas, sem-terra, desempregados, pobres das periferias urbanas) às margens do mercado e contra a acumulação de capital. No geral, não respondem a desenhos pré-fixados por tal ou qual corrente política - "não se baseam em idéias e princípios inventados por tal ou qual reformador do mundo", como disse o Manifiesto -, mas bebem nos inesgotáveis mananciais das culturas e tradições dos de baixo. Como todas elas são diferentes, suas criações são igualmente diversas e díspares.
Nos territórios dos movimentos, que são outras sociedades em movimento, surgem práticas educativas, de saúde, de produção, assentadas em relações sociais não-capitalistas. Operários de fábricas recuperadas que produzem sem capatazes e reinventan formas de divisão do trabalho que não geram hierarquias; camponeses que criam assentamentos que supõem uma verdadeira revolução cultural na vida rural; indígenas que recuperam seus saberes curandeiros ancestrais; desempregados que inventam mercadorias e as trocam com outros desempregados. Nestes espaços, a educação se converte, amiúde, em autoeducação e, portanto, adquire traços emancipatórios ao dissolver a clássica relação sujeito-objeto que reina nas aulas.
Se alguém pretende delinear o aspecto que terá o socialismo, não tem mais que observar estes outros mundos para captar traços que vão se revelando aos poucos, em multiplas práticas que são embriões do mundo novo. Mas o primordial está por vir. Ainda não sabemos como será o socialismo porque, no fundamental, vai tomando forma nas diferentes experiências dos oprimidos na medida que vão demonstrando suas potências criativas. Ao contrário dessa imagem tão apreciada por certos revolucionários, que asseguram que "o caminho está traçado" e somente falta percorrê-lo.
O entendido como propiedade estatal dos meios de produção e desenvolvimento das forças produtivas fracassou retumbantemente. O mundo novo cresce de dentro para fora e se expande horizontalmente, por fora e na contramão das instituições. Para o parto desta sociedade nova, parece necessário contar com uma ferramenta de caráter estatal - a força, a violência organizada -, esses fórceps que ajudam a 'romper a casca', para voltar às imagens de Marx. Depois, os fórceps devem ser descartados para que não se transformem em um fim em si mesmos e acabem desfigurando o mundo novo.
Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos. Ou se assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo, nos mais de 6 mil comitês de terra urbana ou nas 2 mil mesas técnicas de água, para colocar apenas dois exemplos, onde milhões de pessoas estão participando; ou se assenta no aparato estatal. Neste caso, o Estado se encarrega da produção, saúde e da educação, e com o tempo de todos os aspectos da vida. Será um Estado cada vez mais fuerte, mais poderoso, mais centralizado, que formará uma sociedade a sua imagem e semelhança: homogênea, idêntica a si mesma, sem espaços para a diferença e a dissidência. É um caminho conhecido. Com toda segurança, conduz à melhora dos índices de vida da população, mas não tem nada a ver com o socialismo nem com a emancipação. A relação mando-obediência, um dos eixos do sistema capitalista e do Estado, seguirá ocupando um lugar dominante.
Este modelo tem em seu favor a previsibilidade. Sabe-se até onde conduz, quem tem o timão e quem executa as ordens. Ao contrário, os caminhos que levam a um outro mundo, ao socialismo, digamos, são incertos, imprevisíveis e devem reinventar-se sempre. Não há modelos. No meu modo de ver, a experiência de autogoverno dos de baixo mais avançada que existe hoje é Chiapas, onde todos e todas aprendem a governar-se, dissolvendo assim o Estado. Longe de ser um modelo, é apenas um ponto de referência, a prova palpável de que é possível ir mais além do que existe, além dos caminhos trilhados que a história de mais de um século tem mostrado que reproduzem formas de opressão intoleráveis.
- Raul Zibechi é jornalista uruguaio, editor do semanário Brecha.
Tradução: Brasil de Fato
https://www.alainet.org/pt/active/15210?language=es
Del mismo autor
- Narco-estados contra la libertad 19/07/2018
- Juegos Olímpicos: La irresistible militarización del deporte 19/08/2016
- La minería es un mal negocio 02/12/2015
- Catalunya hacia la independencia 02/10/2015
- Humanitarian crisis: Solidarity below, business above 16/09/2015
- Crisis humanitaria: Solidaridad abajo, negocios arriba 11/09/2015
- Brazil-US Accords: Back to the Backyard? 04/09/2015
- Los recientes acuerdos Brasil-Estados Unidos ¿El retorno del patio trasero? 30/07/2015
- Las repercusiones del “acuerdo” entre Grecia y la troika 17/07/2015
- China reorganizes Latin America’s economic map 09/07/2015
Clasificado en
Clasificado en:
