Da indignação à compaixão

24/04/2007
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Creio que a maioria das pessoas tem consciência da manipulação exercida pela grande imprensa. Em nome da liberdade de expressão são tantas as distorções propositais que minha paciência, neste sentido, está praticamente esgotada. Por isso, raramente vejo televisão ou leio jornal.

Mas outro dia eu passava diante de uma televisão ligada e sem querer ouvi a voz do presidente da república dando posse a alguns novos ministros de estado. Parei para ouvir o nome das novas personalidades ilustres. Infelizmente, tive que ouvir algo que me deixou compungido. O presidente dizia aos novos ministros: “vocês sabem que vão ter que trabalhar muito e ganhar pouco”.

Pensei, mas como o presidente faz uma coisa dessas com os ministros? Não foi para isso que o elegemos!

Sempre me deixou indignado a realidade dos bóias-frias da nossa região. Aqui temos muitos destes trabalhadores que levantam de madrugada para ir trabalhar na lavoura dos outros, levando bóia, quando têm, para comê-la fria, às vezes azeda e às vezes as sobras deixadas pelas formigas. Só chegam tarde da noite em casa e literalmente caem na “cama” de exaustos, para despertarem na madrugada seguinte que lhes anuncia que ganharão novamente o pão cotidiano para si e sua família; em torno de R$ 20,00 (vinte reais), na maioria das vezes sem carteira assinada. Quando era pároco fiz esta experiência com meu povo. Realmente é dureza. Como disse o presidente: muito trabalho para pouca grana.

Tristemente fiquei sabendo, através do presidente da república, que os ministros de estado têm que trabalhar muito e ganhar pouco. Por aqui sempre tem emprego para bóias frias e quem sabe lhes renda um pouco mais. O problema é que quando termina a safra eles terão que hibernar. Pior é que, com o aquecimento global, este processo está em crise também.

Existe, também, uma alternativa muito interessante que o atual governo do Brasil sempre defendeu: Reforma Agrária. Assim todos poderão plantar para comer. Os que estão exercendo cargos políticos eletivos ou não poderiam fazer como nossos bóias-frias, isto é, quando termina a safra podem acampar. Pobre tem que lutar com as armas que tem: garra, esperança e a própria pouca energia. Venham, vamos somar-nos a este povo. Afinal a promessa de Jesus é esta: “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence”(Lc 6,20). Mas o sinal antecipado do Reino é terra, vida e dignidade para todas as pessoas. Em nossa região temos vários acampamentos e os acampados estão recebendo a solidariedade de muita gente. Nossas comunidades de fé se unem e fazem campanha para que não falte o leite para as crianças, um pouco de alimento, roupas, lonas para construir os barracos, remédios...

Quando eu digo que precisam acampar é porque muita gente é trazida, inclusive de outros Estados e, depois da safra são deixados de lado como se deixa o lixo. Não lhes resta alternativa: ou o acampamento ou as ruas das cidades.

Aliás, agora estou entendo porque o povo precisa acampar. É que o ministro da Reforma Agrária “ganha muito pouco” e faz greve deixando este projeto de vida morrer (reforma agrária). Há poucos dias houve um acampamento de 500 famílias nas terras usurpadas pelo exército no município da Papanduva. O Exército não teve dúvidas, dono do poder, veio com tudo sobre o povo. Foi um verdadeiro terror. Pensei que o supremo comandante do exército fosse o presidente que outrora, durante a ditadura, também sofreu terrores. Mas parece que isto só ficou na história. Já não lhe interessa mais. Uma área nobre para o exército fazer manobras, com tanta gente precisando de terra para plantar. Busquem uma terra árida para fazer suas manobras. É preciso favorecer o fim da violência no campo e na cidade com a Reforma Agrária. Ou seria mesmo verdade a opção pelo agro e hidronegócios? Se a transposição do Rio São Francisco sair, teremos mais uma resposta. Cuidado! Jesus diz: “Mas, ai de vocês, os ricos, porque já têm sua consolação! Ai de vocês, que agora têm fartura, porque vão passar fome!”(Lc 6,24-25). Isto porque pela ganância matam a natureza e os pobres. Quando perceberem que não se come dinheiro poderá ser tarde demais.

Voltando ao assunto, o problema é do congresso nacional que, desde l988, quando foi promulgada a nova constituição do Brasil, até o momento não regulamentou o artigo 14 da mesma, para que o povo pudesse opinar através de plebiscitos e referendos. Tivesse feito, o povo poderia opinar para que os ministros, que tanto trabalham e tão pouco ganham, tivessem direito à bolsa família. Creio que já os ajudaria muito, pois são tantas famílias do Brasil que só recebem isto e sobrevivem.

Realmente deve ser muito opressivo trabalhar com tantos assessores e secretários. Cada um dando uma opinião, por vezes estapafúrdia, até chegar à assinatura do ministro aos projetos que, na maioria das vezes, não sai da teoria. Os bóias-frias não sofrem esta opressão, basta trabalhar o dia inteiro sob vigia do chefe e receber o “dinheirinho certo”.

Os ministros devem ficar muito preocupados, durante o dia, longe dos seus amplos e confortáveis apartamentos sem saberem se seus serviçais estão fazendo o trabalho de forma correta. Os bóias-frias não precisam se preocupar com isso. A maioria dispõe apenas de um barraco que dispensa maiores cuidados.

Os ministros são levados e trazidos naqueles carros oficiais pequenos e hermeticamente fechados, e nossos trabalhadores dispõem de enormes caminhões com vento à vontade.

Os ministros devem se preocupar com a aparência, ou ter pessoas que se preocupem por eles a este respeito, enquanto os trabalhadores das terras dos outros ficam o dia inteiro da cor da terra sem se preocupar. O importante é que no final do dia vão ter o dinheiro para o pão.

Mas enquanto o povo não puder decidir para elevar os baixos salários dos políticos e dos que exercem cargos políticos, o presidente poderia fazer uma medida provisória para tirar um pouco mais dos trabalhadores e assim poder aumentar, “com justiça”, os salários da classe política tão oprimida. Ou é mais uma opinião estapafúrdia?

Dom Luiz C. Eccel
Bispo Diocesano de Caçador-SC

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