Che Guevara 40 anos

21/10/2007
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Fui convidado pela direção nacional do MST para participar das comemorações internacionais do 40º aniversário do assassinato do Che Guevara em Valle Grande e La Higuera, no interior de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia). Pediram-me para ser um dos coordenadores do ato ecumênico celebrado em La Higuera, lugar em que o Che foi assassinado.

Viajei do Brasil com quinze pessoas, das quais alguns militantes do MST, coordenados pelo amigo João Pedro Stédile, companheiro de tantos anos de luta e fiel continuador da causa humanitária do Che, alguns jornalistas, um simpático casal de políticos populares (João Capiberibe, ex-governador do Amapá e ex-senador e sua esposa Janete, deputada federal), uma família de cantores da região misionera do Rio Grande do Sul, um monge zen-budista, Dom Tomas Balduíno e eu. (Não digo aqui o nome de cada um dos participantes, não porque cada um não seja importante, mas porque não pedi permissão para citá-los. Sei que os irmãos, cujos nomes revelei, não se incomodam com isso).

A viagem foi muito cansativa e a estrada de terra tem trechos perigosos nas quebradas dos Andes. Em uma altitude que chega a 2000 metros, o sinuoso caminho se cola às montanhas, tendo do seu lado e sem proteção, abismos muito profundos. Tudo isso valeu a pena pela emoção que foi percorrer a mesma “ruta do Che”, ver os lugares por onde ele passou, dar-se conta da sua coragem e sacrifício em percorrer a pé ou de jipe uma região ainda hoje quase impenetrável e muito isolada do mundo e, principalmente, deixar-se inundar pelo mesmo amor à humanidade que o mobilizou para aquela luta quase louca e suicida.

1. Na “ruta do Che”

Vallegrande é uma cidade perdida no vale que realmente é mais do que grande (enorme). Açoitada pelos ventos frios que vem dos contrafortes dos Andes, a cidade foi fundada pelos espanhóis no começo do século XVII e até hoje se mantém isolada entre caminhos de terra que desanimam qualquer viajante menos afoito. La Higuera, pequeno povoado de cem habitantes, sessenta quilômetros adiante, no meio das montanhas, é testemunha do local do seu martírio e guarda o Grupo Escolar onde ele foi preso e executado sumariamente. Hoje, esta casa é um museu comunal. Pessoas do lugar vivem de forma tão precária e sem recursos como na época do Che. Pelo que parece, o local só vê pessoas de fora uma vez ao ano, em outubro, no aniversario da morte do Che. As pessoas do local vêem então neste momento uma possibilidade de ganhar algum trocado. Esta situação ambígua pode ser percebida por qualquer um que chegue a La Higuera. Vários dos moradores contam o que os turistas querem ouvir. Mas, não parecem convencidos.

Como o Comandante podia imaginar que sua presença nestas montanhas isoladas e quase intransponíveis iria suscitar nas cidades grupos de resistência à ditadura boliviana e assim incendiar o mundo com a revolução da justiça? O Che foi ignorado pelo povo ao qual queria libertar e traído pelo partido comunista boliviano ao qual ele queria revitalizar. Ele e o seu grupo foram abandonados na montanha e entregues aos militares bolivianos que, assessorados por norte-americanos da CIA, prenderam todos e os mataram, alguns em combate e outros, como o próprio Che, em um assassinato frio.

Estivemos juntos (o nosso grupo) no memorial construído pelos cubanos sobre o fosso onde jogaram o seu corpo (ao lado do pequeno aeroporto de Vallegrande). Ali contemplamos as fotos dos companheiros caídos e descemos até o fosso onde foi depositado os corpos dos seis guerrilheiros (entre os quais o Che) e fizemos uma oração ecumênica curta, sóbria e comovente. Depois, fomos ao hospital (funciona até hoje como hospital) para onde os militares levaram o cadáver. Ali fomos à velha lavanderia onde há o tanque sobre o qual colocaram o corpo para lavar e o deixaram exposto à população. O tanque de pedra está, hoje, todo cheio de pequenas inscrições e recados com nomes de pessoas que saúdam o Che ou pedem a graça de reviver seu espírito, como os antigos cristãos sempre fizeram em um túmulo de um santo mártir. Naquele silêncio religioso, chorei de emoção e de tristeza por sinais contraditórios que percebi.

2. Uma confissão para mim dolorosa

Descobri que a memória do Che aquece de esperança transformadora grupos de todo o mundo e serve de apelo a todos os que são tocados pela confiança no futuro da humanidade. Em La Higuera, vimos e reunimos dezenas de jovens que vieram de vários paises do continente latino-americano e da Europa para homenagear o comandante e dizer seu desejo de mudar o mundo. Entretanto, tudo isso parecia ainda muito frágil.

Basta percorrer a região, como, mesmo muito rapidamente, nós o fizemos de micro-ônibus e parando em certos locais simbólicos, para perceber que a miséria e o abandono do povo continua igual ou pior. Os pobres estão mais pobres e os lavradores mais abandonados no campo vazio e sem perspectivas, ao menos aparentes. Cada vez que, em meio aquelas imensas montanhas de pedra e areia, avistávamos uma casinha de lavrador ou umas poucas vacas magérrimas pastando terra (não se vê capim), nos perguntávamos como alguém pode viver ali. Sobreviver de que? Como criar filhos, como ter o necessário indispensável à vida? A população de traços indígenas nos olha como estrangeiros que vêem alguma coisa que eles mesmos não vêem e não parecem crer. Por motivos de segurança do grupo e para não expor a vida do próprio povo, o Che não podia ter muitos contatos, nem criar laços com o povo do lugar. Até hoje, estes laços não parecem existir.

Em Vallegrande e La Higuera, a memória do Che continua sendo um fato incômodo e pouco assimilado pelas pessoas. A mulher de La Higuera que aceitou dar um testemunho pessoal no ato ecumênico só falou do seu medo. “Na época eu vivia aqui, tinha 17 anos e vi quando trouxeram os guerrilheiros para cá e ouvi os tiros. Todos nós só tínhamos muito medo e queríamos fugir daqui. Só!”.

Em Vallegrande, um jornalista amigo descobriu um único brasileiro na cidade. É pastor de uma Igreja pentecostal que veio do Brasil para converter os bolivianos ao Cristo. Pessoalmente, está bem de vida e quando lhe perguntam sobre o Che o julga um pecador iníquo que mereceu a condenação divina. Não é uma opinião isolada já que o prefeito da cidade pretendia impedir a reunião marcada por entidades internacionais e pela Fundação Che Guevara. Dizem que, no sábado, chegou a cortar a luz da cidade para esvaziar um encontro marcado dos amigos e admiradores do Che. Mesmo o povo pobre usa cartazes e recordações turísticas com a imagem do Che para ganhar dinheiro, mas poucos se identificam com a sua causa ou manifestam por ele qualquer admiração. A propaganda, até há pouco tempo, oficial lhes ensinou que ele era um estrangeiro que veio a Bolívia matar jovens bolivianos.

Entretanto, devo confessar que, mesmo as organizações que, hoje, se referem à memória inspiradora do Che e se reuniram neste aniversário, não me pareceram primar pela justa articulação e pela clareza da comunicação com todos os companheiros e pessoas envolvidas na comemoração. Desde o começo, as informações me pareceram meio truncadas e até às vezes desencontradas. Isso me pareceu dificultar e até enfraquecer a dimensão profética da comemoração social e política ali ocorrida. Lamentei ter perdido muita coisa por não ter conseguido chegar em tempo e por falta desta articulação e informação mais correta.

Posso estar enganado, mas senti como se nosso compromisso com a causa do Che não fosse ainda suficientemente forte e clara para nos tornar capazes de nos organizar melhor e de forma mais articulada. Tudo me pareceu (posso estar enganado) meio dispersivo e algumas coisas improvizadas. Com toda a admiração que tenho pelo presidente Evo Morales, não me parece justo que pelo fato dele ter antecipado sua vinda e seu discurso em Vallegrande, o encontro tenha sido esvaziado e, depois da fala do presidente, as pessoas tenham se dispersado. O que diria disso o Che?

3. Sinais de esperança nas canções de amor

Parece que o festival artístico, à noite do 08, em uma das praças principais de Vallegrande foi concorrido e coroado de êxito. Alguém me disse que o público calculado era mais de duas mil pessoas. Ali se apresentaram cantores/as de diversos países e o teor artístico era dos melhores. O Brasil foi muito bem representado pela apresentação da família Guedes, pai e filhos da região misionera do Rio Grande do Sul.

Podemos dizer que a união com o povo que, segundo parece, o encontro de reflexão social e política não conseguiu manifestar tanto, o festival de canções pareceu ter alcançado. Houve momentos que pareciam profundamente comovedores.

Esta noite de canções latino-americanas, expressões da resistência de nossos povos acabou servindo como uma espécie de vigília do ato ecumênico que os brasileiros coordenaram na manhã do 09 em La Higuera, em meio à viagem dura e arriscada pelas montanhas e vales da região.

Naquela manhã, de certa forma, éramos poucas pessoas. Muitos dos companheiros já tinham passado por La Higuera nos dias anteriores e principalmente na véspera, dia imortalizado como data da queda do Che.

O ato ecumênico começou diante da sua estátua, erguida no meio do povoado. Ali, nos apresentamos uns aos outros, pessoas de diversas origens e pertenças. Ali, renovamos nosso amor à Mãe Terra, nosso desejo de atualizar o compromisso do Che e doar a vida pela transformação do mundo. Fomos em caminhada até a frente do Museu Comunal, local que há 40 anos era um grupo escolar em cuja sala o Che foi assassinado. Ali, ajudados pela família de cantores brasileiros do sul e por outro companheiro do MST que canta muito bem, entoamos canções de esperança, relemos um trecho do diário do Che, recitamos um poema e até oramos em um momento de meditação budista. O companheiro monge zen-budista recordou a luta não violenta dos monges de Myammar pela libertação do seu povo e reafirmou a dimensão espiritual da luta pela transformação do mundo. O bispo anglicano falou que o Che foi evangélico não pela doutrina ou pela confissão de fé, mas pelo amor revolucionário com o qual deu sua vida. João Pedro Stédile expressou: o tiro que quis calar o Che não só não acabou com sua causa, mas, ao contrário, serviu para propagar sua mensagem de inconformidade com a injustiça e sua confiança revolucionária na libertação da humanidade.

3. A herança atual do Che

Há 40 anos, o Che foi apresentado ao mundo como um guerrilheiro fracassado, pobre e despojado. Não poucas pessoas o compararam com o Cristo morto na cruz. De fato, não era apenas o seu rosto e sua figura massacrada pela repressão imperial que lembrava o Cristo. Foi o gesto de dar a vida pelo povo e a sensação de fracasso de sua causa. Hoje ainda, senti este sabor estranho de uma causa que continua viva mas, ao mesmo tempo, parecendo extremamente frágil e quase como se fosse irreal e sem força. Entretanto, como a cruz de Jesus, esta doação do Che tem um apelo de vida e de vitória que não podemos negar.

Não pude ir à marcha intercontinental de povos indígenas que, nestes dias, se aproxima de La Paz e quer celebrar o aniversário de 12 de outubro (da chegada dos colonizadores na Abya Iala) com manifestações de uma nova organização dos povos indígenas. O Che deve ficar contente no céu por este fruto de sua luta.

Ao voltar ao Brasil, escutei um companheiro que me disse rejeitar o Che porque ele seria símbolo de violência como força redentora da história. Considero esta posição falsa e expressão de um dogmatismo rígido, já que as condições históricas da época do Che eram diferentes das atuais. Hoje, a maioria dos que lutam pela mesma causa concorda que o método guerrilheiro e principalmente a luta foquista não servem como métodos atuais para a libertação. Entretanto, o direito da insurreição dos oprimidos e mesmo da luta armada como opção justa são reconhecidos em casos extremos pela própria tradição cristã e por documentos romanos. Ora, esta era a leitura da realidade que o Che fazia sobre a América Latina e o mundo dos anos 60.

Comprometi-me comigo mesmo a aprofundar a dimensão espiritual da figura e da mensagem do Che Guevara. Estou convencido de que ele, em não se declarar religioso, foi mais espiritual do que se tivesse sido adepto de alguma religião. Sua dimensão evangélica se manifesta na universalidade de sua doação pela humanidade. Um poema do Che, que eu não conhecia, mostra isso. É uma oração que eu cito aqui, para concluir este meu testemunho, porque, nestes versos, o Che se inspira no Cristo pelo seu amor e doação pelos homens. O Che reverencia com seu amor até aquele que a tradição cristã considera o mau ladrão. O título é: “Poema para Cristo”. Diz assim: “Cristo, te amo. Não porque desceste de uma estrela, mas porque me revelaste que o homem tem lágrimas e angústias e chaves para abrir as portas fechadas da luz. Sim, tu me ensinaste que o homem é Deus, um pobre Deus crucificado como tu. E aquele que está à tua esquerda no Gólgota, o mau ladrão, também é um deus. Cristo, te amo”. (Che Guevara, Nandahuauzu, Bolívia, outubro de 1967).

É este espírito que quero partilhar com vocês e no qual quero continuar minha missão e junto com vocês. Hasta la Victoria! Siempre! Como nos estimulava o Che a gritar e esperar.
https://www.alainet.org/pt/active/20326?language=es
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS