Cenas de Buenos Aires
Não chores por mim, Argentina
12/06/2002
- Opinión
Meninos em plena Nueve de Julio, a avenida monumental que ainda hoje
embasbaca o turista, também já fazem como nos cruzamentos de São
Paulo: imitam equilibristas chineses, com três ou quatro bolas no ar,
uma simulação para não pedir diretamente a esmola.
Buenos Aires - Visitar a Argentina de hoje é uma viagem ao que nunca
fomos, vista de dentro do que poderemos vir a ser. Ou como no título
de um filme infantil, de volta para o futuro, de costas. A Argentina
de hoje sugere todas as coisas, do pranto de Evita, evocado no
título, que foi também o título de um belo espetáculo musical dos
anos setenta, que popularizou a canção, a Benjamin: o anjo da
história, empurrado violentamente pelo vento do progresso, olha para
trás e só vê um acúmulo de destroços. Esse empurrão não é
metáfora: na última semana, o FMI insistiu na demência e obrigou o
Senado argentino a revogar a chamada Lei de Subversão Econômica, e os
congressistas argentinos obedeceram, com o voto, inclusive, de
Alfonsín, que fez um duro discurso de crítica ao... FMI. Duhalde
firma acordos com as províncias - o equivalente dos nossos Estados -
para arrochar ainda mais as contas públicas, por exigência do... FMI.
Como FHC fez com governadores e prefeitos. Os congressistas são
autistas, para sermos generosos: não vêem, não escutam e não falam
com as ruas, cuja temperatura sobe todo os dias neste inverno.
Somente deixam as casas do Congresso sob forte proteção policial.
As filas nas portas do bancos que trabalham com câmbio são
quilométricas, em todo o centro da bela cidade. As pessoas chegam às
duas da madrugada e permanecem longas horas nas filas, até serem
atendidas, de uma em uma, para tentar salvar o pouco que restou de
suas poupanças. A fila à porta do consulado italiano chegava a ser
quilométrica, para obter um passaporte italiano e fugir rápido do
país, que um dia foi o futuro para os milhares de italianos que
povoaram a Argentina.
As ruas estão cheias de pedintes, pordioseros na hermosa lengua, não
tantos como no Brasil. Mas meninos em plena Nueve de Julio, a avenida
monumental que ainda hoje embasbaca o turista, também já fazem como
nos cruzamentos de São Paulo: imitam equilibristas chineses, com três
ou quatro bolas no ar, uma simulação para não pedir diretamente a
esmola, uma espécie de perversa ética do trabalho. E a indiferença é
a mesma, lá como cá.
As lojas das ruas elegantes, Florida à frente, estão vazias de
argentinos, que vão à calle propondo ao passante qualquer coisa,
sobretudo troca de dólares, convites para entrar e, em última
instância, que já é a primeira, um pouco de dinheiro mesmo para o
café, o almoço ou a passagem de volta . Para alguns, de volta às
villas-miséria em suas callampas que resistem mal ao duro inverno.
O turista sem olho clínico não verá ainda a queda dos anjos
argentinos, da luz aos porões do inferno: a prosperidade do passado
chegou tão alto que os capotes e manteaux de pura lã ainda são
elegantes e ainda disfarçam a necessidade. Mas lá como cá
desaconselha-se o turista a ver de perto as villas-miséria, pois a
criminalidade campeia solta com sotaque portenho.
José Nun é um velho amigo, um sociólogo e cientista político renomado
internacionalmente. Mesmo que hoje cientistas sociais já não invoquem
a revolução, Pepe me disse em conversa reservada: o que este país
necessita é de uma revolução! Nos últimos quarenta anos, dizia ele, a
Argentina foi dirigida por bandidos, sem nenhum eufemismo.
Quase 80% da dívida externa argentina é de propriedade de argentinos,
que compraram bônus do Tesouro norte-americano nos dias de
prosperidade e nos da roubalheira menemista, com as privatizações na
"bacia das almas". Mas ele não era muito otimista: dizia-me que este
país é muito conservador e, ao contrário do que o verniz cosmopolita
deixa ver, muito místico e pouco racional.
Recúerdate, dizia-me, que quem mandava durante a presidência de
Isabelita, a viúva de Perón que herdou o governo da república
austral, era um bruxo, o celebérrimo e celerado López Rega. Qué
quieres? Com esta classe dominante e estes políticos, não há saída.
Haverá alguma lição para nós brasileiros a partir do exemplo
argentino? Para além do futebol invejável de sua equipe nacional,
seria preciso retirar da experiência do nosso irmão austral que
obedecer ao FMI e conciliar com nossas classes dominantes e com a
corja de políticos que as servem só podem conduzir ao desastre.
Teremos peito ou haverá algum "não chores por mim, Brasil?"
*Francisco de Oliveira é professor-titular aposentado do Depto. de
Sociologia da USP e coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da
Cidadania da FFLCH-USP
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