Na Colômbia, é tempo de trocar as fichas de um jogo macabro?

08/04/2008
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O governo de Álvaro Uribe faz parte de um processo que começa antes dele e não terminará com ele. A presidência atual não existiria sem três fatores: Estado paramilitarizado, um conflito e uma guerrilha. E todos não são mais que instrumentos de um projeto que os inclui e tenta controlá-los e manipulá-los.

O conflito

Os conflitos armados geram refugiados, mas essa interpretação deve ser invertida no caso colombiano, no qual os deslocamentos forçados são a origem do processo. A terra dos indígenas, afrodescendentes e camponeses é a razão da guerra.

As oligarquias rurais - uma das mais reacionárias do continente - e as empresas nacionais e transnacionais, com seus aliados paramilitares e narcotraficantes, sonham em apropriar-se do generoso solo e subsolo.
Para que isso aconteça, são necessários Estado ausente e existência de um conflito. Ambas as condições sempre existiram na Colômbia.

A guerra justifica a violência, confunde agressões e resistência em uma nuvem cinzenta, transforma sindicalistas, movimentos e ativistas em subversivos e converte a repressão por meio da força em algo aceitável por uma sociedade acostumada com ela, como um mal endêmico que não se pode curar nunca.

O conflito é permanente, o inimigo, necessário: aos paramilitares seguem os “grupos emergentes”; ao cartel de Medellín, o “escritório” de “Don Berna”; as próprias Farc podem se dissolver em uma série de pequenos exércitos regionais a serviço de narcotraficantes. Acabam-se os grupos, mas não as condições em que eles foram gerados. Assim, perpetua-se o conflito para que sempre exista um inimigo. Todos são fichas em um jogo de guerra que legitima os abusos, a expulsão, a repressão e a reprodução da classe dominante.

Isso vem sendo denunciado por muitos dos movimentos sociais colombianos que viveram a guerra na própria carne, pagaram com mortos sua resistência ou simplesmente sua existência. Mas, agora, pela primeira vez, uma engrenagem se rompeu e as relações entre as elites rurais, os paramilitares e a esfera empresarial saíram à luz do sol.

O paramilitarismo

Em maio de 2006, a Corte Constitucional transformou a Lei de Justiça e Paz, legislação que regulamenta o processo de paz dos paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) com o governo Uribe. A sentença tornou abrigatória a confissão total dos crimes por parte dos paramilitares que quiserem ter penas máximas de oito anos. Antes, na versão presidencial da lei, a confissão era facultativa.

Por isso, os chefes se viram obrigados a contar ao mundo a história da paramilitarização colombiana. Nada novo, só que dessa vez são as bocas dos carrascos e não os gritos das vítimas que contam as mesmas histórias, as mesmas relações com políticos e empresários, os mesmos massacres. Paradoxalmente, os carrascos têm sido mais escutados que os massacrados; e a justiça parece acreditar mais neles.

Dessas versões livres desencadeou o escândalo da parapolítica: 70 políticos, entre parlamentares e senadores investigados pela Corte Suprema de Justiça por compra e venda de votos e pela criação, financiamento e apoio aos paramilitares da AUC (provavelmente o grupo mais sangrento da América Latina).

Quase a metade desses representantes está presa e 10 confessaram seus crimes. A maioria dos investigados pertence a partidos que apóiam o presidente, dentre eles, o seu primo, Mario Uribe, companheiro político desde o início da sua carreira.

Das versões livres pode-se desvelar o segredo fundador dos grupos paramilitares, sua função e, de forma geral, as dinâmicas do conflito colombiano. Os “paras” nada mais foram do que fichas nas mãos das elites, uma criação dela, um ator endógeno ao Estado, um instrumento de repressão aos protestos, principalmente sindicais, para poder expulsar os camponeses e seguir uma, nunca acabada, contrarreforma agrária.

Éver Veloza, o chefe paramilitar conhecido como H.H., diferentemente dos outros líderes ainda não foi extraditado para os Estados Unidos. Suas versões livres e suas entrevistas para os diários Espectador e Washington Post são fundamentais para entender o papel dos “paras”.

Ele afirma, assim como muitas organizações de vítimas e defensoras dos direitos humanos, que a extradição dos outros chefes paramilitares é uma estratégia para enterrar verdades incômodas.

H.H. fala também sobre o papel dos paramilitares no conflito colombiano, a razão do conflito e quem se beneficia com ele. “Veja como estamos. Na prisão, outros extraditados e outros estão se rearmando por falta de oportunidades. A maioria de nós não está na guerra por vontade própria, mas sim porque não há o que fazer, A guerra virou uma bolsa de emprego. Faltaram mais compromissos do governo para oferecer condições aos rapazes que se desmobilizaram. Nas cidades, não encontraram nenhuma condição. [...] É preciso falar a verdade, dessa guerra só se beneficiaram os ricos. Nessa guerra perderam os pobres e nós, que estamos presos. Nós fizemos mortos e fizemos morto ao povo. Mas os ricos se beneficiaram. É preciso contar a verdade para que essas pessoas não continuem usando a guerra para se beneficiar economicamente”.

Se a parapolítica está levando à luz a rede de relações entre paramilitares e políticos, o capítulos das relações deles com o mundo empresarial está apenas começando. A única exceção é a transnacional Chiquita Brands que aceitou acusação de ter financiado a AUC em um tribunal federal dos Estados Unidos.

H.H. conta como se gastava esse dinheiro e por qual razão uma empresa estrangeira pagava um grupo terrorista internacional: “Chegamos para recuperar o controle em Urabá, já que paralisações prejudiciais às empresas vinham acontecendo.Quando chegamos a Urabá em fevereiro de 1995, não houve mais nenhuma paralisação. Isso porque eu, pessoalmente, obrigava as pessoas a trabalhar. Em benefício de quem? Dessas empresas exportadoras”.
H.H. declarou-se culpado de, pelo menos, 3 mil homicídios, mas será extraditado aos Estados Unidos que acusam por ter exportado e distribuído “5 ou mais quilos de cocaína”.

A guerrilha

As Farc assumiram um papel político fundamental nos últimos anos, entretanto este foi o oposto àquele que provavelmente proporiam.Os atentados que precederam as eleições de 2002 e a ruptura das negociações com o governo de Andrés Pastrana empurraram à vitória o candidato da opção militar, Uribe. Rapidamente, cada uma das numerosas derrotas da guerrilha contribuíram para tirar o governo das suas piores crises. Além disso, reforçaram na opinião pública a concepção de que o governo ia por um bom caminho e da necessidade da perpetuação de Uribe no poder.
Essa mesma série de derrotas é a que mantém os índices de popularidade do presidente em níveis inverossímeis. Se as Farc não existissem, o governo teria que lidar com os problemas do país real, como as altas taxas de pobreza e desemprego.

As Farc, também, atravessam um momento de incrível dificuldade depois de ter recebido os golpes mais duros de sua história. Desacreditada frente a população, isolada internacionalmente, inclusive no campo militar ela tem sofrido importantes derrotas. Em março, morreram três integrantes do secretariado: Raúl Reyes, Iván Ríos e o histórico chefe Turofijo, que faleceu provavelmente de causas naturais. Além destes, caíram alguns membros médios fundamentais.

Com relação á inteligência, o Estado colombiano tem demonstrado uma superioridade abismal graças à cooperação e ao treinamento de ex-militares israelenses e estadunidenses. Histórias, como o anúncio da morte de Tirofijo pela boca do ministro da defesa, Juan manuel Santos, demonstram o que já se sabia: as diferentes frentes estão isoladas e atualmente as comunicações estão restritas aos correios humanos.

Mas é preciso considerar que, nos últimos 40 anos, as manchetes de jornais que dão as Farc por acabadas são capazes de cobrir toda a Plaza Bolívar, no centro de Bogotá. O grupo guerrilheiro conta ainda com uma estrutura burocrática praticamente intacta, hierarquia de comando - nova, mas em pé e reconhecida - e milheres de homens armados. Se o Estado continuar dando fortes golpes militares, existe a possibilidade de divisão do grupo guerrilheiro em frentes separadas de alcances regionais, sob o comando de pessoas sem ideologia, guiadas somente pelos enormes lucros do narcotráfico e dispostas a fazer alianças com paramilitares ou cartéis de droga. Do ponto de vista de resolução do conflito, seria evidentemente melhor negociar com uma guerrilha unida e ideológica do que com uma dezena de bandos armados.

O novo comandante das Farc é Alfonso Cano, que é símbolo de uma mudança fundamental: o novo secretariado, com a exceção de “Mono Jojoy”, já não é composto por velhos camponeses que pegaram em armas para se defender na época da La Violencia, mas sim por um grupo de ex-estudantes universitários que preferem o aspecto político, uma geração urbana, com mais formação política, acadêmica e cultural. De imediato, por essa imagem que o acompanha, é possível que os primeiros atos das novas Farc sejam de tipo militar, para convencer as tendências mais militaristas da legitimidade dos novos líderes. Com efeito, uma série de atentados recentes, aparentemente imputados às Farc, parecem comprovar essa teoria.

O início de uma nova temporada de negociações a curto prazo não será automático. É mais fácil que a guerrilha de retire para as áreas onde ainda mantém maior controle territorial, metabolize as derrotas e estude novas táticas, mais efetivas, para o cenário atual. Na organização, provavelmente debate-se se é necessário uma negociação em curto prazo para se reorganizar - o que seria útil também para o Estado aproveitar as vatagens acumuladas e provavelmente não sustentáveis a longo prazo - ou se prepara-se para um projeto de longo prazo para as próximas décadas, tendo em conta que a tual ofensiva militar funda-se em dois pilares que não podem durar para sempre: o dinheiro do Plano Colômbia e um gasto militar de 8% do produto interno bruto (PIB).

Uribe e o pós-Uribe

O futuro político de Uribe depende da resitência da coalizão que o apóia. Enquanto por esses dias foram apresentadas 5 milhões de assinaturas para chamar um referendo que permitiria um terceiro mandato presidencial, Uribe ainda não se pronunciou sobre essa possibilidade.

Em meio a escândalos, o mandato de Uribe sobrevive somente graças aos altos índices de popularidade, algo que parece cada vez mais com uma bolha de popularidade. Nos últimos meses, a aprovação que os cidadãos têm do país e do governo diverge da do presidente. Os primeiros começam a mostrar uma falta de confiança no futuro e no executivo, enquanto a provação do presidente segue subindo. Na última pesquisa trimestral do Gallup Colombia, evidencia-se como o país pede em sua maioria uma negociação com as Farc e se mostra preocupado por sua situação econômica mais do que com segurança. O risco para o presidente é que, cedo ou tarde, os colombianos relacionem o fato da sua vida estar piorando com quem nada faz para que melhore.

Alguns setores do uribismo, sobretudo os industriais, estão procurando um cenário pós-Uribe; ou um uribismo como uma cara apresentável frente a uma possível presidência de Barack Obama nos Estados Unidos e frente aos vizinhos latino-americanos. Os empresarios não se esquecem dos custos econômicos das crises com os países vizinhos, principalmente com a Venezuela, único país que compra manufatura colombiana. O comércio entre os dois países cresceu 40% no último ano e uma crise teria efeitos ainda mais graves sobre a economia colombiana, a qual está entrando em um fase de recessão. Outro tema é o tratado de livre comércio (TLC) com os Estados Unidos, cuja aprovação está suspensa em um congresso de maioria democrata, por temas relacionados ao atropelo dos direitos humanos por parte do Estado colombiano. Parece difícil uma aprovação do TLC enquanto Uribe for presidente.

Existe então um aparente contrasenso: o presidente experimenta índices de popularidade tão altos que aqueles que o levaram ao poder procuram alternativas. De um lado as elites rechaçam as aspirações plebiscitárias do presidente, que se aproxima demais do modelo de Alberto Fujimori no Peru, um mandatário tão forte que tira a capacidade da própria elite de negociar. Quando precisa negociar acordos, as associações preferem fazer-lo com um partido e não apenas com um só homem, ainda menos se este é tão popular quanto Uribe.

Por outro lado, essas entidades são historicamente institucionalistas e respeitosas da forma da democracia colombiana, modelo que deve parecer perfeito, se não quiserem que o conteúdo o seja. Os seguidos escândalos e as crescentes brigas do presidente com outros poderes institucionais fazem tremer essa forma da democracia colombiana.

Uribe e os paramilitares eram, então, parte de um mesmo projeto oligarca. Ambos já não são mais úteis.

É tempo de mudar as fichas para manter o mesmo jogo, o jogo de uma oligarquia necrófila que vive agachada sobre os sepulcros dos camponeses e que se alimenta de seus cadáveres, dor e massacre. Grupos emergentes e Juan Manuel Santos à Presidência?  (Tradução: Brasil de Fato)

Simone Bruno é jornalista italiano

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