Tomara que tudo dê certo

31/10/2002
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Creio que ninguém está habilitado a fazer previsões sobre como será o Brasil na nova fase que se inicia. As incógnitas são grandes demais. Precisaremos de tempo para poder começar a decifrar aquilo que denominei, em artigo recente, o "enigma Lula". Não pode haver dúvida, no entanto, de que temos o dever de ajudar o novo governo a dar certo. Lula é o primeiro filho do povo pobre a ascender à Presidência. É verdade que conseguiu este notável êxito equilibrando-se na corda bamba, prometendo omelete para todos sem quebrar ovo nenhum. Mas nunca rompeu com a base social ligada à sua história de vida e sua trajetória política. Suas primeiras declarações, enfatizando o problema da fome – face mais dramática da nossa questão social –, renovam esperanças. Um eventual fracasso do novo governo será um fracasso de todos nós, um fracasso do Brasil. Menos do que analistas neutros, precisamos, mais do que nunca, ser militantes claramente posicionados ao lado da esperança que nosso povo manifestou. Nenhum negativismo gratuito deve prosperar: o futuro está em aberto para ser construído. Tampouco deve prosperar a bajulação: os desafios são enormes, seja pela complexidade, seja pelo ineditismo da situação criada. Passada a ressaca das comemorações, faço aos dirigentes do PT um apelo para que não cometam um erro fatal. Refiro-me às notícias de que eles concordariam, ou até mesmo patrocinariam, uma alteração constitucional que abriria caminho para uma regulamentação parcial e casuística, ainda neste ano, do artigo 192 da Constituição. O objetivo explícito dessa manobra seria permitir a edição, antes da posse do novo governo, de uma lei complementar que concederia autonomia legal ao Banco Central. A crer no que sai na imprensa, dirigentes do peso de José Dirceu, Guido Mantega e Antônio Palocci vêm se posicionando a favor da medida, considerada por este último como "uma sinalização importante para o mercado [financeiro] da seriedade com que o PT pretende conduzir a economia". Entre todos os erros que podem vir a ser cometidos nessa fase de transição, este é, de longe, o mais importante, por seu alcance e por seu caráter irreversível. Precisa ser evitado, nem que seja por simples prudência, para ampliar o debate e amadurecer melhor a questão. Conceder autonomia legal ao Banco Central de forma açodada, em vez de seriedade, será uma demonstração de incompetência e fraqueza. A linha de argumentação dos que defendem essa medida é a seguinte: o Banco Central deve trabalhar com metas (de inflação e de câmbio) definidas com participação do governo, mas suas decisões operacionais devem ser preservadas de qualquer interferência política indevida; por isso, seus dirigentes passariam a receber um mandato de quatro anos, sancionado pelo Senado, tornando-se independentes do próprio presidente da República. O argumento, à primeira vista, é apenas simplório. Pois poderia ser usado para defender autonomia legal para todos os órgãos governamentais. Afinal, qual deles não deve ter metas? Qual não deve ser preservado de interferências indevidas? A educação, a saúde, a previdência, o Incra, o BNDES, as empresas de energia e as demais – em qual desses setores a politicagem deve ser tolerada? Em nenhum, é claro. Logo, a mesma lógica deveria conduzir à proposta de que, depois de definidas as metas setoriais, todos os ministérios, órgãos e empresas públicas fossem declarados entes autônomos, por força de lei, restando ao presidente recolher-se a uma casa de praia, para não mais interferir na racionalidade (supostamente) técnica que a partir de então presidiria as decisões dos gestores... Isso não é sério. Por trás do caráter aparentemente simplório da proposta, nela só há esperteza. É o Banco Central quem estabelece as regras de operação do sistema financeiro, gerencia as dívidas interna e externa, cuida das reservas internacionais, fixa a taxa de juros, conduz a política de câmbio, acompanha a remessa de recursos para o exterior e emite (ou deixa de emitir) dinheiro, entre outras atribuições. Tudo isso define quais serão as taxas de crescimento esperado da economia, o nível do emprego, o montante dos gastos públicos e o volume de crédito disponível para o setor produtivo real. Ou seja, o Banco Central executa o "núcleo duro" da política econômica. Talvez por isso, todos os presidentes brasileiros, incluindo Fernando Henrique, recusaram-se a aceitar esse tipo de autonomia que agora se pretende estabelecer. O PT tem todas as condições – legais, políticas e morais – para não ceder. Um Congresso em fim de mandato não pode alterar, a toque de caixa, a Constituição do país. E não custa lembrar que foi a bancada federal do PT quem tentou regulamentar o artigo 192, apresentando na época adequada um bom projeto de lei que, entre outras coisas, pretendia submeter as decisões do Banco Central (considerado independente demais!) a uma avaliação periódica por parte de instâncias representativas da sociedade. Exatamente o oposto do que se defende agora. O projeto está parado na Câmara há onze anos, barrado pela maioria conservadora. Por que aceitar que se faça em pouco mais de um mês, em sentido oposto à posição histórica do PT, uma regulamentação que os conservadores vêm se recusando a fazer há catorze anos, desde a promulgação da Constituição de 1988? O que está em jogo não é pouco. Em primeiro lugar, como disse acima, está a capacidade controlar a operação do sistema financeiro. Bancos são empresas especiais, que por definição não podem honrar seus compromissos em nenhum momento específico. Pois, em uma ponta, recebem depósitos que, em tese, seus clientes podem sacar a qualquer momento; na outra ponta, usam esses depósitos para conceder créditos, que só podem ser cobrados depois de cumpridos os prazos contratuais. Assim, os bancos estão sempre em desequilíbrio. Interessa à sociedade que eles corram esse risco, pois as operações de crédito são essenciais ao desenvolvimento econômico. Por outro lado, também interessa à sociedade que eles sejam empreendimentos seguros, pois uma crise bancária sempre é muito grave. Para compensar o risco inerente à sua atividade e garantir solidez ao sistema, os bancos – ao contrário das empresas comuns – podem recorrer a um emprestador de última instância, que lhes dá cobertura. É o Banco Central, a quem, como vimos, a sociedade concede a especialíssima prerrogativa de fabricar dinheiro. Ora, se o Banco Central (um órgão público) tem a obrigação de garantir a solvência do sistema bancário privado, usando para isso a faculdade de emitir a moeda nacional, é claro que ele precisa deter poderosos mecanismos de controle de todo o sistema. Por isso, os bancos estão sujeitos a regras muito mais estritas que aquelas vigentes para os demais setores da economia. No Brasil e em outros países, os bancos centrais dispõem de instrumentos bastante fortes de regulação do sistema financeiro, que aqui vêm sendo subutilizados por falta de vontade política. É por isso, por exemplo, que os bancos especulam abertamente contra a moeda nacional, com toda impunidade, e ganham bilhões. Aceitar a autonomia legal do Banco Central, nas condições atuais, é radicalizar essa situação. É legalizar a criação, para os bancos, de uma espécie de "território liberado", que o governo brasileiro desistiu de submeter às suas próprias decisões. Em situação de crise – situação mais do que provável –, o presidente da República estará legalmente privado de poderes para intervir, alterando a política monetária e cambial, se assim achar necessário. Sem o controle do Banco Central também não se consegue mudar o modelo econômico. E, como sempre disse o PT, é exatamente isso que precisa ser feito, sem demora. O modelo atual já faliu. Por indução externa, mas com forte apoio interno das nossas elites, realizou-se na economia brasileira uma abertura irresponsável, pois – ao contrário, por exemplo, das economias asiáticas – não contávamos com grandes empresas nacionais (capazes de conduzir uma inserção ativa no sistema internacional) nem tínhamos condições, nesse novo contexto, de gerar superávits na conta- corrente do balanço de pagamentos. Ficamos expostos a crises recorrentes, neutralizadas no curto prazo pela atração de vultosos recursos externos, em um contexto de liquidez internacional abundante. A manutenção de elevadas taxas de juros, a venda do patrimônio público e a indução à desnacionalização do sistema produtivo e dos recursos naturais do país foram os principais expedientes usados. Esse modelo de gestão se esgotou, por motivos internos e externos, e o Brasil submergiu em uma crise cambial que já se instalou. Ela ainda não nos desarticulou completamente por causa dos sucessivos aportes de recursos do FMI. Esses aportes vêm acompanhados de exigências que fragilizam ainda mais a nossa economia e preparam novas rodadas de concessões, num processo semelhante ao que levou a Argentina ao colapso. A decisão fundamental do governo Lula, na área econômica, será entre prosseguir nesse caminho ou ter coragem para mudar. Nos dois casos, há dificuldades à vista. Lula não deve hesitar em dizer isso ao povo. Mas deve deixar claro uma diferença fundamental: os sacrifícios exigidos pelo caminho atual são inúteis, pois neste caso a crise reaparecerá logo adiante, agravada; a alternativa progressista, ao contrário, contém em si as condições para superar dinamicamente suas dificuldades iniciais. A luta pelo controle do Banco Central é a mais importante arena atual desse debate. Infelizmente, porém, não é a única. Associado à defesa dessa medida estapafúrdia, e de forma coerente com ela, porta-vozes do PT vêm se propondo a manter – e até aumentar – o chamado superávit primário. Isso é tecnicamente indefensável. Superávit primário é um conceito espúrio, desprovido de consistência. É uma construção ideológica do Consenso de Washington. Do ponto de vista macroeconômico, é indiferente se o Estado emite R$ 1,00 para remunerar professores ou para remunerar milionários que vivem de rendas. Mas, pela contabilidade do FMI e do governo brasileiro, que o PT está se propondo a perpetuar, a remuneração de professores (ou a compra de merenda escolar, o investimento em sistemas de água e esgoto, a construção de hidrelétricas, etc) ameaça as metas dessa anomalia chamada superávit primário; como tal, está enquadrada nos estreitíssimos limites da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Já a remuneração de rentistas está liberada, pois simplesmente não entra nessa contabilidade oportunista, inventada sob medida. Desafio qualquer economista a me apresentar uma alegação técnica para justificar essa diferença de tratamento. Dependendo das circunstâncias, Estados nacionais podem optar, legitimamente, por ter déficits, supervávits ou equilíbrio fiscal. Ter "superávit primário", no entanto, não tem sentido nenhum. Ou melhor, serve para justificar o injustificável: em uma economia em recessão, o Estado continua retirando grandes quantidades de recursos da sociedade para continuar emitindo moeda financeira, ou moeda que rende juros (hoje de 21% ao ano), que só os bancos administram e só os ricos possuem, na maior parte entesourada. Este é o mais importante mecanismo de concentração de renda em operação no Brasil nos últimos anos. E cria a pior forma de déficit público, aquele que aprofunda a recessão. Insistir nesse caminho, em um contexto de 20% de desemprego, isso sim é uma enorme irresponsabilidade. O novo governo precisa libertar-se dessas camisas-de-força, e não criar novas. Em vez de se tornar autônomo, o Banco Central precisará trabalhar de forma intimamente articulada com o Tesouro Nacional, ambos perseguindo metas combinadas não só para a inflação e o câmbio, mas também para o emprego e o volume de crédito ofertado à economia real. Essa ação articulada deve assegurar que a economia seja irrigada com os fluxos monetários e financeiros necessários para conduzi-la, com relativa estabilidade de preços, a uma posição cada vez mais próxima do pleno emprego, ou seja, ao nível em que a produção efetivamente realizada coincida com o uso do potencial produtivo existente. Só aí deve o Estado operar em equilíbrio fiscal. Estamos longe disso. Há muito a fazer. Em vez de ficar no atoleiro, gerenciando um modelo que já faliu, uma agenda progressista – verdadeiramente séria e responsável – deveria propor um conjunto de medidas que convergissem rapidamente para três grandes metas macroeconômicas: obter equilíbrio na conta-corrente do balanço de pagamentos (sem ilusões de que conseguiremos isso mediante um choque de exportações), remontar um sistema interno de financiamento do desenvolvimento (capaz de oferecer um choque de crédito, graças a uma ação coordenada do Banco do Brasil, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste, dos fundos de pensão e do sistema bancário privado, devidamente enquadrado pela ação do Banco Central) e começar desde logo a alterar dramaticamente as condições do mercado de trabalho (com 20% de desemprego aberto e 50% de informalidade nenhuma justiça social é possível). Em paralelo, a nova política econômica deveria preparar um novo ciclo de desenvolvimento, orientado para a criação do mercado interno de massas, que exigirá pelo menos quatro precondições, de maturação mais lenta: um significativo barateamento nos custos da alimentação (para liberar poder de compra do povo para outros produtos), um enorme programa de habitação popular (para estimular não só a construção civil, mas também as variadíssimas indústrias de equipamentos domésticos), uma ampliação e retomada dos serviços públicos essenciais (altamente geradores de emprego) e a generalização do acesso a energia segura e barata. Todas essas frentes estratégicas – que no mundo inteiro formaram a base dos processos de desenvolvimento baseados no consumo de massas – apresentam baixíssimo coeficiente de importações. Se a operação montada para promover a autonomia legal do Banco Central se completar, estará eliminada a possibilidade de mudar o modelo nessa direção, ou em outra qualquer, igualmente progressista. Neste caso, o governo Lula não se constituirá plenamente. Todo o esforço para viabilizá-lo política e eleitoralmente culminará em uma espécie de Batalha de Itararé – a grande batalha da história do Brasil, que não chegou a ocorrer. Esperemos que Lula não aceite ser o presidente que foi, sem ter sido. Tomara que tudo dê certo. * César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
https://www.alainet.org/pt/active/2691?language=en
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