Barack Obama: uma vitória, uma derrota
14/11/2008
- Opinión
“Yes we can!” A repetição da expressão – “Sim, nós podemos!” – no primeiro discurso de Barack Obama como candidato eleito à Presidência dos Estados Unidos, no dia 4, simboliza o empoderamento de um conjunto da população sistematicamente humilhada no país: os afro-americanos. São eles que tomaram as ruas para eleger Obama, que saíram às ruas para comemorar a eleição, que vêem nele uma esperança. O candidato democrata expressa uma ruptura com o passado segregacionista estadunidense e com a linha política republicana do atual presidente, George W. Bush.
O presidente eleito se apropria dos recursos do movimento anti-racismo. No discurso, numa praça de Chicago, maior cidade do Estado do Illinois, tomada por dezenas de milhares de apoiadores, especialmente afro-americanos, fez uso dos recursos retóricos das igrejas de base. Não faltaram referências à terra prometida, a esperança coletiva de um novo mundo, a promessas no sentido cristão do termo. “A estrada a nossa frente será longa. Nossa subida será ingrime. Talvez não consigamos alcançar nossos objetivos em um ano ou mesmo em um mandato, mas, América, nunca estive tão confiante quanto hoje que chegaremos lá. Prometo-lhe: nós, como um povo, chegaremos lá”, declarou.
Em vez de falar dos desafios macroeconômicos de seu governo, tema recorrente em sua campanha, Obama trouxe um rosto humano para sua eleição: Ann Nixon Cooper, de 106 anos. “Nasceu uma geração após o fim da escravidão; um tempo em que não havia carros nas estradas ou aviões no céu; um tempo em que uma pessoa como ela não podia votar por dois motivos, porque era uma mulher e em virtude da cor de sua pele. E, hoje, penso em tudo o que ela testemunhou em seu século nos Estados Unidos, os momentos difíceis e a esperança, a luta e o progresso, tempos em que nos disseram que não podíamos e tempos em que as pessoas avançaram movidas pelo grito estadunidense: ‘Sim, nós podemos!’” A multidão em Chicago repetiu, ao uníssono, “Sim, nós podemos!”. E o presidente eleito, ao longo de seu discurso, usou várias vezes a expressão e, como num coro, num paralelo com a dinâmica das missas estadunidenses, o povo repetiu.
A apropriação do discurso de base não é mero oportunismo. A política de Obama nasce desses espaços. É nas igrejas que a luta anti-segregacionista estadunidense, que tem o reverendo Martin Luther King Jr. como principal expoente, se manifesta e irrompe como forca política. King (1929-1968) foi um ativista afro-americano que se tornou uma das principais referências na luta contra o racismo nos Estados Unidos. Ele liderou os movimentos contra a segregação nos anos 1960, conhecidos como movimento pelos Direitos Civis. Foi morto com um tiro em 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee, até hoje um Estado conservador – foi onde o republicano John McCain, adversário de Obama, obteve um de seus resultados mais significativos: 57% dos votos. Um dia antes do assassinato, King fez um discurso, com paralelos estilísticos e semânticos com os de Obama: “Temos dias difíceis pela frente. Mas isso não me importa agora. Pois eu vi o topo da montanha. […] Deus me permitiu subir a montanha. E eu vi para além. Eu vi a terra prometida. Posso não chegar até lá com vocês, mas quero que saibam que nós, como um povo, chegaremos à terra prometida”.
A reverenda Bernice King, filha do líder do movimento pelos Direitos Civis, declarou que “o trabalho e o sacrifício de seu pai não haviam sido em vão” em virtude da vitória de Obama. A religiosa concedia a entrevista aos choros, numa igreja em Atlanta, capital do Estado da Geórgia, em que a euforia era ensurdecedora. Fiéis, todos afro-americanos, vibravam e gritavam. Cenas similares se repetiram em quase todas as cidades estadunidenses, seja em igrejas, seja em marchas espontâneas.
Neopentecostalismo republicano
A dinâmica discursiva de Obama rejeita o tom religioso de Bush, identificado a correntes conservadoras do protestantismo, o neopentecostalismo. A visão conservadora do atual presidente foi retomada por McCain, mas principalmente pela candidata republicana a vice-presidente, Sarah Palin.
O neopentecostalismo republicano se baseia na idéia de que, no fim dos tempos, um grupo de cristãos está destinado a ter poderes absolutos e reorganizar a vida na terra. Tais “escolhidos” teriam a tarefa de se preparar para esse destino profético e lutar continuamente contra as forcas do mal que querem dominar o planeta de Deus. A fundamentação do neopentecostalismo está na teologia de William Branham (1909-1965). Considerado um profeta por grupos evangélicos estadunidenses, ele influenciou o neopentecostalismo, pregando que a Salvação tem de ser promovida pela “força da espada”, ou seja, na guerra permanente contra elementos inimigos.
O branhamismo permeou a ideologia do governo Bush, iniciado em 2001. Foi o sustentáculo da argumentação para a invasão do Afeganistão e do Iraque, respectivamente em 2001 e 2003, definidas pelo presidente como guerras do bem contra o mal.
Na política interna, o neopentecostalismo serviu para criar uma rede institucional de apoio ao governo, formalizada com o nome de Comitê Nacional de Políticas. O reverendo Ted Haggard e Grover Norquist, assessores próximos do presidente, foram os principais articuladores da rede neopentecostal. A principal tarefa do Comitê foi ser um canal de transmissão de orientações do governo para igrejas conservadoras, para influenciar a opinião pública.
A direita no poder
Obama rompe com o conservadorismo religioso de Bush, mas não representa uma alternativa para a orientação politica dos Estados Unidos. Chega ao poder com apoio popular histórico, como um fenômeno histórico, mas faz parte de uma corrente tradicional do Partido Democrata. Esse legado maldito – tanto quanto o de dois mandatos de Bush – pesa sobre Obama.
O candidato eleito sinaliza para a preservação da política do atual presidente na medida em que pretende convidar membros do Partido Republicano para formar seu governo. As primeiras indicações para a nova gestão democrata são de políticos da linha mais conservadora do partido de Obama. Rahm Emanuel, escolhido como chefe de gabinete, atuou nos projetos de livre-comercio na Presidência de Bill Clinton (1993-2001) e apoiou a invasão do Iraque. Muitos dos conselheiros de Clinton, com tendência conservadora, são personalidades próximas a Obama, como o presidente do Citibank, Bob Rubin, e Larry Summers, ex-secretario de Tesouro. Ambos são neoliberais.
Na politica externa, as diferenças entre os planos de Bush e Obama são mais táticos do que estratégicos O democrata defende uma retirada gradual do Iraque, sem apresentar uma projeção clara e uma data para o fim da invasão Mas, nos debates presidenciais, disse que ataques militares a outros países, como Paquistão e Irã, serão realizados, se seus governos não modificarem sua atuação politica. Obama pretende manter a invasão do Afeganistão e deslocar para o país parte das tropas no Iraque.
Cooptação
Obama pode usar seu carisma e sua influência nas igrejas progressistas estadunidenses e nos movimentos de luta contra o racismo para institucionalizar e cooptar organizações combativas. Nesse cenário, estará aniquilando a força de contestação de seu governo de concertação da direita.
A eleição de Obama representa uma vitória contra o racismo e o neopentecostalismo, mas ao mesmo tempo uma derrota na perspectiva de um projeto transformador social para os Estados Unidos. Nesse sentido, o democrata não pretende combater as raízes da pobreza de seu país. Pesquisas oficiais estimam que 13% dos 305,8 milhões de estadunidenses vivem abaixo da linha da pobreza. Nas grandes cidades, a taxa chega a 18,5%.
Chicago, centro da campanha de Obama, símbolo das dificuldades socioeconômicas dos Estados Unidos e terceira maior cidade do país, com 2,9 milhões de habitantes, tem bolsões de pobreza que se assemelham a favelas do terceiro mundo, como Bronzeville e Woodlawn. Quarenta por cento da população desses bairros, 95% afro-americana, vivem abaixo da linha da pobreza, sem acesso a saúde pública, e 55% dos economicamente ativos estão desempregados ou subempregados. Nos Estados Unidos, a população afro-americana é marginalizada e chamada de “subclasse”, abaixo da classe explorada.
É nas contradições mesmas da cooptação institucional – como lidar com o dinheiro e os cargos que Obama lhes destinará – que os movimentos sociais estadunidenses terão de se reinventar. Encontrar a dialética da radicalização num cenário de institucionalização se torna a esperança – o “hope” tão propalado pelo candidato democrata – diante dos desafios da luta de classes e da resistência ao imperialismo no coração do Império.
http://www3.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/barack-obama-u...
O presidente eleito se apropria dos recursos do movimento anti-racismo. No discurso, numa praça de Chicago, maior cidade do Estado do Illinois, tomada por dezenas de milhares de apoiadores, especialmente afro-americanos, fez uso dos recursos retóricos das igrejas de base. Não faltaram referências à terra prometida, a esperança coletiva de um novo mundo, a promessas no sentido cristão do termo. “A estrada a nossa frente será longa. Nossa subida será ingrime. Talvez não consigamos alcançar nossos objetivos em um ano ou mesmo em um mandato, mas, América, nunca estive tão confiante quanto hoje que chegaremos lá. Prometo-lhe: nós, como um povo, chegaremos lá”, declarou.
Em vez de falar dos desafios macroeconômicos de seu governo, tema recorrente em sua campanha, Obama trouxe um rosto humano para sua eleição: Ann Nixon Cooper, de 106 anos. “Nasceu uma geração após o fim da escravidão; um tempo em que não havia carros nas estradas ou aviões no céu; um tempo em que uma pessoa como ela não podia votar por dois motivos, porque era uma mulher e em virtude da cor de sua pele. E, hoje, penso em tudo o que ela testemunhou em seu século nos Estados Unidos, os momentos difíceis e a esperança, a luta e o progresso, tempos em que nos disseram que não podíamos e tempos em que as pessoas avançaram movidas pelo grito estadunidense: ‘Sim, nós podemos!’” A multidão em Chicago repetiu, ao uníssono, “Sim, nós podemos!”. E o presidente eleito, ao longo de seu discurso, usou várias vezes a expressão e, como num coro, num paralelo com a dinâmica das missas estadunidenses, o povo repetiu.
A apropriação do discurso de base não é mero oportunismo. A política de Obama nasce desses espaços. É nas igrejas que a luta anti-segregacionista estadunidense, que tem o reverendo Martin Luther King Jr. como principal expoente, se manifesta e irrompe como forca política. King (1929-1968) foi um ativista afro-americano que se tornou uma das principais referências na luta contra o racismo nos Estados Unidos. Ele liderou os movimentos contra a segregação nos anos 1960, conhecidos como movimento pelos Direitos Civis. Foi morto com um tiro em 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee, até hoje um Estado conservador – foi onde o republicano John McCain, adversário de Obama, obteve um de seus resultados mais significativos: 57% dos votos. Um dia antes do assassinato, King fez um discurso, com paralelos estilísticos e semânticos com os de Obama: “Temos dias difíceis pela frente. Mas isso não me importa agora. Pois eu vi o topo da montanha. […] Deus me permitiu subir a montanha. E eu vi para além. Eu vi a terra prometida. Posso não chegar até lá com vocês, mas quero que saibam que nós, como um povo, chegaremos à terra prometida”.
A reverenda Bernice King, filha do líder do movimento pelos Direitos Civis, declarou que “o trabalho e o sacrifício de seu pai não haviam sido em vão” em virtude da vitória de Obama. A religiosa concedia a entrevista aos choros, numa igreja em Atlanta, capital do Estado da Geórgia, em que a euforia era ensurdecedora. Fiéis, todos afro-americanos, vibravam e gritavam. Cenas similares se repetiram em quase todas as cidades estadunidenses, seja em igrejas, seja em marchas espontâneas.
Neopentecostalismo republicano
A dinâmica discursiva de Obama rejeita o tom religioso de Bush, identificado a correntes conservadoras do protestantismo, o neopentecostalismo. A visão conservadora do atual presidente foi retomada por McCain, mas principalmente pela candidata republicana a vice-presidente, Sarah Palin.
O neopentecostalismo republicano se baseia na idéia de que, no fim dos tempos, um grupo de cristãos está destinado a ter poderes absolutos e reorganizar a vida na terra. Tais “escolhidos” teriam a tarefa de se preparar para esse destino profético e lutar continuamente contra as forcas do mal que querem dominar o planeta de Deus. A fundamentação do neopentecostalismo está na teologia de William Branham (1909-1965). Considerado um profeta por grupos evangélicos estadunidenses, ele influenciou o neopentecostalismo, pregando que a Salvação tem de ser promovida pela “força da espada”, ou seja, na guerra permanente contra elementos inimigos.
O branhamismo permeou a ideologia do governo Bush, iniciado em 2001. Foi o sustentáculo da argumentação para a invasão do Afeganistão e do Iraque, respectivamente em 2001 e 2003, definidas pelo presidente como guerras do bem contra o mal.
Na política interna, o neopentecostalismo serviu para criar uma rede institucional de apoio ao governo, formalizada com o nome de Comitê Nacional de Políticas. O reverendo Ted Haggard e Grover Norquist, assessores próximos do presidente, foram os principais articuladores da rede neopentecostal. A principal tarefa do Comitê foi ser um canal de transmissão de orientações do governo para igrejas conservadoras, para influenciar a opinião pública.
A direita no poder
Obama rompe com o conservadorismo religioso de Bush, mas não representa uma alternativa para a orientação politica dos Estados Unidos. Chega ao poder com apoio popular histórico, como um fenômeno histórico, mas faz parte de uma corrente tradicional do Partido Democrata. Esse legado maldito – tanto quanto o de dois mandatos de Bush – pesa sobre Obama.
O candidato eleito sinaliza para a preservação da política do atual presidente na medida em que pretende convidar membros do Partido Republicano para formar seu governo. As primeiras indicações para a nova gestão democrata são de políticos da linha mais conservadora do partido de Obama. Rahm Emanuel, escolhido como chefe de gabinete, atuou nos projetos de livre-comercio na Presidência de Bill Clinton (1993-2001) e apoiou a invasão do Iraque. Muitos dos conselheiros de Clinton, com tendência conservadora, são personalidades próximas a Obama, como o presidente do Citibank, Bob Rubin, e Larry Summers, ex-secretario de Tesouro. Ambos são neoliberais.
Na politica externa, as diferenças entre os planos de Bush e Obama são mais táticos do que estratégicos O democrata defende uma retirada gradual do Iraque, sem apresentar uma projeção clara e uma data para o fim da invasão Mas, nos debates presidenciais, disse que ataques militares a outros países, como Paquistão e Irã, serão realizados, se seus governos não modificarem sua atuação politica. Obama pretende manter a invasão do Afeganistão e deslocar para o país parte das tropas no Iraque.
Cooptação
Obama pode usar seu carisma e sua influência nas igrejas progressistas estadunidenses e nos movimentos de luta contra o racismo para institucionalizar e cooptar organizações combativas. Nesse cenário, estará aniquilando a força de contestação de seu governo de concertação da direita.
A eleição de Obama representa uma vitória contra o racismo e o neopentecostalismo, mas ao mesmo tempo uma derrota na perspectiva de um projeto transformador social para os Estados Unidos. Nesse sentido, o democrata não pretende combater as raízes da pobreza de seu país. Pesquisas oficiais estimam que 13% dos 305,8 milhões de estadunidenses vivem abaixo da linha da pobreza. Nas grandes cidades, a taxa chega a 18,5%.
Chicago, centro da campanha de Obama, símbolo das dificuldades socioeconômicas dos Estados Unidos e terceira maior cidade do país, com 2,9 milhões de habitantes, tem bolsões de pobreza que se assemelham a favelas do terceiro mundo, como Bronzeville e Woodlawn. Quarenta por cento da população desses bairros, 95% afro-americana, vivem abaixo da linha da pobreza, sem acesso a saúde pública, e 55% dos economicamente ativos estão desempregados ou subempregados. Nos Estados Unidos, a população afro-americana é marginalizada e chamada de “subclasse”, abaixo da classe explorada.
É nas contradições mesmas da cooptação institucional – como lidar com o dinheiro e os cargos que Obama lhes destinará – que os movimentos sociais estadunidenses terão de se reinventar. Encontrar a dialética da radicalização num cenário de institucionalização se torna a esperança – o “hope” tão propalado pelo candidato democrata – diante dos desafios da luta de classes e da resistência ao imperialismo no coração do Império.
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