Encontro continental outra américa é possível
04/11/2002
- Opinión
Quito, Equador, 27 de outubro a 01 de novembro de 2002.
Troca de experiências e reflexão
Foi um Encontro significativo, mesmo tendo presente seus limites. Com
presença de representantes de todos os países das Américas e do Caribe, foram
gestados avanços importantes, valendo destaque especial a participação protagônica
dos povos indígenas e a organização do Fórum de Parlamentares.
Seguindo praticamente a metodologia do Fórum Social Mundial, o Encontro foi,
certamente, um Fórum Social para as forças anti-Alca do Equador, além de ser um
produtivo encontro de aprofundamento para os participantes dos demais países do
Continente. Houve espaços para aprofundamentos e articulações de diferentes
movimentos, bem como para uma infinidade de oficinas sobre temas de interesse de
diferentes grupos. Um dos avanços, em termos de conteúdo, foi, com certeza, a
confirmação da íntima relação entre Dívida Externa, Alca e Militarização nos
processos de neocolonização das Américas.
De fato, a dívida já vem sendo, há muito tempo, instrumento de espoliação e
dominação dos nossos povos por parte dos grupos dominantes do capital financeiro
internacional, hegemonizados pelos grandes bancos estadunidenses. Além disso, a
Alca vai se confirmando como uma estratégia de geração de uma verdadeira
constituição para a liberdade absoluta do grande capital em todas as Américas,
solapando o que resta da soberania dos países, anulando as diferenças culturais,
impedindo qualquer desenvolvimento tecnológico fora dos EU, colocando toda a
riqueza e diversidade biológica sob domínio dos grupos que controlam privadamente
os conhecimentos científicos e tecnológicos. Por fim, para garantir o controle
sobre o território e sobre o destino dos povos pelo império econômico, está sendo
implementada a instalação de bases militares em todo o Continente – e é certamente
esse o principal objetivo do interesse estadunidense em relação à Base de
Alcântara, no Maranhão.
Outro ponto em que se avançou e teve muito a ver com a renovada decisão de
aprofundar a mobilização social e política contra a Alca, foi a compreensão mais
profunda dos verdadeiros objetivos presentes nas negociações. A Aliança Social
Continental formou um grupo de especialistas com o objetivo de estudar o borrador:
o texto que está em elaboração nas 9 comissões que vão negociando a Alca. Trata-se
de um texto certamente incompleto, mas que já revela claramente objetivos presentes
desde o início e em relação aos quais os EU rejeitam qualquer negociação. Esse
estudo confirma que a Alca é mesmo a ampliação do NAFTA para a América Latina e o
Caribe – o que indica que os frutos verificados por lá, e especialmente no México
são uma profecia do que acontecerá no resto do Continente Americano. Mas não é só
isso, não. O borrador revela que estão sendo incluídas na Alca pretensões do grande
capital financeiro que não foram aprovadas na OMC, especialmente em relação à
liberdade de investimento e ao direito de o capital exigir indenização por perda
presumida de lucros em função de questionamentos ou mudanças políticas dos Estados
nacionais. Por isso, se for aprovada a Alca, adeus à soberania!
Manifestações de massa
Mas não foi só de estudo o Encontro de Quito. Ele foi, acima de tudo, uma
manifestação pública e de massa contra as negociações da Alca, que deveriam avançar
na Reunião de Ministros de Relações Exteriores, realizada no dia 31. Em vista
disso, o dia 30 foi totalmente destinado a manifestações públicas, em que
participaram mais de 20 mil pessoas. Apesar de algumas dificuldades, causadas por
divisões existentes entre organizações locais e por falhas da coordenação
continental, essas marchas produziram bons resultados. Houve praticamente três
marchas. As duas primeiras dirigiram-se ao hotel em que estavam os Ministros, mas
as duas foram impedidas de alcançar o objetivo por três cercos de forças de
segurança que protegiam os ministros. Além disso, houve dois ataques com bombas de
gás à multidão dos manifestantes por parte dessas forças, levando umas 30 pessoas a
hospitais.
Por parte dos dirigentes da CONAIE, a principal e mais forte organização
indígena do Equador, houve, antes e durante as marchas, insistência no sentido de
conseguir das autoridades autorização para que uma ampla delegação das entidades e
países manifestantes pudesse entregar aos ministros um documento que expressaria
sua posição sobre a Alca. Essa política fora aprovada em reuniões com membros das
Redes presentes. Como resultado, foi aberta a possibilidade de participar de uma
audiência às 18 horas, e essa foi a razão para que fosse realizada uma terceira
marcha, agora até a barreira a partir de onde seria permitida a entrada da
delegação. Essa delegação foi constituída por mais de 50 pessoas: um número maior
de equatorianos e um ou dois representantes dos demais países presentes.
Ao chegar ao Suisotel, a delegação foi introduzida numa sala de conferências,
onde logo em seguida foram entrando os ministros de 17 ou 18 países – do Brasil
estava o Ministro Lafer. Foi sugerido que, pelo Brasil, participasse dom Demétrio
Valentini, representando a participação da Igreja; como não foi localizado, coube a
mim fazer parte da comissão em seu lugar. Aberta a seção, percebemos de imediato
que havíamos entrado como público para dois outros relatórios, ambos apresentados
como abertura ao diálogo, assim como a presença da nossa comissão: o dos
Parlamentares e o das ONGs convidadas como sociedade civil. Protestamos, pois nosso
pedido fora o de entregar um documento, e não de entrar em diálogo, já que não se
percebia nenhuma disposição para isso. De toda forma, foi positiva nossa presença
na apresentação do documento dos Parlamentares, pois seu posicionamento foi de
clara contestação e condenação do processo de negociação da Alca, e foi muito
aplaudido por nós. Já o relatório das ONGs foi vaiado e contestado diretamente por
nós, uma vez que não reconhecíamos nelas representação da sociedade civil, nem
víamos em suas posições expressas a visão e as propostas da sociedade real dos
países do continente. Foram oportunidade para que nos apresentássemos como
representantes dos povos do continente, considerados incapazes ou indesejáveis para
uma mesa de diálogo.
O representante dos EU em nossa comissão, reforçado por um jornalista
conterrâneo, não se conteve e, em certo momento, levantou-se e falou ao delegado do
governo estadunidense: o senhor não pode negociar a Alca em nome do povo norte-
americano, pois a maioria dele se manifestou contra a Alca em pesquisas de opinião.
Além disso, o senhor deveria pelo menos saber falar o espanhol!
Palavras dos povos
Quero destacar, agora, a nossa apresentação aos ministros. Como havíamos
combinado, falaram duas pessoas: o presidente da CONAIE, Nicolas Iza, e a
representante da Nicarágua, a quem coube ler o documento aprovado por todos. A fala
do Nicolas foi um momento especial de emoção para mim: ele falou como um verdadeiro
representante dos povos indígenas da América. Destaco algumas das partes, desejando
que esse tenha sido o conteúdo, mesmo sendo diferente a forma – mas, de toda
maneira, a responsabilidade dessa versão e toda minha:
Senhores ministros. Os senhores falam de diálogo, mas nós não viemos aqui
para dialogar porque não vemos vontade sincera de diálogo em sua prática. Não fomos
convidados, mas nós decidimos vir dos campos até a cidade do nosso belo país e vir
de outros países irmãos para dizer a nossa palavra sobre o que estão fazendo, mas
como foi que os senhores nos receberam? Foi com bombas de gás, ferindo trinta
pessoas, especialmente algumas crianças. Como querem que venhamos dialogar depois
de sermos tratados desse jeito?
Os senhores ficam dizendo que somos todos iguais, mas não existe igualdade
entre nós. Os senhores, na verdade, nem sabem o que seja a nossa vida: não sabem o
que significa, por exemplo, o fato de que, em nosso país, mais de 50% da população
indígena e camponesa é analfabeta. Os senhores não são iguais a nós: nasceram em
berço de ouro e nunca tiveram fome, nunca sentiram falta de teto, de escola. Nós
sabemos o que é isso, e por isso sabemos que não existe igualdade entre nós.
Os senhores, se querem ser senhores, precisam ouvir mais e fazer o que os
povos precisam. Falo isso pelo seu próprio bem, para que possam viver em paz.
Enquanto ficam repetindo que somos terroristas por decidir apresentar pacificamente
nossa palavra, como pode haver paz em sua vida? Os senhores não promovem a paz
entre os povos nem na relação com a Terra. Pelo contrário, não gostam de nós, nos
acham atrasados e perigosos porque nós gostamos e cuidamos da natureza. Se não
mudarem seu modo de agir, destruirão toda e qualquer paz. Nós lutaremos até o fim
por um outro modo de tratar os seres humanos e a Terra.
É por isso que não viemos aqui dialogar sobre a Alca. Ela é mais um passo na
dominação sobre nossos povos, na negação da igualdade entre nós. É por isso que
dizemos e repetimos: Não à Alca, Sim à Vida! Outra América é possível!
A leitura do documento - precedida de uma advertência da amiga nicaraguense
para que o ministro de seu governo espichasse seu ouvido para ouvir bem! -, foi
outro momento de silêncio: de respeito e emoção de nossa parte, transmitindo
energia para cada palavra apresentada; de frieza, pelo menos aparente, dos
ministros e seus tecnocratas. Ela foi feita diante de dois enormes rolos de papel,
em que estavam as mensagens e assinaturas de milhares de indígenas do Equador,
recolhidas durante as marchas que vieram de diferentes regiões do país.
Valeu a pena a luta da CONAIE para conquistar esse espaço. Mesmo que não
levem em conta o que apresentamos, o texto passa a ter a força da voz dos milhares
e milhões que decidiram barrar a Alca e lutar por outro tipo de integração entre os
povos do Continente.
Encerrada a leitura, a mestre de cerimônia queria que esperássemos pela saída
dos ministros, mas nós contestamos com a palavra e com a prática: dirigimo-nos à
porta, e por causa disso, os ministros saíram correndo, testemunhando uma vez mais
como têm medo dos povos que dizem representar.
Para finalizar, é importante ressaltar que percebemos sinais de adesão e de
apoio até mesmo dentro do hotel, por parte de soldados, funcionários e jornalistas.
Ficamos com a impressão de que o projeto dos EU de Alca estava fazendo água. Isso
foi relativamente confirmado pela notícia de que os ministros não conseguiram
vencer nem mesmo o primeiro ponto da sua pauta de negociação, a agricultura, e por
isso nada assinaram. Empurraram os problemas para a frente. Assim sendo, cabe-nos
aprofundar nossas pressões e cabe-nos acertar em nossas relações com o novo governo
brasileiro para que ele trabalhe de imediato na perspectiva de um novo projeto de
relações entre os povos do Continente.
Avaliação
Avaliando o conjunto do Encontro e das Mobilizações de Quito, o saldo
positivo é evidente. Mas poderia ser melhor ainda. O que faltou, ao meu ver, foi a
existência de uma instância coletiva que programasse e distribuísse
responsabilidades para garantir a coordenação das diferentes iniciativas. As que
tiveram essa definição obtiveram maior êxito. As demais, não. A melhor maneira de
superar esse limite é dispor-se para assumir responsabilidades, tomando a
iniciativa de forçar a explicitação do que está planejado, garantindo que sejam
definidas as entidades e pessoas responsáveis por cada atividade.
De toda a forma, o povo do Equador e suas lideranças populares estão de
parabéns. O Encontro produziu resultados e fez avançar a luta para barrar a Alca. E
isso foi alcançado em meio a uma paisagem maravilhosa, reveladora do como poderiam,
e de como serão, maravilhosas as condições de vida dos nossos povos quando tudo que
somos capazes de fazer for colocado a serviço da vida de todas as pessoas.
no queremos y no nos da la gana
ser una colonia norteamericana!
si queremos y nos da la gana
ser una América libre y soberana!
Goiânia, 04 de novembro de 2002.
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