A reforma agrária e o MST, entre teses destrutivas e os direitos que cabem às/os sem-terra

22/12/2009
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As opiniões de Zander Navarro e de Plinio de Arruda Sampaio, publicadas na Folha de São Paulo, dia 5 deste mês, a primeira contrária e a segunda a favor da reforma agrária, continuam repercutindo. Já foram analisadas, inclusive pelo Ministro de Desenvolvimento Agrário. Já que a atuação do MST aparece em todas elas como um elemento-chave a ser levado em conta, vale a pena considerar-se o que ficou dito, igualmente, contra e a favor dele. 

Zander baseado em seus estudos, como refere no início do seu texto, defendeu nada menos do que treze teses de impugnação da causa, da ideologia, do método de arregimentação dos seus integrantes, da forma como são liderados, e do modo como esse movimento age. Negou que ele seja vítima de criminalização; denunciou, como um dos seus maiores defeitos, o caráter não institucional de que ele se reveste, não lhe reconhecendo, sequer, continuar sendo um Movimento Popular. Dá uma aula sobre o que ele acha que o MST é, e não hesita em dizer como ele deveria ser. 

Plínio, ao contrário, preferiu analisar o MST, baseado em fatos e, no que mais interessava ao tema proposto pela Folha, no uso e na exploração da terra. Não ignorou o contexto histórico da realidade hostil e opressiva a que está submetido o povo sem-terra, em nosso país; criticou os poderes públicos, de forma particular o da União, pela preferência que adotou em relação ao nosso modelo agrícola; sublinhou o poder decisivo das transnacionais sobre o campo brasileiro (soja, álcool de cana, carne, madeiras); lamentou a extensão da grilagem (agora legalizada) das terras da Amazônia, o destino suspeito de transposição do Rio São Francisco, as vantagens inerentes à consolidação da agricultura familiar. Identificou o MST como um movimento socialista, impugnando, em números, a versão corrente sobre o que aconteceu na Fazenda Cutrale; conclamou vários atores sociais a se empenharem em favor da reforma agrária até para exigir do Judiciário maior rapidez nas desapropriações e fiscalização das violências praticadas contra as/os sem-terra nas ações de reintegração de posse.

A simples comparação das idéias aí em aberto conflito, parece indicar que a primeira é muito mais acadêmica, teórica e subjetiva do que a segunda. Para Zander o que o MST é, destoa do modelo que a sociologia (ele também, por óbvio) indica que esse Movimento deva obedecer.  Para Plinio, o que o MST é, revela simplesmente uma forma de organização social necessária à defesa do povo sem-terra e da reforma agrária.

Desde logo, um primeiro questionamento se impõe à leitura dos dois artigos. O que é mais importante? A conformidade exigida pelo modelo teórico, acadêmico, “científico(?)”, previamente receitado na bula da primeira perspectiva, ou o remédio urgente e necessário de que carece uma doença social grave, vitimando multidões pobres que padecem, historicamente, de desrespeito?

Se as duas opiniões forem testadas à luz dos objetivos da reforma agrária, dos direitos humanos fundamentais do povo sem-terra, e até do modelo que temos de Estado democrático de direito, no Brasil, as treze teses de Zander sofrem de uma auto-suficiência incompatível até com a ciência da qual ele se socorre.

Nem é muito difícil se provar esse fato, podendo se dispensar aqui, até o grau de desigualdade dos serviços que ao povo sem-terra prestaram um e outro dos autores que assinam os artigos publicados pela Folha.

Zander insiste bastante no fato de que um dos maiores defeitos do MST consiste em ele se encontrar à margem da institucionalidade; verbera a circunstância de, usando esse Movimento  recursos públicos, os Poderes responsáveis por tais recursos não cobrarem essa institucionalidade, já que com ela, num regime democrático, o MST “obteria alguma tolerância pública.” Ele qualifica como ridícula, por isso mesmo, entre outras razões, a queixa das/os sem-terra relativa à criminalização orquestrada e indiscriminada, no país e no Rio Grande do Sul, contra elas/es; entende que a reforma agrária deve alcançar, se alcançar, apenas o nordeste brasileiro.

Além do desconhecimento que o autor revela aí, do que a Constituição Federal e as leis do país dispõem a respeito da liberdade que o povo, ou parcela dele tem, de se associar, com personalidade jurídica, ou não, algumas contradições do seu libelo contra o MST acabam por desautorizar toda a sua crítica.

A começar por um princípio jurídico elementar, respeitado mais por sua obviedade do que pela sua previsão legal (art. 476 do código civil), a ninguém cabe exigir o cumprimento de uma obrigação inserta num contrato, enquanto não cumprir, por sua parte, a obrigação a que se vinculou. A Instituição Estado brasileiro está em mora no cumprimento das suas obrigações para com o povo sem-terra desde que esse país, mal ou bem, foi reconhecido como nação independente no mundo todo. Se não cumpre a obrigação que lhe cabe, que direito lhe assiste de exigir o cumprimento da “obrigação” de suas/seus cidadãs/os?

Outra analogia bem próxima do tema que nos ocupa aqui, pode ser conferida na conduta dos latifundiários brasileiros que, mesmo descumprindo com a sua obrigação de respeitar a função social inerente ao seu direito de propriedade rural, condenam o MST, assim como faz o Zander, por ele não cumprir a “obrigação(?)” de se institucionalizar. Desde o evangelho, todo o mundo sabe que quem tem uma trave no próprio olho não pode censurar o argueiro que se encontra no olho alheio. 

Ora, institucionalizado ou não, é justamente pela iniciativa das instituições públicas e as privadas vinculadas aos latifundiários, que as/os agricultoras/es sem-terra, filiadas/os ou não ao MST, têm sofrido historicamente de uma repressão judicial e policial-militar tão duras, ou mais, do que as que sofreram na época da ditadura. E isso, em pleno exercício do modelo de “democracia” que o Zander defende, ou seja, aquele que em vez de respeitar e promover a organização popular lhe outorga (como favor talvez?), “alguma tolerância”.

Como uma democracia a esse nível tem legitimidade ou autoridade ético-jurídica para exigir “institucionalização” de qualquer movimento popular, esse autor não explica, como nem deixa muito claro de resto, o que ele entende por institucionalidade.

Assim, uma primeira e fundamental contradição do seu raciocínio reside nisso. Ele acaba por justificar a ausência de personalidade jurídica, a ausência de um CNPJ para o MST, não só pelo fato de latifundiários e Poder Público descumprirem suas obrigações para com o povo sem-terra, como pelo tipo de democracia que ambos, mais ele, entendam contemplar esse povo; essa espécie de “democracia(?)” já na democracia autêntica aí nem existe. É até bem melhor que o Movimento se defenda desse tipo original de “regime” jurídico-político desenhado pelo autor, tentando quando menos denunciar o quanto há, aí sim, de “intolerável” autoritarismo nesse arremedo de obediência à soberania do povo (art. 1º parágrafo único da Constituição Federal).

Nem seria necessário lembrar, a propósito, que a democracia, para valer, a história o comprova, nasce quase sempre depois de o povo sofrer e até morrer por se insubordinar, exatamente, contra os poderes da “instituição” legalizada dos regimes anteriores. Quem não sabe, ou até viola, o sentido e as referências do que seja instituição, e instituição democrática, não pode exigir que outros se “institucionalizem”. 

Ignorando, também, que o poder constituinte do povo não morre, durante a vigência do constituído, o autor reserva para os movimentos populares, exigindo-lhes o que ele entende por institucionalidade, apenas o poder regulatório próprio das Constituições e das leis, castrando todo o poder emancipatório que elas contêm, um vício nada moderno, conservador e até reacionário, como Boaventura de Sousa Santos tem demonstrado, em lições bem menos reducionistas do que a do sociólogo contrário à reforma agrária e ao MST.

A manipulação vergonhosa desse poder regulatório tem sido responsável por não poucas violações dos direitos humanos do povo sem-terra e por muitos prejuízos às organizações populares que o apóiam. A violência e a desonestidade com que a bancada ruralista impôs à Constituição Federal a expressão “propriedade produtiva” no art. 185, inc II da Constituição Federal, como José Gomes da Silva historiou em detalhes na sua obra “O buraco negro”, dá bem um exemplo “institucional” disso. O relatório original da CPMI da terra, igualmente, todo ele feito de apoio à reforma agrária, foi substituído por outro, ao feitio e ao interesse exclusivo daquela bancada, que convenceu a “instituição” Tribunal de Contas da União que toda e qualquer ONG, pessoa jurídica pública ou privada, que apoiasse financeiramente o MST, era suspeita de corrupção ou desvio de dinheiro. Pura mesmo, só aquela bancada, caloteira histórica de dívidas tributárias, defensora de grilagens e de todo o tipo de depredação da terra e de dominação de gente no campo, capaz de obstruir até a votação de projetos contrários ao trabalho escravo. 

Assim, a ausência de “institucionalidade” do MST, não impediu e nem continua impedindo que as pessoas jurídicas afinadas com os objetivos e a ação da Movimento, possam prosseguir celebrando convênios, participando de licitações, obtendo fundos, sejam públicos ou privados, com que ajudavam o MST. Imobilizadas durante meses por fiscalizações de órgãos públicos, têm de desviar toda a sua atenção para responder questionamentos que concluem aberrações do tipo diminuição do valor de diárias (em mais de metade, às vezes) devidas a alunas/os filhas/os de sem-terra, em suas escolas, pelo fato de, por serem pobres, “estarem habituadas com pouco”...

Se isso acontece com pessoas jurídicas “institucionalizadas”, conforme o modelo zanderiano, o que não ocorreria com o MST se ele entrasse em tal armadilha?

Surpreende, por outro lado, numa época em que se estuda e questiona tanto o controle social, a democracia econômica e participativa, como características próprias de um Estado verdadeiramente democrático e de direito, pretender-se enfiar o barrete rígido da institucionalidade justamente num Movimento Popular que goza do prestígio e da companhia atuante de grande parte de personalidades que integram, ou não, pessoas jurídicas públicas e privadas “institucionalizadas” que, não pela informalidade dele, deixam de apoiar e auxiliar em suas iniciativas, exatamente nos momentos em que ele mais sofre de agressão aos direitos humanos de suas/seus integrantes. 

Sua militância encontra apoio em outros testemunhos históricos e muito qualificados de defesa das/os sem-terra como a de dezenas de ONGs do Brasil e do mundo, Comissões de direitos humanos, CDDPH (Conselho de defesa dos direitos da pessoa humana), CPT, ADJ (Associação de Juízes para a democracia) Dom Pedro Casaldaliga, Dom Tomas Balduino, Fabio Konder Comparato, Oscar Niemeyer e, entre muitos que já nos deixaram, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Milton Santos e José Gomes da Silva, para lembrar apenas algumas das muitas pessoas jurídicas e personalidades a quem o país mais deve.

Todas essas organizações e pessoas, pelo jeito, são tão míopes e ingênuas, fazem parte ou, pelo menos, estimulam um movimento ideologicamente atrasado e ditatorial, como Zander seja, as suas convicções sobre esse Movimento Social? Se ele não se deixa questionar por nada, não é de admirar que o seu posicionamento, já no passado, tenha provocado tanto mal ao povo sem-terra.

Não se pode esquecer que é  baseado nos estudos e nas reiteradas críticas de sua autoria ao MST, que a “instituição” Ministério Público do Rio Grande do Sul vem promovendo uma das maiores e mais violentas perseguições oficiais contra as/os sem-terra que o integram. Em 2007, numa decisão unânime do seu Conselho Superior, decidiu “dissolver” (!) o MST, coisa que, posteriormente, foi revogada, tal o absurdo pretensioso, totalitário e inconstitucional que aí se revelava; este ano, no desdobramento dessas iniquidades, o povo sem-terra chora a morte de um dos seus companheiros, Elton Brum da Silva, ocorrida em São Gabriel, efeito de uma “institucional” execução judicial.

Note-se o tamanho da contradição aí presente. Quem condena o MST por ele não se adequar à institucionalidade, é quem fornece ao Poder institucional, dotado da maior agressividade contra as/os sem-terra, as armas ideológicas capazes de causar as maiores perdas, os maiores danos às pessoas pobres do campo, organizadas em defesa das suas vidas, dignidade e cidadania.

Zander jamais quereria esse efeito, como deu a entender numa entrevista constrangida que já tinha concedido a um jornal de Porto Alegre, antes do assassinato do Elton. Nessa oportunidade, solidarizava-se com o MST (?!), depois que outras violências tinham sofrido as/os suas/seus integrantes, também essas baseadas em execuções judiciais sustentadas, quando menos em parte, nas opiniões dele. 

Que essas têm pesado bastante, portanto, para seu pesar, no abuso de autoridade e poder que aquelas violências têm revelado, isso pode ser provado no próprio teor das petições redigidas pelos promotores gaúchos. Não adianta, depois, chorar o leite derramado. O esforço retórico que as sustenta têm nesse autor, senão a principal, uma das mais importantes bases argumentativas. 

É muito contraditória, igualmente, a defesa da obrigação de o MST se institucionalizar, quando o autor opina sobre a reforma agrária, considerando-a quase como desnecessária. Acontece que essa política pública, ressalvada a hipótese de se desobedecer flagrantemente tudo quanto ainda resta de fundamentação constitucional nela, tem toda a sua execução dependente do exercício institucional do Poder do Estado. Então, é oportuno perguntar-se, questionando o autor da crítica ao MST e à reforma agrária: tudo quanto ele vê como nociva prática do MST, por não se institucionalizar, se transforma em virtude quando o Poder Público não institucionaliza as políticas que tem a obrigação de institucionalizar em favor do povo pobre do campo?

Zander também considera todos os méritos do MST como fictícios, seja em tamanho de poder, seja em prestígio, seja em número dos seus integrantes. Essa é – mesmo se descontando, mais uma vez,  quanto há de “distração” ou “esquecimento” aí presentes, sobre os efeitos suprapositivos que a dignidade humana impõe ao próprio ordenamento jurídico, e ainda que se desconsidere o que pode haver de “rancor” nessa crítica, como o ministro de desenvolvimento agrário chegou a denunciar na análise que fez dela – uma contestação àquelas acusações, seguramente bem mais qualificada do que a nossa, já tinha sido antecipada na mesma “Folha”, um dia antes (edição de 4 de dezembro corrente).

Sob o título de “A contra-revolução jurídica”, Boaventura de Souza Santos não usa os mesmos óculos ideológicos de Zander para ver a realidade injusta e ilegal que oprime o povo sem terra, como ela efetivamente é; não como ela precisa ser disfarçada para se acomodar ao que se estuda e pensa sobre ela.

Justamente naquilo que constitui o eixo central da acusação de Zander contra o MST - institucionalidade - o conhecido pensador denuncia o que esse tão valorizado pressuposto legal está fazendo contra o Movimento: “...anulação de turmas especiais de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.” (...) “Criminalização do MST. Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de dissolve-lo com o argumento de ser uma organização terrorista.”   

Finalmente, Zander encerra seu texto, diagnosticando como agonizante a situação atual do MST. Não descarta a sua extinção. Então, já é hora, também, de concluirmos nossa modesta defesa do MST e da reforma agrária. Se for “pelos seus frutos que os conhecereis” como diz o evangelho em nova lembrança oportuna para o caso, parece não haver dúvida sobre quem deve ser ouvido, entre os articulistas da Folha, seja no que se refere ao MST, seja no que se refere à reforma agrária. 

Se o mau agouro de Zander se cumprir, coisa muitíssimo improvável, por tudo o que acima se referiu, não será na festa que a CNA e seus súditos fiéis presentes nos parlamentos e nas “instituições” vão fazer, a respeito, nem servirá de seu coveiro, o Plinio de Arruda Sampaio. Os frutos do trabalho deste, pelo testemunho de toda a sua vida, são de vida e não de morte, são de enfrentamento da injustiça social mantida e preservada pelo próprio modelo institucional que se quer impingir ao MST, são expressões de um sonho capaz de criar tudo quanto está ausente no texto que lhe serviu de contraponto, um outro mundo possível, como o Fórum Social Mundial tem ensaiado perseverantemente, uma nova sociedade, na qual se partilhe, com a justiça capaz de construir a paz, para alegria e satisfação de todas/os, a terra, a casa, o pão, a verdade e o amor.

Porto Alegre, 22 de dezembro de 2009.

Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado. 

Publicado originalmente na Pagina da Internet do Instituto Humanitas, da Universidade Vale do Rio dos Sinos- Unisinos.


 

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