Povos indígenas: ética, cooperação e diálogo
19/04/2003
- Opinión
1- Origem dos povos tradicionais X ação acumulativa
A origem dos povos tradicionais das chamadas Américas
continua ainda a ser pesquisada pela ciência.Mas o que se
sabe, é que os povos indígenas habitavam esse grande
continente, muitos séculos antes de sua invasão pelos
europeus.
Antes de 1500, no Brasil, os povos tradicionais somavam 5
milhões contextualizados em 900 nações. Hoje, com seu
extermínio pelos invasores e usurpadores, foram reduzidos
a 540 mil em 206 nações.
As antigas civilizações indígenas como Maias, Aztecas,
Quechuas que valorizavam o culto à fertilidade, a
veneração à Mãe-Terra, as divindades femininas e seguiam
o calendário lunar, possuíam alto sentimento de ética,
cooperação e diálogo.
Com o advento da propriedade privada, da concepção da
individualização, da supervalorização do materialismo e
da moeda, os povos tradicionais Iroqueses das Américas,
por exemplo, tiveram suas vidas e culturas ceifadas,
obrigando-se a transformar seu modo de vida ao conhecerem
a acumulação de bens materiais, produtos, metais, etc...
Nesse momento deixou de prevalecer o regime matriarcal e
o domínio patriarcal se impôs às culturas tradicionais,
perdurando até os dias de hoje.
O homem invasor impõe então seus valores aos povos
tradicionais: acumulava dinheiro e bens, tornava-se
patrão e o sistema era garantido através das gerações a
partir do nome e sobre-nome. As divindades femininas são
substituídas pelas masculinas. A mulher, antes
homenageada, politicamente bem definida na sociedade,
passa a trabalhar junto à família para o dono do capital.
A família( do latim familus= que quer dizer também
escravo, segundo Engels) torna-se literalmente escrava,
subordinada e dominada pelo poder paternalista,
trabalhando braçalmente para o aumento do capital,
gerando inclusive mais valia a esse tipo de
desenvolvimento, que só favorecia aos donos do dinheiro,
enquanto os trabalhadores ou escravos permaneciam mais
pobres e enfermos, como hoje. Ali, se dá também a mescla
de povos.
Neste contexto, o mundo antigo impõe uma relação de
desigualdade entre os seres humanos. O conceito de
coletividade associado à cooperação perde sua base diante
da concepção do eu individual. A verdadeira ética humana
é perdida. O desrespeito se impõe e os mais profundos
valores como espiritualidade, o amor, solidariedade,
cooperação, "paz natural verdadeiramente tranqüila" ( a
que não se contrapõe à guerra), diálogo sem imposição são
desvalorizados.
Nas sociedades tradicionais o sentido de terra era
coletivo, enquanto no sistema patriarcal era de
propriedade privada. A economia de subsistência deu
lugar à economia acumulativa. A sociedade indígena com
concepções igualitárias se opõe a criada sociedade
discriminatória inclusive racialmente, diante da
imponência da "suposta universalidade humana branca e
ocidental", existente até hoje.
Os povos tradicionais que cultuavam a vida, a natureza e
o Criador enfrentam então a ação predatória do novo
mundo.
Mas minha pele como ficou com tudo isso?
"Minha pele estava seca pelas vicissitudes da vida. Eu
mergulhei nas profundezas dos mares e reencontrei com
minha avó-foca, com minhas sagradas ancestrais e os
velhos guerreiros que também não se envergonhavam por
suas lágrimas. Elas_ sabiamente_ me contestaram e me
mostraram que eu, inconsciente e pacificamente, aceitava
os padrões éticos impostos pela intolerância da sociedade
, e voltei com minha alma fortalecida, voltei com meus
sonhos definidos, voltei com minha intuição extremamente
clara, precisa, determinada. Minhas costelas não estão
mais descarnadas, a carne voltou a crescer depois que os
homens derramaram suas lágrimas pelas mulheres do mundo e
eu não sou mais uma mulher esqueleto, jogada ao fundo do
mar, como se fora um sapato velho, pela cultura
impostora.Sou uma mulher de fibra, porque eu me
reconstruí por mim mesma, depois de dançar
desvairadamente na vida com meu iludido sapatinho
vermelho.Quase perdi os meus pés, as ervas daninhas
enrolaram neles pra que nunca mais caminhasse pelas
estradas do saber, da consciência e do mais alto grau da
espiritualidade indígena, mas pude dominá-los e arrancar
esses malditos sapatinhos vermelhos das chamadas
"MULHERES E MÃES BOAS-DEMAIS"!!!!!! que por serem assim,
vivem sufocadas pelo peso da história e da opressão e
quando vislumbram uma "semiliberdade", uma ilusão, a
pseudoliberdade, se perdem nos terríveis sapatinhos
vermelhos da cultura falsamente iluminada, que escamoteia
o poder, o preconceito, o racismo. Meu ego, não pode ser
mais forte que minha alma. Minha alma é ancestral, meu
ego não pode dominar minha verdadeira história. (...)
."(Trecho do texto "Pele de foca" de Eliane Potiguara,
inspirado no livro 'Mulheres que correm com os lobos de
Clarissa Pinkola Estes)
As desigualdades no amor entre o homem e a mulher se
acirram também a partir da nova concepção predatória. E
as mulheres trabalharam incessantemente séculos e séculos
na categoria de diferença, para atingir o estágio atual.
Dentro desse raciocínio expandimos a análise sobre
desigualdade para as categorias, raças, etnias, culturas,
religiões,orientação sexual, condições físicas, classe
social e idade. Essas diferenças são motivos de
desigualdades, o que deveria ser de apreço para a
sociedade em geral e de orgulho.
2- O DIREITO À IMAGEM POSITIVA NA SOCIEDADE: CONSTRUÇÃO
DA AUTO- ESTIMA
OS que se consideram erroneamente superiores por
assimilar padrões preponderantes, perpetuam essa
dominação, assim como aqueles que também se consideram
inferiores. Conceitos dominantes como louro, olhos
azuis, forte, normal, capaz, e outros, se contrapõem e se
chocam a diversos padrões minimizados na sociedade, como
feio, negro, fraco, deficiente físico, indígena, mulher,
macumbeiro, feiticeira, assim por diante. Urge
desconstruir esses conceitos.
Esses estereótipos que se opõem , na realidade, nos levam
à discriminação, ao preconceito e à intolerância. A
discriminação social e racial conduz a sociedade a
compartir má qualidade de vida, desigualdades de
oportunidades de trabalho, de estudo e de participação
social, contribuindo com o indivíduo a construir uma
auto-imagem depreciativa que o impede de crescer no
patamar social. Permanecemos no porão da vida e temos
que subir para terraço e vislumbrar quem somos!!!! Minha
avó indígena, com grandes peitos e olhos apertados, todos
os dias permanecia do lado de fora das grades quando eu
ia à escola primária. Os alunos sabiam que ela era minha
avó e debochavam de mim, me chamando de índia e
perguntavam porque vovó permanecia ali idiota e estática.
Era porque vovó sentia-se orgulhosa da neta estudante e
temia que algo de ruim acontecesse, por isso perdia seu
tempo do lado de fora da escola, tentando
desesperadamente me fazer crescer para que eu pudesse ser
uma professora. Depois ela ia vender bananas.... E eu
tinha vergonha... Eu tinha vergonha porque vivia num
gueto indígena, eu tinha vergonha porque minha educação
não era diferenciada como deveria ser. Eu tinha vergonha
porque nas horas que não estava na escola, estava presa
literalmente num quarto para que eu não visse a miséria
do gueto onde vivia, para que eu só assimilasse a
energia, a cultura e a espiritualidade que vinha das
mulheres guerreiras da minha pequena e extinta família
indígena.Por isso não conheci a infância e a
adolescência.
Bem, como já sabemos todos nós temos somente uma raça : a
humana. Mas mesmo assim, no sentido político, o mundo
está dividido mesmo em raças: negros, brancos, amarelos,
etc... Ou no sentido político-religioso, o mundo está
dividido em milhares de segmentos como por exemplo,
judeus, muçulmanos, católicos, protestantes, budistas,
etc...
A compreensão entre os seres humanos para que seja
efetiva não deve passar pelo juízo de valor, pelo
julgamento irresponsável, pelas críticas destrutivas, e
por esses gritantes contrastes. A falta de ética conduz
o indivíduo a interpretações tendenciosas de conceitos.
Como vimos a falta de ética humana, a falta de
cooperação, a não solidariedade e a falta da paz, a
guerra, foram geradas num passado muito distante. Urge
uma mudança de consciência do ser humano para que ele
possa compreender que todos os seres humanos são iguais,
independentes de cor, religião e a chamada e imposta
raça.
A diversidade racial e étnica, a diversidade social e
cultural, a diversidade de crenças e filosofias não podem
ser vistas como barreiras, "muros de Berlim", guetos de
Soweto, obstáculos incomensuráveis. Essa diversidade
deve ser vista como características para construção de um
mundo novo, onde nessa DIVERSIDADE SE ENCONTRE A UNIDADE,
e onde o respeito, a cooperação e a ética humana imperem
no contexto de todas as características humanas diversas.
Mas para chegar-se aí muito trabalho precisa ser
feito.Grupos por todo o mundo devem articular-se por esse
objetivo. As mulheres já deram o primeiro passo, sendo
assim o conceito de ações afirmativas para elas, torna-se
mais compreensível para a sociedade.
Durante séculos a imagem dos povos oprimidos social e
racialmente são configuradas de forma menor, pejorativa,
inferiorizada, e conseqüentemente racializada. O racismo
existe porque existe o poder, o capital, o medo... Quem
sofre e quem sofreu o racismo nos últimos séculos? Quem
perdeu terras, vidas, culturas, tradições espirituais?
Quem ganha com o racismo?Quem participa constantemente da
mídia televisiva, quem possui oportunidades de empregos e
de estudo? Quem cresce economicamente no mundo? Quem mais
ocupa postos no parlamento brasileiro?Quem possui carros,
bens de consumo de qualidade? Quantos indígenas chegam às
universidades? Quantos negros atingem o topo do
mundo?Quanto capital chega para as Ongs indígenas e
negras? E complementando o raciocínio da Prof. da
Universidade de Pernambuco, a Dra. Silvia Cortes :
Quando a "Casa Grande e Senzala" vai deixar de ser um
navio ancorado em terra????
É hora de nós, povos indígenas e todas as DIVERSIDADES
construirmos um mundo possível, resgatarmos nossas
histórias, reconstruirmos nossas vidas e reconstruirmos
nossa auto-estima que esteve por séculos jogadas na lama
ou no porão da sociedade. A sociedade anestesiada,
condicionada aos padrões dominantes, precisa compreender
isso. Urge uma Campanha. A mídia, a escola, a
Universidade são alguns caminhos. Isso é apenas um
começo.
A Educação é um caminho extremamente importante para a
formação da hereditariedade, da sociedade e do eu
superior: a mente humana. As políticas públicas devem,
sem temor, investir nessa bandeira.
As Ações Afirmativas são políticas públicas
compensatórias e temporais para promover igualdade dos
grupos vulneráveis. Num futuro não serão mais preciso
essas ações, pois atingiremos à democracia racial
verdadeiramente real. Elas existem para combater
desigualdades sociais e podem se ampliar para vários
setores como: saúde, educação, habitação, eletricidade,
água potável, meio-ambiente, igualdade e oportunidade de
emprego, além de atingir aos serviços judiciários,
executivos, reformas eleitorais, reforma agrária, etc...
Para isso é imprescindível uma estrutura de peso para
implementar essa política e que tenha orçamento próprio,
autonomia, recursos humanos altamente capacitados,
campanhas de massa na mídia de conscientização do povo,
para que não caia no descrédito e na crítica infundada e
irresponsável, que prejudicam e distorcem os reais
objetivos da luta contra as desigualdades social e
racial. As Universidades deram o passo inicial, a Puc de
Minas Gerais, a UERJ no Rio de Janeiro. Já existem
Universidades indígenas.
Esperamos que a Universidade Federal de Pernambuco possa
iniciar um processo de compreensão e permitir que a
intolerância não venha a destruir passos revolucionários
na construção de uma Universidade mais democrática.
Vamos acreditar nesse processo, reconhecendo que a única
confiança necessária é a de saber que, quando ocorre um
final, um novo começo está alvorecendo. Deixemos somente
para a natureza as dualidades do frio e calor, do sol e
da chuva, do temporal e na bonança, do verde e do maduro,
dos vegetai e dos animais, da lua e do sol, da morte e da
vida. A natureza é sábia, não cria conceitos dominantes
sobre as diversidades naturais da existência, bem
equilibradas pela natureza. Por isso o poder, a
indústria bélica (química, nuclear, biológica,
armamentícia), o dinheiro e a informação não podem opor
brancos, negros, indígenas, mulheres, religiões,
culturas, deficientes, homossexuais, etc... Aos olhos do
Grande espírito Criador e da Mãe-Terra somos todos iguais
quando sabemos empreender a ética, a cooperação, o
diálogo e a cultura da paz, conceitos perdidos desde a
época das grandes civilizações indígenas. Nessa
reflexão, sem preconceitos, podemos fazer avançar a roda
da história e os invisíveis," intocáveis " deixarão de
ser tratados com indiferença, a conceituação política que
mais mata.
* Eliane Potiguara é professora, escritora e militante
indígena
Coordenadora do Grumin/Rede de Comunicação Indígena, Fellow da Ashoka, Conselheira do Instituto indígena de Propriedade Intelectual(INPI)
Grumin/Rede de Comunicação Indígena: www.grumin.hpg.com.br Discurso de: Eliane Potiguara
Mesa Redonda: Minorias, exclusão social e ação afirmativa
Encontro Regional de Estudantes de Ciências Sociais
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Data: Recife, 17 a 20 de abril de 2003/BRASIL
Coordenadora do Grumin/Rede de Comunicação Indígena, Fellow da Ashoka, Conselheira do Instituto indígena de Propriedade Intelectual(INPI)
Grumin/Rede de Comunicação Indígena: www.grumin.hpg.com.br Discurso de: Eliane Potiguara
Mesa Redonda: Minorias, exclusão social e ação afirmativa
Encontro Regional de Estudantes de Ciências Sociais
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Data: Recife, 17 a 20 de abril de 2003/BRASIL
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