Abril: Tlaxcala a quarta estela (Os rebeldes de sempre)

27/02/2003
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Desta vez é a história que move mão e vento para dar passagem ao próximo mês do calendário. ABRIL, diz mais em cima, e então, sempre rebelde, aparece uma palavra: Tlaxcala. Tlaxcala. De acordo com os dados do INEGI, no ano 2000, Tlaxcala tinha pouco menos de um milhão de habitantes, e quase 30 mil maiores de 5 anos falam uma língua indígena. Sob os céus tlaxcaltecos vivem indígenas Nahuas, Otomíes- Hñañúes e Totonacos. Abril: a águia é outra vez nuvem azul que se desloca sobre o solo de Tlaxcala. Entrando pelo vulcão Matlaleueyetl (conhecido como "Malinche") a nuvem anda pelo corredor industrial Apizaco-Xalostloc-Huamanta, sobe até à cidade industrial de Xicohténcatl, já na lagoa de Atlonga vira para o sul, rumo ao corredor industrial Malintzi, e, passando pelo corredor industrial Panzacola, chega a Cacaxtla. Aí a nuvem se recosta sobre o pico e, inclinando os olhos, abre o coração a uma história na qual a rebeldia e a dignidade se confundem nos calendários de antes e de agora. Abril. Tlaxcala. Cacaxtla... No calendário de 1975, os moradores do povoado San Miguel del Milagro fizeram uma escavação nas ruínas de Cacaxtla e descobriram a pintura de um rosto humano de cor preta e com forte influência maia, algo assim como a figura de um indígena maia com o passamontanhas. O futuro se confundia assim com o passado. No calendário da conquista espanhola, o indígena Xicohténcatl Axayacatzin avisou que os espanhóis não representavam o retorno de Quetzalcoatl, "que os castelos flutuantes eram o resultado do trabalho humano, que se admira porque nunca visto", e prepõe aos quatro senhores de Tlaxcala "que vejam os estrangeiros como tiranos da pátria e dos deuses". No fim, a decisão dos governantes se impôs à visão de Xicohténcatl. Pouco depois, este tentou convencer os demais a aliar-se a Cuitláhuac, que acabava de subir ao trono após a morte de Moctezuma. Hernán Cortés tratou de trazer Xicohténcatl para o seu lado, mas o rebelde indígena se negou, e então foi preso e enforcado. Calendários antes, em meio a sofridas guerras, o guerreiro tlaxcalteco Tlahuicole, um otomi de Tocoac, de grande força, preferiu morrer lutando em vez de aceitar o perdão daqueles que oprimiam o seu povo. Calendários depois, em 1847, uma das unidades militares designadas ao castelo de Chapultepec se chamava "Batalhão Ativo de San Blas" e era comandada pelo tlaxcalteco Felipe Santiago Xicohténcatl. No dia 13 de setembro de 1847, Xicohténcatl e quase todo o seu batalhão caíram lutando contra tropas norte-americanas. "Tlaxcala", dizem alguns, quer dizer "terra do pão de milho". Mas, para o neoliberalismo, como testemunhado pela nuvem em seu trajeto, quer dizer "terra das maquiladoras". Em Tlaxcala, 62% da população do estado trabalha e vive nas regiões onde estão instaladas as maquiladoras. Aqui aumenta a instalação de plantas gigantescas que "comem" ou subordinam as pequenas. Dessa forma, uma empresa se instala na cidade e, logo se "desdobra", mandando seus capatazes instalar nas cidades a sua própria maquiladora informal, procurando comunidades de dois mil ou três mil habitantes, pagando salários mais baixos do que os da cidade, utilizando casas alugadas por poucos meses, para poder se mover de um lugar a outro. Uma variante deste fenômeno é que a maquila grande, ou formal, "compra" ou monopoliza a produção de pequenas maquilas informais. Em lugares como Hueyotlipan e Zapata, as empresas entram com as máquinas e os povoados com as pessoas, inclusive os pais de família deixam que seus filhos sejam contratados a partir dos oito anos. Os investidores entram em acordo diretamente com as famílias, que oferecem o espaço e os trabalhadores, enquanto o fabricante põe o salário, a ferramenta e os materiais. Como no século XIX, os próprios pais de famílias se tornam capatazes que vigiam o trabalho de seus filhos. Às crianças pagam $ 70 Pesos por semana, para tirar os fios do tecido da uma hora da tarde (supostamente quando saem da escola) às sete da noite. De conseqüência, as crianças estão ficando desnutridas e deixando o ensino primário. Como é uma região de alta expulsão de migrantes, as mães e as crianças têm que se submeter aos caprichos das maquiladoras para ter alguma renda. Devido à destruição do tecido comunitário e familiar, há proliferação de drogas e prostituição. Em ritmo acelerado, o solo de Tlaxcala se povoa de maquiladoras... e de resistência contra elas. Porque as maquiladoras não têm chegado sozinhas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que cresce a contratação de menores, as organizações sociais detectam um número, a cada dia maior, de Brigadas de Operações Mistas, postos de controle, quartéis de diferentes corpos policiais, etc. Há municípios como Panotla ou Santa Apolônia onde os enfrentamentos entre a população e os policiais ou os efetivos do exército federal têm sido abertos. Há bases desse tipo por todo Tlaxcala: Zacatelco, Ixtacuixtla, Calpulalpan, Tlaxco, Coapiaxtla e, sobretudo, em San Pablo Apetatitlán e no trecho de Xostla a Tlaxcala. Agem abertamente contra as pessoas que se opõem as maquiladoras. Em San Pablo del Monte o povo do lugar fechou a rodovia, o que fez com que a polícia chegasse e baixasse a repressão. Na empresa Arcomex, na rodovia federal, justo na entrada do estado de Tlaxcala, onde se fabricam autopeças para a VW, as trabalhadoras, cansadas de pertencer ao sindicato pelego da CROC, procuram formar um sindicato independente, para o qual batalharam a titularidade do contrato. Naturalmente, o sindicato pelego enviou bate-paus da própria CROC, que acabaram perseguindo a polícia - que vigiava para que não ocorresse um conflito - e poder bater livremente nas trabalhadoras que desejavam mudar de sindicato. O "milagre" das maquiladoras, tão querido aos governos e aos intelectuais de direita, não está na geração de empregos, mas sim no pesadelo de um círculo viciosos que permite condições de trabalho que deixariam aflitos os escravizadores espanhóis. "Se você não aceita trabalhar sob as minhas condições e com este salário, vou embora para outro lugar", dizem as maquiladoras. Assim, nos municípios de Lázaro Cárdenas e Emiliano Zapata existem oficinas de maquiladoras quase ao estilo colonialista que produzem sob um regime de superexploração. Ainda assim, nem tudo é exploração e dominação. No trecho de Xostla (Puebla) à cidade de Tlaxcala é onde se concentra a maior parte das terras agrícolas irrigadas. Os camponeses que aí vivem e trabalham se opõem terminantemente à instalação de maquiladoras. São particularmente conhecidos os casos de Santa Apolônia Teacalco e dos professores da Normal Rural de Panotla. Estes povoados avisaram que vão resistir ao que for para defender suas terras irrigadas. Também em Panotla, os estudantes da Normal Rural têm lutado para que seu centro de estudos não seja fechado, como quer o estado, e contra a alarmante militarização do inteiro município, que, desde 1994, tem sido tomado pelo exército como área militar. No município de Apizaco, os moradores têm travado uma luta de resistência legal e civil pacífica contra o projeto do Regulamento de Proteção e Viação que, seguindo o de Los Angeles, Califórnia, imporia um modelo ditatorial de controle "do trânsito". Contra ele, tanto motoristas como comerciantes e cidadãos em geral fizeram uma greve ativa de oito horas. Em resposta, a PGR mantém uma averiguação prévia com a qual se procura golpear o movimento. E o governo? Sentindo-se excluído do Plano Puebla-Panamá (e do orçamento) Sánchez Anaya lançou o projeto "Grande Visão" para tratar de se integrar ao "trem da modernidade". Sete eixos rodoviários atravessam todo o estado numa cruz norte-sul e leste-oeste, inserindo-o nas novas dinâmicas. Com seu centro em Apizaco, os ramais rodoviários do plano Grande Visão ligam todo o território de Tlaxcala com o eixo industrial da rodovia México- Puebla e com a cidade de Puebla. Os olhos e as mãos neoliberais têm todas as intenções de se apropriar do eixo Puebla-Tlaxcala, que é quarto corredor populacional mais importante do país. É natural: aqui sobram consumidores e trabalhadores. Mas sobra também rebeldia. Agora, no calendário do ano de 2003, o mês de abril traz a Tlaxcala o abraço de Emiliano Zapata. E o abraço, o carinho e o respeito são especiais quando envolvem os antigos assalariados agrícolas tlaxcaltecos que agora se mobilizam para exigir o que lhes pertence. Em meados de janeiro deste ano, um grupo de homens tlaxcaltecos (220 delegados de comunidades deste estado) da União de Assalariados Agrícolas Tlaxcaltecos, se reuniu na Cidade do México no Encontro Nacional dos Assalariados Agrícolas. São eles a dizerem o que pensam numa entrevista realizada por militantes da Frente Zapatista de Libertação Nacional. Com a palavra, uma rebeldia que não sofre pelo calendário da idade. O que é que vocês estão reivindicando? Hermenegildo: O 10% do convênio binacional feito entre os governos de 1942; quando Manuel Ávila Camacho era presidente e o presidente dos Estados Unidos era Truman, fizeram um convenio binacional em 1942 com os trabalhadores agrícolas e, em 43, com os ferroviários, e nele ambos os governos acordaram reter 10% dos salários que eram ganhos pelos assalariados agrícolas. Até agora, não conseguimos encontrar nada sobre esse 10%. Sabemos, sem ter uma informação precisa, a respeito do Banco West Fargo, que as companhias das fazendas é, que estavam cuidando deste dinheiro para fazer a transferência do dinheiro do Banco West Fargo. O escritório central do Banco West Fargo está em San Francisco, Califórnia, e mais tarde este dinheiro foi enviado ao Banco de Crédito Agrícola. Em seguida, ele [o banco] desapareceu e lhe deram o nome de Banco de Crédito Rural. De forma tal que é assim que sabemos que o dinheiro chegou, mas, até agora, tanto o governo, como até mesmo quando fomos a uma agência em um banco de Puebla, nos disseram quer foi culpa nossa. Que se não nos deram nossos trocados foi porque não chegamos a tempo, mas para todos os efeitos, em nenhum momento o governo se deu ao trabalho de divulgar isso pelo rádio e pela televisão. Então, o nosso protesto é para isso. Agora, pedimos ao governo federal, junto à Assembléia Legislativa, que nos dêem estes trocados, que tirem a venda dos olhos e limpem os ouvidos. Que se faça justiça e que nos dê o fundo de poupança de 10% que deixamos de 42 até 64. Então, não se façam de desentendidos. Fox, de uma maneira ou de outra, como cada presidente da República, creio que ele faz um inventário de tudo e que ele tem conhecimento do que existe e do que não existe no país. Queremos sim, que não se façam de bobos, que atendam nossa reivindicação. Que se dê pra nós, o quanto antes, o 10% desse fundo de poupança que deixamos. Pedro: Que se respeite o justo. Reivindicamos o justo que pertence a cada assalariado agrícola. Que se faça justiça para o trabalhador que se esfola debaixo do sol, e como diz um ditado vulgar, "a rachar o couro" e dar parte de sua vida para atender às necessidades de sua família e que eles façam isso por nós. Se eles pagam as empresas que têm tirado dinheiro, por que não nos pagam? Só têm pagado o dinheiro a um punhado de pessoas, e a nós que somos muitos não nos pagam. Reivindicamos o justo. Ignácio: Como membro representante dos treze, o que procuramos é a unificação a nível nacional de todos os assalariados agrícolas; todos nós que fomos prestar nossos serviços aos Estados Unidos pela Convenção Bilateral de ambos os governos, e pela qual estamos reivindicando o que nos pertence, que é o 10%, e não há a menor condição de dar isso por esquecido, de que esqueçam dos nossos direitos ou que se anulem nossos direitos. O que reivindicamos é um dinheiro justo, é o patrimônio das famílias. E não concordamos com o fato de que todos os políticos estejam enchendo os bolsos às nossas custas. Já não queremos depender de nenhum partido. Nós queremos uma luta justa e temos bases para cobrar o que nos pertence. Muito obrigado. Que opinião vocês têm das políticas dos governos? Alejandro: Sou um dos representantes que integram o grupo de assalariados agrícolas tlaxcaltecos e o nosso compromisso de hoje, 18 de janeiro, foi de reunirmo-nos com os grupos dos demais estados para chegarmos a um acordo quanto a algumas mobilizações que nós tlaxcaltecos temos pensado fazer. Sou um dos ex-assalariados agrícolas. Conheço todos os maus tratos e todos os problemas que tivemos naqueles tempos. Inclusive, nossos governantes daqui há anos continuam vivendo como reis, continuam saqueando o país e fomos nós que levantamos esse país com o nosso trabalho nos Estados Unidos. Quanto ao dinheiro, se pagavam 25 dólares para cada assalariado agrícola, que, como nós, saía para os Estados Unidos, e, fora isso, se tirava um 10% que depois nos seria devolvido, talvez como se fosse uma aposentadoria ou algo parecido. O contrato dos assalariados agrícolas acabou, os acordos que os governos tinham, e eles nos devem 10% que nós depositamos lá, de 1942 a 1964, pelo nosso trabalho, isso além dos juros. O que pedimos ao senhor Fox, à Secretaria de Governo ou às instituições para o caso, que se faça justiça, que nos dê o que é nosso. Não queremos nada de presente, nem queremos tirar- lhes nada. Queremos simplesmente que nos devolva o que nos pertence, que se faça justiça porque no estado de Tlaxcala somos cinco mil assalariados agrícolas, temos nossa documentação legal, temos documentos com os quais comprovar que estivemos trabalhando e labutando nos Estados Unidos. Temos contratos, temos vistos de permanência e outros documentos que comprovam nossa permanência nos Estados Unidos. A partir de hoje, vamos começar algumas mobilizações. Eles têm nos enganado, sobretudo o senhor Sergio Acosta, que é deputado federal do PRD que ia nos fazer justiça no final de dezembro último. Ele é que foi encarregado disso pelo senhor Fox há dois anos, três anos, foi encarregado, diz ele, de assumir a nossa questão. Ele evitou que nos mobilizássemos, senão já teríamos saído às ruas há um bom tempo. Mas ele nos disse que já tinha acertado com o senhor Santiago Creel uma parcela para este mês de dezembro quando iam solicitar no orçamento que nos devolvessem o que nos pertence. Este senhor Sérgio Acosta mentiu para nós, nos enganou, e por isso nós, como dizem os companheiros, não acreditamos em nenhum político, não acreditamos nos partidos. Não nos interessam os partidos, sejam da cor que forem. O que queremos é que se faça justiça e a partir de hoje vamos fazer um acordo a nível nacional com os ex-assalariados agrícolas e vamos fazer nossas mobilizações. Estamos dispostos a chegar até às últimas conseqüências. Não vamos esperar. Já somos velhos, doentes. Outros já não estão vivos, outros companheiros estão enfermos, e o que nos interessa é que o nosso governo nos faça justiça. O que vão nos dar que seja de uma vez, e já. Estamos dispostos a sair às ruas. Nada como presente, nada como dado, mas sim que se dê a nós o que nos pertence, o que é nosso. Como organizam toda a experiência que vocês têm, todos os anos de luta que carregam, para sair desta opressão que padecem já como pessoas idosas? Alejandro: Vejo que o problema do país, do México, não são os governantes: somos nós mexicanos que nunca soubemos exigir. Infelizmente, desde que fomos escravizados pelo jugo espanhol que nos manteve escravos por 450 anos, daí que já trazemos isso como herança. Nossos antepassados têm nos criado de uma forma pela qual temos que respeitar sempre o governante, temos que respeitar o patrão e isso tem sido um erro. Não sabemos ler, não sabemos comprar livros, pelo fato de que também não temos dinheiro suficiente. Queremos que nossos filhos estudem, e não nós. E, francamente, nem a nós, nem a nossos filhos se dá informação nas escolas a não ser somente alguns livros, de alguns escritores. Alguns de nós já não estão vivos para dizerem as verdades sobre o que os governos fazem. Mas se você lê, se dá conta de que o governo tem saqueado, como é o caso, por exemplo, do senhor Echeverria, do senhor López Portillo, do senhor Carlos Salinas do Gortari, do senhor de la Madrid. Há livros que estão escritos, têm passado pelas minhas mãos, agora não lembro os autores, mas eles falam que para se equiparar aos 450 anos em que fomos escravos dos espanhóis, bastaram quatro funcionários de descendência espanhola; o que os espanhóis não puderam fazer em 450 anos, levou só 24 anos para estes quatro descendentes de espanhóis saquearem o país e nos deixar numa ruína infame. Por isso, eu não acredito nos partidos e estamos dispostos a pedir e a exigir do governo que nos dê o que nos pertence. Nossos 10% mais os juros. E vamos lutar como idosos com nossos companheiros de mais idade e todo o mais, vamos ensinar aos moleques que agora sim já sabemos bem que estamos roubados, desculpe a palavra. Já foi o tempo em que ficavam com o pé no pescoço. Eles têm feito isso desde os nossos avôs, desde nossos antepassados e conosco durante a nossa juventude, mas nós nos demos conta de que estamos vivos ainda e que dá tempo ainda de fazermos alguma coisa para nossos filhos, para nossos netos nos dias que virão. Estamos dispostos a tudo. Felipe: Tenho visto com tristeza, senhorita, a situação em que vive a maioria daqueles que, como nós, são assalariados agrícolas que foram para os Estados Unidos. Seja por nossa ignorância, seja por falta de conhecimentos, é disso que as autoridades têm se aproveitados para nos ignorar. Temos sofrido em formas que raramente eles têm visto. Eles têm visto a vida de uma forma muito diferente, e têm abusado da nossa ignorância, do nosso escasso conhecimento. Naquele tempo dizíamos que se eles tivessem só um pouquinho de compaixão, só um pouquinho de sentimento para a gente que sofre, a gente que chora e que morre na esperança de encontrar um bom governo que sinta os anseios e os sofrimentos do povo. Muito tempo atrás, tivemos uma inquisição: 400 anos em que os espanhóis dominaram nossos antepassados e viveram como reis. Infelizmente, ultimamente tivemos algo que se parece com aqueles tempos da inquisição em que somente alguns têm a sorte de viver como reis, de desfrutar de tudo e ter de tudo, enquanto o pobre vive a duras penas e nos sofrimentos, e morre na esperança de que tenha algo no amanhã, não para ele: para seus filhos. Mas à medida em que os anos passam acontece o contrário. As autoridades são vorazes, as autoridades abusam, e os que não têm estudo, porque a maioria de nós naquele tempo foi para os Estados Unidos, continuam sem estudo, sem estudo. Porque a maior parte de nós tem só o primário. Não tivemos outros conhecimentos nas letras. As pessoas preparadas, as pessoas que têm estudo abusam desta nossa ignorância. E é isso que dá tristeza, que o nosso México que tem de tudo seja humilhado, seja saqueado por uns poucos que sabem mais do que nós. Hoje, que estamos começando uma luta, nós na nossa velhice - porque a maior parte de nós está entre os 70 e os 100 anos de vida - é isso que estamos ansiando: que o governo tome consciência daquela velhice, que tome consciência daqueles homens que sofrem. Vemos a carga que entregamos a nossos filhos com a nossa velhice. Nossas forças têm acabado; as portas do trabalho têm se fechado porque nossas forças já não dão pra trabalhar. É este o movimento que desejaríamos que o governo levasse em consideração. Nós sabemos respeitar. Nós amamos o respeito, o diálogo, a compreensão, e sabemos sentir amor pela pátria que nos viu nascer. É isso que queria que sentissem todos os que estão lá em cima: amor pela pátria que os viu nascer e não abusar da pátria que os viu nascer. Que Deus ilumine alguma pessoa que amanhã venha lhe fazer sentir e ver que seus irmãos sofrem, e que não pense que ele vai ser eterno, que nesta vida somos todos mortais, e que mais cedo ou mais tarde, afinal somos iguais. Mas há a cobiça de muitas pessoas que, mesmo sendo de baixo, saindo do nada, têm se enaltecido e se esquecem de sua origem, de onde eles nasceram. Oxalá Deus nos ilumine e nos proteja para podermos ganhar esta luta que acabamos de mencionar e na qual, na velhice, estamos nos unindo, e isso pode servir para o amanhã de nossos filhos, para que eles façam o mesmo de ir se juntando, de ver que amanhã podem ter uma vida melhor da que nós temos. Há algo mais que queiram comentar sobre o seu movimento? Hermenegildo: No começo, em 99, nasceu este movimento, esta luta, em Tlaxcala porque em 99 chegou até nós a notícia de um senhor, um companheiro nosso foi ao estado da Califórnia, e daí um filho foi pra rua e na sua volta, por coincidência, comprou o jornal onde se tornava manifesto ou se publicava a questão dos 10%, e insistia no fato de que já haviam mandado este dinheiro, que o banco que o havia retido, o Banco West Fargo, havia mandado o dinheiro para o México. Que fossemos cobrar estes trocados. Foi este o primeiro passo que demos. Começamos a divulgá-lo. No ano 2000 tivemos uma audiência pública com o governador de Tlaxcala. Antes estivemos com um deputado do PRD, mas não obtivemos nada. Finalmente, já em 2002, chegamos com a companheira Luz Maria, e assim já estamos com 3 anos de luta incansável. E foi através de uma coletiva de imprensa que conseguimos divulgar isso. Começamos em 6, depois chegamos a 60. Hoje somos 5 mil graças à nossa luta, á nossa insistência e a paciência que tivemos. Em 2002, o deputado federal Sergio Acosta havia nos feito uma proposta de 5 mil dólares cada um, e finalmente disse que no mês de dezembro os deputados federais iriam realizar uma sessão e que, ao chegarem a um acordo, teriam que nos perguntar se concordávamos com o que haviam acordado. Isso tudo foi uma mentira porque nunca mais soubemos dele. Fui a San Juan no dia 15 de novembro e os companheiros o viram muito angustiado, a tal ponto que ele não queria pegar o microfone, e quando os meus companheiros pegaram o microfone para que um companheiro assalariado rural falasse, se ofendeu e o deixou assim, com a palavra na boca. Não deu atenção e nem escutou. Sim, nos incomoda que sendo ele um deputado federal, um representante a nível nacional, ele não tenha palavra. Desejamos que haja mais seriedade, mais formalidade e mais respeito para conosco. Por isso estamos em luta e esperamos que não fiquem adiando isso, porque estão adiando as coisas e não há porque já que sabem que este fundo existe. Que dêem o que pertence a cada um de nós, conforme o direito e de acordo com os contratos de cada companheiro. Que isso não demore mais, que não passe deste ano. Porque dizem que foi Sergio Acosta quem sugeriu que se formasse a comissão de 18 deputados federais para dar prosseguimento à investigação sobre o fundo. Ele fez a proposta em 99. No ano 2000 se instituiu a comissão. Já estamos em 2003 e não aconteceu nada, quando eles estão de portas abertas. Nós pedimos apoio, batemos nas portas e eles as fecham, eles vão e nos fecham a porta. Queremos que nos digam a verdade e nada mais do que a verdade. "Já foi o tempo em que ficavam com o pé no pescoço". É algo que se parece com um "Basta" destes tlaxcaltecos que farão uma passeata erguendo sua dignidade rebelde pelas ruas da Cidade do México, neste 6 de fevereiro do ano de 2003. Com eles irão marchar Xicohténcatl, Tlahuicole e Zapata, porque em Tlaxcala a história e os calendários se entrelaçam, é verdade, mas sempre marcam rebeldia... Das montanhas do sudeste mexicano. Subcomandante Insurgente Marcos. México, janeiro de 2003. ________________ Este comunicado foi divulgado no La Jornada de 05 de fevereiro de 2003. EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO. 15 de fevereiro de 2003. Irmãos e irmãs da Itália rebelde: Recebam a saudação dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Nossa palavra se faz nuvem para atravessar o oceano e chegar aos mundos que estão em vossos corações. Sabemos que, hoje, no mundo inteiro se realizam manifestações para dizer "NÃO" à guerra de Bush contra o povo do Iraque. E isso tem que ser dito assim, porque não é uma guerra do povo norte-americano, nem é uma guerra contra Saddam Hussein. É uma guerra do dinheiro, que é representado pelo senhor Bush (talvez para enfatizar que lhe falta qualquer inteligência). E é contra a humanidade, cujo destino hoje está em jogo nas terras do Iraque. Esta é a guerra do medo. Seu objetivo não é derrotar Hussein no Iraque. Sua meta não é acabar com a Al Qaeda. Tampouco procura libertar o povo iraquiano. Não são a justiça, a democracia e a liberdade a dar vida a este terror. É o medo que a humanidade inteira se negue a aceitar um policial que lhe diga o que deve fazer, como deve fazê-lo e quando deve fazê-lo. O medo de que a humanidade se negue a ser tratada como um botim. O medo desta essência do ser humano que se chama rebeldia. O medo de que os milhões de seres humanos que hoje se mobilizam no mundo inteiro triunfem ao levantar a causa da paz. Porque as bombas que serão lançadas sobre o território iraquiano não terão como vítimas só os civis iraquianos, crianças, mulheres, homens e anciãos cuja morte será só um acidente no atropelado e arbitrário passo de quem invoca Deus, ao seu lado, como meio para reduzir a destruição e a morte. Quem encabeça esta estupidez (que é apoiada por Berlusconi, na Itália, Blair, na Inglaterra, e Aznar, na Espanha), o senhor Bush, comprou com dinheiro o poderio que pretende despejar sobre o povo do Iraque. Porque não temos que esquecer que o senhor Bush está como chefe da auto-proclamada polícia mundial graças a uma fraude tão grande que só pôde ser ocultada pelos escombros das Torres Gêmeas em Nova Iorque e pelo sangue das vítimas dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. O governo americano não se importa nem de Hussein, nem do povo iraquiano. O que lhe importa é demonstrar que pode cometer seus crimes em qualquer lugar do mundo, a qualquer momento e que pode fazer isso impunemente. As bombas que cairão no Iraque procuram cair também em todas as nações da terra. Querem cair também nos nossos corações e universalizar assim o medo que carregam dentro de si. Esta guerra é contra toda a humanidade, contra todos os homens e mulheres honestos. Esta guerra procura fazer com que tenhamos medo, que acreditemos que aquele que tem o dinheiro e a força militar tem também a razão. Esta guerra pretende fazer também com que nos encolhamos, que façamos do cinismo uma nova religião, que fiquemos calados, que nos conformemos, que nos resignemos, que nos rendamos... que esqueçamos... Que esqueçamos Carlo Giuliani, o rebelde de Genova. Para os zapatistas, nós homens somos o que nossos mortos sonham. E hoje nossos mortos sonham um "não" rebelde. Para nós só há uma palavra digna e uma ação coerente diante desta guerra. A palavra "não" e a ação rebelde. Por isso é que devemos dizer "não à guerra". Um "não" sem condições nem porém. Um "não" sem meias medidas. Um "não" sem cinzas que o manchem. Um "não" com todas as cores que pintam o mundo. Um "não" claro, redondo, contundente, definidor, mundial. O que está em jogo nesta guerra é a relação entre o poderoso e o fraco. O poderoso é assim porque nos faz fracos. Alimenta-se de nosso trabalho, de nosso sangue. Assim, ele engorda e nós definhamos. Nesta guerra, o poderoso invocou Deus do seu lado, para que aceitemos seu poderio e nossa debilidade como algo estabelecido como desígnio divino. Mas, por trás desta guerra não há outro deus que não seja o deus do dinheiro, nem outra razão a não ser o desejo de morte e de destruição. A única força do fraco é a sua dignidade. Ela o anima a lutar para resistir ao poderoso, para rebelar-se. Hoje, tem um "não" que enfraquece o poderoso e fortalece o fraco: o "não" à guerra. Alguém se perguntará se a palavra que convoca tantos no mundo inteiro será capaz de evitar a guerra ou, já iniciada, de detê-la. Mas a pergunta não é se poderemos mudar o rumo assassino do poderoso. Não. A pergunta que nos deveríamos fazer é: podemos viver com a vergonha de não ter feito o possível para evitar e deter esta guerra? Nenhum homem e mulher honestos podem permanecer calados e indiferentes neste momento. Todos e todas, cada um com seu tom, do seu jeito, com sua língua, com sua ação, todos não devemos dizer "não". E se o poderoso quer universalizar o medo com a morte e a destruição, nós devemos universalizar o "não". Porque o "não" a esta guerra é também um "não" ao medo, "não" à resignação, "não" ao esquecimento, "não" a renunciar a sermos humanos. É um "não" pela humanidade e contra o neoliberalismo. Desejamos que este "não" ultrapasse as fronteiras, que burle as alfândegas, que supere as diferenças de língua e de cultura, e que possa unir a parte honesta e nobre da humanidade que sempre, não devemos esquecê-lo, será a maioria. Porque há negações que unem e dignificam. Porque há negações que unem e fortalecem homens e mulheres no melhor de si mesmos, ou seja, na sua dignidade. Hoje, o céu do mundo fica cinzento de aviões de guerra, de mísseis que se autodenominam "inteligentes" só para oculta a estupidez de quem os manda e de quem, como Berlusconi, Blair e Aznar, os justificam, de satélites que assinalam os pontos onde há vida e haverá morte. E o solo do mundo se mancha de máquinas de guerra que pintarão a terra de sangue e vergonha. A tormenta vem vindo. Mas só vai amanhecer se as palavras feitas nuvem para atravessar as fronteiras se transformarem em um "não" de pedra e abram uma fenda na escuridão, uma fissura pela qual se possa fazer passar o amanhã. Irmãos e irmãs da Itália rebelde e digna: Aceitem este "não" que nós zapatistas, os mais pequenos, lhes mandamos do México. Permitam que o nosso "não" se irmane ao seu e a todos os "não" que hoje florescem em toda a terra. Viva a rebeldia que diz "não"! Morra a morte! Das montanhas do sudeste mexicano. Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional, Subcomandante Insurgente Marcos. México, fevereiro de 2003.
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