Dezembro: Distrito Federal, a décima segunda estela. (Segunda imagem: México DF, o dezembro de Acteal e o porquê do País Basco)

24/02/2003
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Pedra e nuvem continuam percorrendo a cidade e as obras que, se adivinha, levam a levantar outra cidade para os poderosos, uma cidade que subordine as outras cidades. Para garantir isso, do norte agitado e brutal, López Obrador importou o chamado Plano Tolerância Zero (e com ele vêm o Robo Cop Giuliani e sua guarda pretoriana). O plano de baseia numa matéria dos criminólogos G. I. Kelling e J. Q. Wilson, de 1982: "Vidros quebrados". De acordo com esta, existem situações que favorecem o aparecimento e o desenvolvimento do crime: "Há um terreno abandonado, a erva daninha cresce, alguém quebra os vidros, os adultos já não repreendem as crianças que bagunçam, e estas, animadas assim em suas andanças, se tornam rebeldes, as famílias vão embora, o lixo vai se acumulando, o povo começa a beber diante das lojas, um bêbado cai na sarjeta e pode ficar aí até se recuperar, os mendigos se dirigem aos transeuntes chateando-os, e se há mendigos, amanhã chegarão os ladrões e depois os assassinos". Seguiu a lógica? Com este raciocínio impecável a polícia não persegue os grandes criminosos, mas sim as crianças e os jovens que acabaram se transformando em mendigos e bêbados, que, por sua vez, acabaram se transformando em ladrões e assassinos. Se você encontra alguma semelhança com a doutrina da guerra preventiva que alimenta a guerra de Bush-Blair-Aznar contra o Iraque, é porque você tem maus pensamentos, já que esta é a cidade da esperança. Ainda que, claro, com este plano estarão reduzidas as garantias individuais, o pensamento conservador irá avançar e toda forma de solidariedade que não passe pelo Ministério Público será suspeita de crime organizado. Finalmente, trata-se de construir um cerco de segurança em torno da cidade do Poder, um cerco preventivo que, para desempenhar o seu papel, deverá excluir ou prender os pobres da cidade, que são aqueles que fazem com que a cidade viva e caminhe. Com tudo isso, López Obrador trabalha em outra construção: a de um acordo com os grandes capitais da indústria e do comércio. Para obter sua aprovação, o chefe do Governo oferece uma cidade sob controle social e policial, além da infra- estrutura necessária à nova metrópole onde os ricos não serão os primeiros, mas sim os únicos. Os passos são estes: primeiro se sublinha que é necessário parar as construções de moradias nos bairros da periferia do DF; em seguida, se diz que é indispensável repovoar as áreas do centro; imediatamente se cria a Fundação Centro Histórico, encabeçada por Carlos Slim Helú; depois se promovem três projetos faraônicos: o corredor financeiro (a Rua da Reforma), o projeto Alameda e o projeto Centro Histórico; finalmente, se anuncia que Carlos Slim está comprando terrenos e velhos edifícios de toda esta região. Assim, a construção de moradias populares será suspensa, sob o pretexto de que já não é possível crescer rumo à periferia. Ao mesmo tempo, três bairros serão o modelo do que será a Cidade Global. O nível de renda, educação, serviços médicos, serviços de comunicação e, desde já, de segurança pública, serão bem diferentes em comparação aos dos demais bairros. Carlos Slim Helú, o homem mais rico do México e da América Latina, não está por trás de tudo isso, mas sim à frente. Numa espécie de biografia não-autorizada (Carlos Slim. Retrato inédito, Ed. Oceano), o jornalista José Martínez Mendoza (que antes escreveu a biografia de Carlos Hank González) dá um perfil do senhor Slim, que se orgulha de ser um self made man, um homem que cultivou com esmero a imagem de ter começado de baixo. Mas, provavelmente, deve estar se referindo ao térreo de sua mansão, porque Slim entra na lista dos grandes milionários depois de comprar a Tefefones do México (TELMEX) com 400 milhões de dólares, sendo que seu valor era de 12 bilhões de dólares. Quem foi o vendedor? Carlos Salinas de Gortari. Desde 1984, quando se associou a outros empresários na Livre Empresa SA (LESA), que compraria as estatais, Slim trabalhou a amizade com os políticos. E depois não limitou o ser círculo aos priistas, mas o ampliou incluindo panistas e perredistas, intelectuais críticos e artistas, diretores dos meios de comunicação. Com a mesma inteligência e pragmatismo, Slim e López Obrador deram logo o click que não costuma abundar entre políticos e empresários. Mas ambos sabem que a deles não é amizade. São vizinhos em Cuicuilco, têm interesses comuns, se oferecem favores e, como comerciantes, fingem cordialidade enquanto revisam cuidadosamente suas contas e, no final de cada reunião, procuram em seus bolsos para ver se não falta nada. Não são poucos os intelectuais e os políticos que se orgulham de ter a amizade de Carlos Slim Helú. Alguns deles se vangloriam de assessorar o homem mais poderoso e toda a América Latina. Mas o senhor Slim não tem assessore e nem amigos, tem empregados. Só que alguns deles não sabem disso. Um deles é o senhor Felipe González Márquez, ex-presidente do governo espanhol e agora ajudante de ordens dos grandes capitais europeus. O senhor González realiza viagens freqüentes ao México para partilhar com seu amigo Slim o gosto pela boa mesa, o cultivo dos bonsáis, a fotografia e o bilhar. Mas foi anos antes, em 1995, e pela mão de Slim Helú, que Felipe González, quando presidente do governo espanhol, fez amizade com outra pessoa: Ernesto Zedillo Ponce de León. Para chegar a estas épocas, vamos antes ao passado imediato: No mês de setembro do ano de 2002, horas antes que o veredicto da Suprema Corte de Justiça da Nação sobre a contra-reforma indígena se tornasse público, o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) soube qual seria a decisão e seu significado: os três poderes da União haviam se unido para decretar o cancelamento definitivo da via do diálogo e da negociação para a solução do levante zapatista. Começamos a trabalhar numa das opções que havíamos previsto desde o final de 2001: tentar a nível internacional o que havia fracassado a nível local. Assim, o EZLN enviaria uma delegação à Europa com o objetivo de apelar perante os organismos internacionais e, apoiando-se naqueles que, no México e no mundo, simpatizam com a causa indígena, tratar de conseguir o reconhecimento dos direitos e da cultura indígenas. Tratar-se-ia de uma marcha semelhante à de 2001, mas com algo fundamentalmente diferente: se na mobilização de 2001 o EZLN se limitou única e exclusivamente ao tema indígena, na marcha internacional vincularia esse tema às marchas que existem no mundo e, sobretudo, com as que têm a ver com o reconhecimento das diferenças, das resistências e rebeldias, e, de forma muito especial, com as oposições aos preparativos bélicos que haviam sido colocados em andamento contra o Iraque. Pensávamos que a Europa fosse um terreno onde o belicismo internacional pudesse ser enfrentado tirando-o de sua lógica, e que isso poderia se irradiar para o resto do mundo. Não era que nos sentíamos com a capacidade de provocar este movimento internacional, mas sim com a possibilidade de contribuir, junto a outras forças que já se moviam na Europa social, para que algo se colocasse em movimento. Pensávamos que era a oportunidade de participar mais diretamente da construção de um mundo onde caibam todos os mundos. Em resumo, não iríamos à Europa dos bem-comportados, mas a nossa seria sim uma palavra de rebeldia. O problema era, claro, como e quando ir. Estávamos nesta situação quando, no dia 11 de novembro de 2002, Dia de Finados, uma pessoa fez contato com o Comando Geral através de um mensageiro. Cumprindo o acordado, não podemos dizer muito a respeito desta pessoa, só que ela estava muito próxima dos círculos do poder político e econômico entre os anos de 1993 e 1996. Após colocar as condições quanto à discrição e ao segredo, o mensageiro da pessoa dizia, palavra mais, palavra menos, que tinha uma informação que poderia ser útil ao EZLN. E agora cito textualmente: "Se interessar, me digam. Trata-se de Acteal". Não era a primeira vez que gente dissidente do governo nos fazia chegar informações, às vezes corretas, às vezes falsas, assim que lhe mandamos dizer que podia nos enviar o que soubesse. E isto é o que ela revelou: Nos meses posteriores a fevereiro do ano de 1995, fracassada a traição de Zedillo em relação ao EZLN junto à ofensiva militar que a acompanhou, e esgotado o teatro da detenção de Carlos Salinas de Gortari, os generais Renan Castillo (chefe militar e governado de fato do Estado de Chiapas) e Cervantes Aguirre (Ministro da Defesa Nacional) insistiam na necessidade de ativar grupos paramilitares para enfrentar os zapatistas (Renán Castillo havia estudado com os norte-americanos e Cervantes Aguirre estava em plena lua de mel com seu homólogo estadunidense, de tal forma que a opção que naquele momento chamavam de Colômbia tinha o respaldo do Departamento de Estado norte-americano). Contudo, Zedillo não se decidia. Neste mesmo ano de 1995, aparece uma personagem do governo espanhol. "Íntimo do Presidente", diz quem nos passou a informação, "participou de reuniões que não eram estritamente sociais, mas nas quais se tocavam questões de Estado". Numa das reuniões, Zedillo comentou algo sobre os zapatistas e o problema que representava acabar com eles, pois tinham a opinião pública do seu lado. A personagem do governo espanhol disse então que o que teria a se fazer era destruir a legitimidade dos zapatistas e depois dar um golpe. Zedillo lembrou à personagem a história do dia 9 de fevereiro e suas conseqüências. O espanhol esclareceu que não se referia a isso, mas sim que, se os zapatistas lutavam pelos indígenas, pois havia que se fazer com que lutassem contra os indígenas. Na Espanha, disse ele deste país, temos criado alguns grupos para enfrentar o separatismo basco. Zedillo disse que sabia dos GAL (Grupos Antiterroristas de Libertação) e que havia uma investigação para apurar responsabilidades governamentais nos seqüestros e assassinatos de membros da ETA. O espanhol não se angustiou e sublinhou que matar e seqüestrar assassinos não é um crime, mas sim um favor que se faz à sociedade. Acrescentou que os GAL faziam outras coisas, como realizar atentados que, em seguida, se atribuíam a ETA. Zedillo perguntou se o rei sabia disso. O espanhol respondeu: "O rei sabe o que convém e finge não saber o que não lhe convém", e acrescentou que não vai acontecer nada, que há apenas alguns dias de escândalo na imprensa já que ninguém vai aprofundar os fatos quando os mortos são terroristas, e que há decisões graves que devem ser tomadas por razões de Estado. Zedillo sublinha que isso não serve aqui, porque os zapatistas não são terroristas. "Tornem-nos terroristas", diz o espanhol, e prossegue: "O que se deve fazer é criar um grupo armado de indígenas, fazer com que se enfrente com os zapatistas, eles combatem, há mortos, o exército entra para pacificar todos e pronto". O espanhol continua: "Nós poderíamos dar uma mão com alguns conselhos, enfim, temos um pouco de experiência. Claro que, em troca, esperamos do seu governo algum tipo de colaboração, como a extradição dos membros da ETA que vivem em seu país". Zedillo diz que não tem certeza de que são da ETA. "Isso não é um problema - diz o espanhol -, nós nos encarregamos de fazer com que sejam". O espanhol acrescenta que o seu governo poderia apoiar também o governo mexicano nas negociações comerciais com a Europa, e finaliza sua argumentação com uma frase: "Homem, Ernesto, se nós espanhóis somos especialistas em alguma coisa, é em exterminar indígenas". A informação que nos chegou chega até aqui. O resto se deduz rapidamente: Zedillo ordena a ativação dos grupos paramilitares, o governo espanhol dá assessoria e o governo mexicano aumenta a extradição de supostos membros da ETA. Em 22 de dezembro de 1997, um grupo paramilitar marcha para enfrentar os zapatistas. Estes se retiram para evitar um choque entre indígenas e avisam os não-zapatistas da matança. Em Acteal ficam os membros de Las Abejas, desarmados e confiantes de que, sendo neutrais, nada lhes acontecerá. A carnificina começa e termina enquanto policiais e militares esperam pacientemente para entrar e "pôr paz" no "enfrentamento" entre indígenas. A verdade é descoberta quase que imediatamente graças aos meios de comunicação. A notícia dá a volta ao mundo e comove todo ser humano nobre. Em Los Pinos, Zedillo, sozinho, repete: "Por que crianças e mulheres?". Com o sangue de Acteal recém-derramado, entrevistado pelo jornalista mexicano Luis Hernández Navarro (La Jornada, 10 de março de 1998), Felipe González se expressava assim sobre a matança: "Isso sempre cria uma tremenda comoção. Vivemos nesta globalização da mídia que gera impacto. O México tem a grandeza pela qual uma coisa assim é uma notícia explosiva e que preocupa. Situações bem mais graves em outras latitudes não merecem páginas de jornal, ou não chegam a atravessar as barreiras da comunicação". É assim que tudo não passa de um problema de exageração da mídia... A pessoa que falou com Zedillo sobre os GAL, os paramilitares e a extradição dos bascos era Felipe González Márquez? Era alguém do seu governo? Algumas lembranças arrancadas de calendários anteriores: 1995: na Espanha, o Tribunal do Conflito dá ao governo de Felipe González o poder de não entregar a documentação vinculada aos Grupos Antiterroristas de Libertação. Fundados em 6 de julho de 1983, os GAL são responsáveis por, pelo menos, 40 atentados com 28 mortos, entre 1983-1987. Em outubro de 1995, Ernesto Zedillo se reúne a portas fechadas com Felipe González em Barilhoche, Argentina, por ocasião da Quinta Cúpula Latino-Americana. 1996, janeiro: os acusados pela guerra suja contra a ETA se queixam de que toda a questão dos GAL é uma conspiração para "derrubar" o então presidente Felipe González. O PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) mantém José Barrionuevo, ex- Ministro do Interior processado por sua atividade terrorista, com o ex-Secretário para a Segurança do Estado Rafael Vera, na lista de candidatos a deputado. Ernesto Zedillo Pónce de León viaja à Espanha em sua primeira visita de Estado a este país. Em fevereiro é detido Jaime Iribarren, parlamentar de Herri Batasuna, acusado de queimar uma escavadeira. Também nestes dias é detido Jon Idígoras, líder de Batasuna, por ordens do juiz Baltasar Garzón, que queria vinculá-lo à organização Euskadi Ta Askatasuna (ETA). Entre os antecedentes criminais de Idígoras está o de ter entoado uma canção nacionalista durante uma visita do rei Juan Carlos a Guernica, em 1981. Circula um vídeo no qual integrantes da ETA fazem uma proposta de negociação com o Estado Espanhol. Felipe González desqualifica as pesquisas que dão vantagem ao Partido Popular (PP) sobre o PSOE. Em março, o PSOE perde as eleições pelo Partido Popular de Aznar. O cantor hispânico Raphael manifesta suas esperanças em Aznar: "Tenho certeza de que saberá fazer justiça da memória de Franco". Julho de 1996: a justiça espanhola condena José Koldo Martín Carmona, deportado pelo México em novembro de 1995, a 122 anos de prisão. Com Lourdes Churruca, Koldo foi acusado de três atentados que não produziram vítima alguma. No mesmo período, três jovens bascos eram julgados por ter incendiado um veículo da polícia. As penas pedidas para eles oscilavam entre os 111 e os 592 anos de prisão. Neste ano, sai o livro Roldán-Paeza, a conexão suíça, do jornalista Juan Gasparini. O livro revela alguns aspectos da corrupção no interior do governo de Felipe González, sobretudo, sobre Luis Roldán, ex-diretor da Guarda Civil. Entre as empresas corruptoras, está a companhia Siemens. Um de seus advogados, Ulrich Kohlí, além de vender minas anti-homem a Saddam Hussein, lavou dinheiro para a família Salinas do Gortari. Felipe González sai em defesa do amigo Carlos Salinas de Gortari elogiando suas políticas. 1998, julho: José Barrionuevo e Rafael Vera, vinculados aos GAL, são condenados a 10 anos de prisão. Durante o processo, Felipe González compareceu como testemunha e, em várias ocasiões, apelou à razão de Estado como justificativa de determinadas decisões graves em situações críticas. Em março de 1999, uma foto jornalística (La Jornada, Pedro Valtierra) apresenta Zedillo cumprimentando Felipe González sob o olhar complacente do ex-Primeiro Ministro israelense Shimon Peres. Em outubro do ano 2000, Zedillo come com Felipe González num luxuoso restaurante da colônia Polanco, na Cidade do México. Em 25 de outubro de 2001, o jornalista Raul Trejo Delarbre, em "Sociedade e Poder", sublinha que a Prisa (espanhola) e a Televisa (mexicana) formalizaram a incursão do capital espanhol na rádio mexicana. Participaram o Presidente Fox e os Presidentes de Televisa e Prisa, além de Carlos Slim Helú, Felipe González Márquez e Lino Korrodi. Desta forma, se violou o artigo 31, inciso VI, da legislação federal. Também esteve presente Juan Luis Cebrián, autor do livro sobre Felipe González, O futuro já não é o que era, e conselheiro delegado da Prisa. Em fevereiro de 2000, Zedillo realiza a sua visita oficial à Espanha. No jantar com Aznar, Zedillo lembra do seu encontro com o agora presidente do governo espanhol no final de 1994 e agradece o apoio da Espanha nas negociações do Acordo de Livre Comércio entre o México e a União Européia. O rei e Aznar agradecem Zedillo pela "colaboração" do México na extradição dos supostos membros da ETA. Ao longo do mandato de Zedillo, 1994-2000, vários cidadãos bascos foram deportados para a Espanha acusados de pertencer a ETA, há testemunhos na Anistia Internacional de que foram torturados. Em dezembro de 2002, o juiz Baltasar Garzón sai em defesa do rei, de Felipe González e de José Maria Aznar, a quem define quase como "próceres da democracia". Em fevereiro de 2003, Aznar faz uma viagem ao México para encontrar-se com Vicente Fox. A mídia manipula dizendo que a viagem se deve a que o espanhol tratará de convencer o mexicano a apoiar a guerra no Iraque. A verdade é outra: Aznar vem ao México para convencer Fox a não deixar que os zapatistas viajem à Espanha. (Informações extraídas do jornal mexicano La Jornada, anos 1996-2003, jornalistas Pedro Miguel, Luis Javier Garrido, marcos Roitman, Kyra Núñez, Jaime Avilés, Armando G. Tejeda, Rosa Elvira Vargas e Luis Hernández Navarro. Agências de informação: AFP, ANSA, EFE, Reuters, IPS, AP). Avaliadas as informações, o EZLN decide que o projeto de ir à Europa deve começar pelo Estado espanhol e tocar o tema do País Basco. Pensava de colocar assim as óbvias interrogações que se derivam disso tudo e as responsabilidades do governo espanhol. Fica assim respondida a pergunta que muitos se faziam: "Por que o EZLN se mete na questão do País Basco?" Foi o governo espanhol quem meteu a questão basca na luta indígena no México, não nós. Nós zapatistas consideramos então nosso dever ir à Espanha para demonstrar ao rei, a Felipe González, a José Maria Aznar e a Baltasar Garzón que mentem com isso de que "se os espanhóis são especialistas em alguma coisa é em exterminarem indígenas", já que continuamos vivos, resistindo e rebeldes. Nós não poderíamos provocar uma matança na Espanha, mas sim um debate. Assim, pensamos na iniciativa Uma chance à palavra. Além disso, havia o problema de que a questão basca era tabu entre as forças progressistas e só podia ser tocada para condenar o terrorismo da ETA, esquecendo cuidadosamente duas coisas: uma, o terrorismo de Estado, e outra, que a ETA não é a única força que luta pela soberania de Euskal Herria. Não ignoramos, então, que tocar na questão basca poderia causar mágoas, mas ponderamos que era nosso dever fazê-lo. Além disso, nós zapatistas tínhamos perguntas que esperavam respostas. Em 17 de novembro de 2002, na apresentação da revista mexicana Rebeldia, advertimos sobre o dever e insinuamos aonde se dirigiria nossa palavra. Dias depois lançamos uma provocação que tinha Felipe González como objetivo principal. Erramos em provocar González, mas em seu lugar cai, ferido no seu ego, o juiz Baltasar Garzón. A carta ao Aguascalientes de Madri já assinalava a intenção zapatista de ir à Europa e tocava na questão basca. Depois aconteceu que aconteceu. O EZLN nunca se propôs a mediar o conflito basco, nem muito menos a dizer aos bascos o que deveriam fazer ou deixar de fazer. Só pedimos uma chance à palavra. Nossa proposta pode ter sido estúpida ou ingênua, ou as duas coisas, mas nunca foi desonesta, nem quis ser desrespeitosa. Não é do nosso feitio. Foi esta a intenção zapatista, sem duplas intenções e nem acordos às escuras. A informação que tínhamos, pensávamos em torná-la pública quando avançássemos nas demandas penais perante os organismos internacionais. Por isso, diante das críticas que nos fizeram de todos os lados, apostando que nos metíamos em algo que desconhecíamos, respondíamos que sobre a questão basca sabíamos mais do que muitos pensavam, a saber, a conexão Pais Basco-Chiapas, ou seja, a conexão entre o terrorismo do Estado espanhol e do mexicano, enfim, o terrorismo internacional. Se agora revelamos o que sabemos é porque decidimos cancelar a nossa viagem à península ibérica. Nossa iniciativa era limpa e honesta (como aval moral temos a nossa própria história), mas logo se viu rodeada pela condenação e a incompreensão daqueles que se dizem progressistas, os quais, pressionados pela mídia, não quiseram esperar para ver o desfecho. Para eles temos somente um sentimento de reprovação e nada mais, porque não se alimenta o rancor contra aqueles que, podendo ser mesquinhos, têm sido generosos em outras ocasiões. A direita fez o seu trabalho e beneficiou a proposta, pois, à força de satanizá-la e satanizar-nos, a deu a conhecer e provocou um debate sem precedentes. Do lado da esquerda, alguém se atreveu, de forma ruim e mesquinha, a sugerir que a separação que o EZLN faz em relação à ETA era uma condição do governo espanhol para permitir a viagem da delegação zapatista às terras ibéricas. Nossa separação do terrorismo de esquerda não é nova, vem da fundação do EZLN, há quase 20 anos, e ainda de antes. Se devemos nos abster de participar do encontro Uma chance à palavra, não é porque as críticas, as reprovações ou acusações mesquinhas nos tiram o sono. Deve-se ao fato de que não podemos, nos termos de nossa ética, participar de um encontro que não contará com o aval de TODAS as forças nacionalistas do País Basco e que corre o risco de transformar-se num tribunal que julga os ausentes, no lugar de ser um espaço de discussão e reflexão sobre os caminhos do País Basco. A responsabilidade de não ter conseguido convocar as forças bascas é única e exclusiva do EZLN, sobretudo, de quem é o seu porta-voz: Marcos (sem o grau militar, para aqueles que não gostam disso). Nossas palavras (ou o nosso jeito, como nós dizemos) no lugar de convocar, feriram muitas pessoas honestas e nobres do País Basco. Ainda que nunca tenha sido nossa intenção, isso ocorreu. O lamentamos profundamente. Queremos pedir sinceramente nossas desculpas a todas as pessoas do País Basco que ofendemos. Oxalá algum dia possam nos honrar com o seu perdão, porque o perdão entre os irmãos não envilece. Quanto ao desafio para o debate que nos lançou o juiz Garzón, temos esperado o tempo suficiente. O juiz Garzón, apesar de ser o desafiante, preferiu manter-se em silêncio. Demonstrou assim que ele é bom para interrogar os presos torturados, para fazer-se fotografar com as vítimas do terrorismo e fazer campanha de autopromoção para o prêmio Nobel da Paz, mas que não se atreve a debater com alguém mediamente inteligente. E não porque não seja mais hábil com a palavra, mas sim porque Garzón apresenta leis onde faltam razões. Antes acusávamos Garzón de ser um palhaço grotesco. Não estava certo. É só um falador e um covarde. Queremos agradecer de maneira especial às organizações de esquerda Abertzale, Herri Batasuna e Askapena, que foram as únicas que responderam afirmativamente à nossa iniciativa (ou, pelo menos, as únicas que nos fizeram saber disso), bem como as pessoas que a título individual ou coletivo, no País Basco, no Estado Espanhol, na Itália e no México, acolheram com interesse e honestidade a nossa proposta. Talvez algum dia as nossas palavras aprendam a refletir o carinho o respeito e a admiração que sentimos pelo povo basco e por sua luta política e cultural. Talvez algum dia se possa realizar este encontro e, dando uma chance à palavra, se encontrem os caminhos para o amanhã da independência, democracia, liberdade e justiça que o povo basco e todos os povos do mundo merecem. Das montanhas do sudeste mexicano. Subcomandante Insurgente Marcos. México, 24 de fevereiro de 2003. Dia da Bandeira Mexicana
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