Tropas de desestabilização
04/01/2011
- Opinión
“A Minustah deveria pacificar o país e hoje estamos pior. A Minustah mata haitianos", denunciou Ladiou Novembre, professor de ensino médio em Porto Príncipe, durante uma das dezenas de manifestações que eclodiram por todo o país nos últimos meses contra a ocupação militar da Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti.
De fato, 2010 tem sido o ano mais controverso da atuação da Minustah, que ocupa o território haitiano desde julho de 2004, quando foi criada sob o pretexto de que o Haiti representava “uma ameaça à paz e segurança da região”.
Durante os últimos seis anos foram recorrentes as denúncias de tortura, estupro e assassinato por parte de soldados da Minustah. Além disso, passados mais de onze meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de Janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta eficaz às vitimas do terremoto. Ruínas e acampamentos improvisados tomam as ruas da capital Porto Príncipe, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para reconstrução de prédios e edifícios.
Ainda sob os efeitos dos estragos causados pelo terremoto, uma epidemia de cólera se alastrou pelo país a partir de meados de outubro, matando até a primeira quinzena de dezembro mais de dois mil haitianos e infectando outros 100 mil. Uma pesquisa divulgada no início de dezembro pelo jornal Le Nouvelliste confirmou aquilo que a população haitiana já suspeitava: foi a própria Minustah quem introduziu a cólera no Haiti. A pedido do governo da França, o epidemiologista francês Renaud Piarroux realizou uma investigação científica durante o mês de novembro e concluiu que a bactéria causadora da cólera foi trazida a solo haitiano pelo batalhão nepalês das Nações Unidas localizado no município de Mirebalais, às margens do Rio Lartibonite, que corta boa parte do país e é indicado como o principal foco de disseminação da epidemia.
A essa conjuntura calamitosa somaram-se conturbadas eleições presidenciais realizadas sob o aval da ONU no último dia 28 de novembro. Apesar dos apelos de diversos setores da população haitiana, de ONGs estrangeiras e inclusive da maioria dos candidatos, que solicitavam o adiamento da eleição até que a epidemia estivesse sob controle, a Minustah, junto com o Conselho Eleitoral Provisório [CEP], decidiram manter a data do pleito. O resultado foram eleições marcadas por diversas irregularidades como ausência e saque de urnas, atuação truculenta de militares, detenções, tiros e o assassinato de um jovem no departamento de Lartibonite, segundo informações da imprensa local e de observadores internacionais.
Os dias posteriores ao pleito foram marcados por denúncias de fraudes e marchas populares exigindo o cancelamento das eleições, sendo que pelo menos duas pessoas foram mortas em confronto com as tropas da ONU. Os aeroportos locais foram fechados. Os resultados preliminares divulgados em 07 de novembro pelo CEP mostraram a vitória em primeiro turno da ex-primeira-dama Mirlande Manigat, de 70 anos, com 31,37% dos votos, seguida por Jude Celestin, candidato do atual presidente Rene Preval, com 22,48%, enquanto o cantor Michel Martelly ocupava o terceiro lugar, com 21,85%.
Novos protestos foram registrados no país após o anúncio dos resultados, já que os simpatizantes de Martelly acreditam que fraudes levaram o candidato governista ao segundo turno, que deve acontecer em janeiro. Após as reiteradas denúncias e a pressão internacional, a Minustah e o Conselho Eleitoral Provisório (CEP) do Haiti anunciaram no dia 09 de dezembro que revisariam os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais.
É diante desse quadro de caos generalizado, com eleições fraudulentas, epidemia de cólera se alastrando a cada dia, ruínas e acampamentos improvisados causados por furacões e terremotos que se encontra o Haiti atualmente, o que faz emergir a pergunta sobre qual a real função da Missão da ONU no país e que papel ela joga na conjuntura atual do país e do continente. Mas para responder a essa questão é preciso compreender não só a formação em si do Haiti enquanto nação, como também inserir a Minustah dentro da trajetória de constante interferência de forças estrangeiras, armadas ou não, nessa formação.
Forças estrangeiras
O processo revolucionário que culminou com a independência haitiana em 1804 foi marcado por duras e sangrentas batalhas. Durante treze anos, mulatos e escravos daquela que era a colônia mais próspera das Américas derrotaram as três maiores potências bélicas do mundo. Os exércitos da Espanha, Inglaterra e França foram expulsos da pequena ilha caribenha e no dia primeiro de janeiro de 1804 o general Jean Jacques Dessalines declarou a independência do Haiti, até hoje a única revolução de escravos vitoriosa da história. Como afirma Gerald Mathurin, agrônomo e coordenador do movimento camponês KROS [Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès]: “Saímos do nada, de uma condição subumana, de uma massa de gente que não falava a mesma língua, que era açoitada dia e noite. E desta condição conseguimos com destreza e com visão liberar um país e fazer a independência. É um ato maior na história do mundo, porque vamos colocar em cena uma raça, uma qualidade de pessoas que antes se afirmava não serem humanos”.
Mas as potências ocidentais venderiam caro a derrota e continuaram com as ameaças de invasão do território haitiano. Isso obrigou os primeiros governantes haitianos a conformar uma verdadeira economia de defesa, investindo maciçamente na aquisição de armamentos e na construção de fortes por toda a costa haitiana, no intuito de impedir uma nova invasão e a recolonização do país.
Mas não era só com armas que as forças estrangeiras pressionavam o Haiti. A França, em conluio com os Estados Unidos, impuseram um embargo econômico ao novo país. Sem a possibilidade de aumentar suas divisas com a exportação de produtos, sem recursos para continuar resistindo às investidas militares, vendo os generais do antigo exército libertador imersos em disputas e assassinatos pelo poder, em 1825 o então presidente Jean Pierre Boyer sede à pressão francesa e concorda com o pagamento de uma suposta ‘dívida da independência’ a sua ex-metrópole, o que na prática sepultou de vez qualquer possibilidade de soberania econômica da jovem nação.
Conforma-se então, nas palavras do economista Camille Chalmers, “um Estado oligárquico, um Estado ao redor de novas classes dominantes que construíram seu poder marginalizando sistematicamente a classe camponesa que havia realizado a revolução antiescravista. Dessa forma, trata-se de um Estado que se constitui de maneira totalmente oposta à nação. Um Estado opressivo, um Estado oligárquico, um Estado depredador, que define seus interesses sobre o intercâmbio comercial com o estrangeiro e com o mercado capitalista”.
É desta cisão entre Estado e população que nascerá o clima de instabilidade política que permeará a história do Haiti até os dias de hoje. As seguidas intervenções estrangeiras que virão, ao invés de sanar essa situação, apenas a reforçarão.
É o que acontece em 1915, quando cerca de 20.000 mil marines estadunidenses invadem o país e lá permanecem até 1936, criando um Estado totalmente dependente e com um exército que obedece às ordens que vem diretamente de Washington, realizando assim a substituição da dependência do Haiti ante as potências européias pela dependência direta aos Estados Unidos.
Mas as intervenções não pararam por aí. Em 1957 o ditador François Duvalier chegou ao poder sob os auspícios do governo estadunidense. Durante os 29 anos de ditadura militar – primeiro com François Duvalier e, a partir de sua morte em 1971, com seu filho Jean Claude Duvalier – foram assassinados mais de 30.000 haitianos e a dívida externa do país subiu 40%.
Com a queda da ditadura dos Duvalier no final da década de oitenta, configura-se no Haiti um movimento de massas que busca resgatar a soberania nacional, um movimento popular que não estava lutando somente contra a ditadura, mas reivindicava também mudanças substanciais no contrato social. Uma nova repartição da riqueza, a realização da reforma agrária e o fim da marginalização do setor camponês. Foi esse movimento de massas que elegeu o padre Jean Bertrand Aristide para a presidência em 1990. Este movimento tão forte foi duramente golpeado através de dois golpes de estado, em 1991 e 1994, com mais de 20.000 soldados dos Estados Unidos e toda uma estratégia de divisão, fragmentação e corrupção do movimento social popular através dos projetos de desenvolvimento das ONGs e das agências humanitárias como a USAID. Assim que, frente a esse movimento popular que tinha reivindicações claramente anti-neoliberais, montou-se todo um projeto neoliberal e grande parte da classe dominante haitiana aderiu a esse projeto, que foi implantado aproveitando a grande repressão ao movimento social. Estima-se que cerca de quatro mil haitianos foram mortos nesse período e mais de 12 mil militantes sociais forçados a exilar-se do país.
Novo século, novas ocupações
O século XXI se inicia com uma nova eleição de Jean Bertrand Aristide para a presidência do Haiti. Diante de um governo conturbado, que tenta conjugar frágeis aspirações soberanas com os interesses neoliberais imperialistas, a população haitiana presencia o surgimento de grupos paramilitares que, patrocinados pela CIA, iniciam o processo de desestabilização do governo em meados de 2003, até que em 2004 – ano do bicentenário da independência haitiana – Aristide é novamente deposto do poder após uma nova ocupação militar estadunidense.
A invasão dos marines é seguida pela resolução do Conselho de Segurança da ONU que determina a criação de uma missão de estabilização do Haiti, já que o país é visto como uma ameaça para a segurança do hemisfério. Formada por soldados de 36 países, tendo o exército brasileiro à frente e contando com a presença massiva de contingentes latino-americanos, as tropas da Minustah desembarcam em solo haitiano em abril de 2004, sob a falsa retórica de uma cooperação Sul-Sul que escamoteia uma ocupação militar no continente americano em pleno século XXI. Seus objetivos se dividem em quatro pilares fundamentais: estabilizar o país; pacificar e desarmar os grupos guerrilheiros e rebeldes; promover eleições livres e probas e fomentar o desenvolvimento institucional e econômico do Haiti.
Nos primeiros anos de ocupação militar, a Minustah se confrontou de fato com grupos armados e sequestradores que se escondiam em bairros pobres e representavam uma ameaça para a sociedade. Esses grupos foram eliminados ou presos, tanto que hoje o Haiti possui uma média de apenas 15 homicídios para cada 10 mil habitantes, enquanto países mais desenvolvidos como o Brasil e a África do Sul ostentam, respectivamente, 57 e 250 homicídios por 10 mil habitantes. A Minustah cumpria assim um de seus papéis, estabilizar o país frente às ameaças dos “bandos”. Lamentavelmente, a tropas da ONU não se preocuparam em eliminar ou prender os chefes dos grupos paramilitares patrocinados pela CIA, muito menos em garantir eleições probas e o desenvolvimento econômico do Haiti.
Crise estrutural
A vulnerabilidade causada pela epidemia de cólera, pela passagem de furacões e pelo terremoto de 12 de Janeiro não se origina em catástrofes naturais ou numa suposta falta de segurança no Haiti. A população haitiana se encontra nesta situação de constante vulnerabilidade devido aos graves problemas estruturais que assolam o país.
O Haiti é hoje a nação mais pobre do continente americano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza, 39% analfabeta e com uma expectativa de vida de apenas 58,1 anos. Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), um em cada dois haitianos não tem acesso à água potável e apenas 19% da população têm acesso ao sistema de saneamento básico. Apesar de ser uma sociedade essencialmente rural, com 66% da população vivendo no campo, as famílias camponesas não tem acesso a terra ou créditos, o que faz com que hoje o Haiti importe 80% dos alimentos que consome.
No Haiti, a miséria já existia antes de qualquer terremoto, furacão ou cólera.
Ao não lidar com os problemas estruturais, atuando para amenizar as conseqüências das tragédias ao invés de buscar combater suas causas, a atuação das forças estrangeiras só reforça a instabilidade e vulnerabilidade do país. Entretanto, longe de configurar um erro de estratégia ou falta de conhecimento, essa parece ser uma atitude prenhe de intencionalidade. Não por coincidência, o Haiti é hoje o 4º maior importador de arroz dos Estados Unidos, zonas francas ‘maquiladoras’ se espalham na fronteira com a República Dominicana enriquecendo através da super-exploração da força do trabalho, um contingente de cerca de três milhões de haitianos e haitianas serve de mão-de-obra barata no exterior e o ex-presidente estadunidense Bill Clinton foi escolhido para gerir os $9,9 bilhões de dólares a serem destinados à Comissão Provisória para a Reconstrução do Haiti (CIRH).
Ao que parece, a miséria haitiana gera lucros e suas tragédias alimentam o desenvolvimento alheio.
Diante dessa conjuntura, a grande pergunta que se coloca a população latino-americana e aos governos dos países que mantém seus exércitos ocupando o território haitiano há mais de seis anos é: que interesses defende realmente a Minustah e o que tem feito para ajudar o Haiti a superar sua crise estrutural?
Para Gerald Mathurin, a resposta parece ser simples: “Os militares que vieram antes, e os que vêm agora, têm sempre a mesma missão, têm sempre o mesmo objetivo, que é aplicar o projeto do imperialismo”.
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Artigo publicado na Revista America Latina en Movimiento 461 http://alainet.org/publica/461.phtml
https://www.alainet.org/pt/active/43289
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