As etapas do sandinismo no poder

21/09/2011
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Há dois meses das eleições, analistas apontam debilidades e pontos fortes do governo Ortega

Quando a revolução nicaraguense triunfou, em 19 de julho 1979, não era o fim da guerra. Derrotada a Guarda nacional do ditador Somoza, os militantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) tiveram que lidar com o ascenso do conservadorismo nos Estados Unidos, representado pelo governo de Ronald Reagan, que pôs em prática, durante a década de 1980 o financiamento de uma massiva força contrarrevolucionária, os chamados "contras".

O saldo da defesada revolução foi alto para o pequeno país centro-americano: mais de 30 mil nicaraguenses mortos, 350 mil famílias camponesas desalojadas e um total de 9 bilhões de dólares em danos econômicos diretos.

Ao final dessas duas guerras e de duas vitórias ( a última representada pelos acordos de paz de 1987, que aos poucos desmobilizaram os dois exércitos - o dos contras e o da FSLN), uma derrota: Os sandinistas perderam as eleições de 1990 e entregam o poder à direita que permaneceria no governos nos próximos 16 anos.

Ao retornar ao governo, em 2007, a FSLN, comandada por Daniel Ortega, utilizou um discurso distinto da época revolucionária. “Nicarágua cristã, socialista e solidária” é o novo lema desta que o governo chamou de “segunda etapa da revolução”.

Um discurso de “reconciliação” permeou o mandato de quem não quer mais confrontos com os Estados Unidos. Foi acusado de ser submisso ao FMI e à empresas privadas estrangeiras, mas também ganhou o apoio popular quando tornou gratuito os serviços de saúde e educação e implementou programas sociais compensatórios que visam acabar com a fome.

O trauma da guerra

“Para falar da segunda etapa da revolução sandinista no governo temos que analisar o contexto da situação da América Latina e Caribe desde a revolução”, explica Aldo Díaz Lacayo, historiador e ex-embaixador do governo sandinista nos anos 1980. Lacayo acredita que o principal fator da perda eleitoral de 1990 foi a guerra. “Nosso discurso da campanha eleitoral era muito simples: vamos alcançar a paz. E uma vez que a alcançamos, a revolução vai se reorganizar e conseguir seus objetivos sociais e econômicos em paz”, recorda.

No entanto, um novo fator veio balançar a conjuntura eleitoral. Numa ofensiva dos Estados Unidos contra o Panamá, em 1989, forças do exército norte-americano cercaram a embaixada nicaraguense neste país. Imediatamente, militantes rodearam a embaixada estadunidense na Nicarágua, como resposta. “Da noite pro dia mudou o cenário e, nas eleições, a população votou não contra a FSLN e sim para que a guerra não sofrera uma nova escalada e para que a paz fosse uma realidade e não um discurso. Essa é a origem da derrota”, analisou Lacayo.

Mônica Baltodano, deputada federal pelo Movimento Resgate do Sandinismo e ex-comandante da guerrilha, faz outra leitura. Ela reconhece que o trauma da guerra na população contribuiu para a derrota mas, a origem do fracasso viria de antes. “Em vez de seguir trabalhando a consciência popular e o fortalecimento de um movimento que mantivesse os referentes ideológicos fundamentais da revolução, o governo foi indo cada vez mais para a direita, para 'ajustar-se aos tempos'. E esse ajuste incluiu abraçar o modelo politico que condenávamos”, critica. “Um modelo caudilhista baseado na divisão do poder entre líderes e não no poder em função de um projeto de transformação profunda da realidade”, conclui.

A volta ao poder

Desde que triunfou a última das revoluções socialistas na América Latina, sucederam 11 anos de Revolução Popular Sandinista (1979-1990); 16 anos de governos neoliberais (1990-2006) e quase 5 anos do retorno dos sandinistas à presidência. De 2007 pra cá, a FSLN teve que governar uma Nicarágua completamente diferente da que entregou para Violeta Chamorro, da União Nacional Opositora, nos anos 1990: foram três governos neoliberais que não só desmantelaram as conquistas da revolução como produziram um incremento brutal da marginalidade, pobreza, miséria e desatenção aos serviços públicos.

“Foi um caos. Esse caos ia se aprofundando, porque o controle da economia, ou seja, do governo, estava nos organismos financeiros internacionais e não no próprio governo. Chegamos ao poder em condições econômicas e sociais muito difíceis de sanar.”, lembrou Lacayo.

Segundo a análise do historiador, o que levou a frente a ganhar as eleições e facilitou a recuperação do país foi o ascenso de governos de esquerda na América Latina e o surgimento da Alba. “Esse entusiasmo por replantar a luta revolucionaria no continente é muito bem recebido na Nicarágua, porque significava o retorno da revolução ao governo. Por isso que triunfamos”, analisou.

Já Mônica Baltodano acredita que vitória se deu mais pela desarticulação da direita do que pela força da FSLN. Divididos entre Partido Liberal Constitucionalista (PLC) e Aliança Liberal Nacional (ALN), os partidos da direita diluíram seus votos, o que é arriscado num processo eleitoral de turno único. “A votação mais baixa que já teve a Frente foi a que obteve em 2006 (38% dos votos), em que saiu vitoriosa”, afirmou.

Queda da Pobreza

No início de seu mandato em 2007, Daniel Ortega e a Frente Sandinista não contavam com maioria no congresso e nem com uma população consciente e organizada como nos anos da revolução. Dessa forma, de acordo com o governo, não foi possível fazer mudanças estruturais no país que, naquela época, era o segundo mais pobre da América Latina. Mas, o ingresso na Alba, o acesso à recursos do Petrocaribe e alguns programas sociais na área de segurança alimentar e moradia, ajudaram a amenizar o problema da miséria e da desigualdade social.

A Pesquisa de Domicílios 2010, realizada pela Fundação Internacional para o Desenvolvimento Econômico Global (Fideg) apontou que a pobreza extrema na Nicarágua havia subido no país de 2001 a 2005, chegando à afetar 17% da população. Desde 2207, porém, está em queda, chegando a 9%. Diante desse fato, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) declarou que Nicarágua, junto com Guiana e Jamaica, é um dos três países da América Latina e Caribe que vai alcançar os Objetivos do Milênio antes de 2015.

Um dos programas sociais responsáveis pela diminuição da miséria é o Fome Zero – similar e com o mesmo nome do projeto brasileiro. O programa consiste na entrega de um “abono” que inclui uma vaca, uma porca, cinco galinhas e um galo, sementes, frutas e crédito parcial a fundo perdido. Priorizando mulheres chefes de família, o programa já beneficiou a mais de 59 mil delas.

Martha Flores, do Movimento Social Nicaraguense - Um Outro Mundo é Possível, chama atenção para o fato muitas pequenas propriedade que recebem os abonos produzem uma agricultura com o uso de agrotóxicos. No entanto, ela reconhece uma melhora na situação da segurança alimentar no país, principalmente através da criação dos postos da ENABAS (Empresa Nicaraguense de Alimentos Básicos). “Os postos funcionam como um pequeno mercado onde a população pode encontrar produtos básicos a um preço subsidiado. Isso num pais onde tínhamos um grave problema de insegurança alimentar é uma conquista”, destacou.

Outro avanço apontada por Flores é a gratuidade do serviço da saúde. “Resgatou-se o princípio da saúde como um direito humano. Dentro do plano de seguro médico público incluíram uma séria de exames que antes nem podíamos pensar em fazer”, lembra. De acordo com dados do governo, entre 2006 e 2010, o aumento de consultas médicas foi de 76%, de cirurgias 77% e de exames de laboratório 108%. “Se pode criticar muito o governo, mas há benefícios concretos que as pessoas estão sentindo no dia a dia”, concluiu Flores.

Favorito para ganhar as eleições em novembro próximo, Ortega deverá centrar a próxima gestão no desenvolvimento da economia baseado na agricultura, infraestrutura e energia. As empresas brasileiras Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez serão as responsáveis por construir a hidrelétrica de Tumarín e um porto de águas profundas em Monkey Point, o Caribe sul deste país, respectivamente. Juntos, os projetos investirão cerca de 1,5 bilhões de dólares no país.

A Nicarágua “cristã”

Criminalização do aborto foi um dos retrocessos do atual governo

Cristã é a primeira palavra do lema de uma campanha que não é mais vermelha e preta – cores símbolo da FSLN- e sim rosa e amarela. Os valores cristãos do perdão e da reconciliação, se materializaram na aliança de Ortega com o ex-presidente de direita Arnoldo Alemán e o arcebispo de Manágua Miguel Obando, antes inimigos. Resultado dessa “conversão religiosa” do governo teve impactos negativos na política.

O principal deles, aponta Monica Baltodano, foi a aprovação de uma lei que proíbe o aborto em qualquer circunstância, inclusive quando a vida da mãe corre perigo. “É um retrocesso. Havíamos conseguido no código penal a legalização do aborto terapêutico, quando a vida da mãe está em risco. Esse direito nos foi negado com base em argumentos dos mais conservadores”, afirmou Baltodano.

O bispo Obando foi nomeado presidente da Comissão de Reconciliação e União. Agora, as principais atividades festivas em 19 de julho, para comemorar o aniversário da revolução, incluem uma missa realizada por ele. Alemán, processado por lavagem de dinheiro e fraude, foi absolvido pela Corte Suprema em poder dos sandinistas e lidera a bancada liberal no Legislativo.

Publicado no Jornal Brasil de Fato, edição 446, de 15 a 21 de setembro

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