Vinte anos do Zapatismo em Chiapas 1984-2004
03/03/2004
- Opinión
Setembro 2003
"Há um tempo para pedir, outro para exigir e outro para exercer"
No dia 17 de novembro de 2003 completaram-se vinte anos da fundação
do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em algum lugar da
Selva Lacandona. No dia 1º de janeiro de 2004 cumpriram-se dez anos
de luta pública, de resistência, criatividade e paradoxos de um
movimento que, nessa data, chegou para ficar. É hora de comemorações
e de recontagem, de olhar para atrás, de fazer um balanço, falar de
acertos e erros, estratégias e surpresas. É hora, pois, de
reflexionar sobre essa caminhada.
Faz vinte anos que centenas de povos rebeldes, centenas de milhares
de indígenas, mantém-se na luta. Os primeiros dez anos foram de
clandestinidade, tecendo um trabalho político pessoa à pessoa,
família à família, comunidade à comunidade. Como foram possíveis
esses dez anos sem que ninguém fica-se sabendo. Como é que se
consegue guardar um segredo que inclui milhares e milhares de
indígenas rebeldes. Vinte anos depois, continua pendente um reconto
da quotidiana dose de heroísmo e determinação desses primeiros
povos, uma história que apenas pode ser imaginada se levarmos em
conta que tudo o que se seguiu, e o que falta, é possível pela
existência e resistência desse núcleo duro, esse grupo que completou
vinte e dez de fogo e de palavra.
O Subcomandante Insurgente Marcos, chefe militar e porta-voz do
movimento rebelde, faz um balanço duma década de luta e resistência
zapatista. Na primeira entrevista concedida desde a Marcha da Cor da
Terra, acede a responder às perguntas que a revista Rebeldia e o
jornal A jornada, no contexto desta edição, fizeram-lhe chegar às
montanhas do sudeste mexicano.
Marcos aceita a sugestão e não responde escrevendo. Fala diante dum
gravador e apenas, diante dum microfone, fala sem pausa. Estas, são
perguntas as quais responde, imaginamos, sem capuz e sem mais
testemunhas do que a chuva e os foguetes que de pronto ouvem-se à
distância.
O Sub lembra o início da guerra, fala desses doze primeiros dias,
dos combates iniciais e, mais adiante, refere-se pela primeira vez
numa entrevista, ao Subcomandante Insurgente Pedro e a sua morte em
combate na madrugada do 1º de janeiro de 1994.
1. Início e motivações da guerra, as lembranças, os combates
Hoje, nove anos e nove messes depois - estamos em setembro de 2003,
sempre há que insistir em remarcar a data porque depois mudam as
circunstâncias -, nós continuamos entendendo a guerra que se iniciou
o 1º de janeiro de 1994, e que ainda desenvolvemos, como uma guerra
que se desencadeou pela desesperação, mas que então a vimos como
necessária. Nove anos e nove messes depois, continuamos pensando que
foi necessária.
Pensamos que se não tivesse começado a guerra, se não fosse iniciado
o levantamento armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional,
muitas coisas em benefício dos povos indígenas e do povo do México,
inclusive do mundo, não teriam acontecido da forma em que
aconteceram.
Por um lado, a lembrança desses dias de ataques e combates, desses
inícios, é uma lembrança dolorosa. Lembramos, pois, aos nossos
companheiros caídos nesses primeiros dias, aos companheiros que
caíram em Ocosingo, em Las Margaritas, em Altamirano. Companheiros
com os quais compartimos muitos anos prévios ao 1º de janeiro,
preparando-nos e pensando como ia a ser o começo da guerra e o que
iria acontecer depois. Companheiros com os quais compartimos muitas
coisas, entre outros, lembro do companheiro Sub Pedro, quem então
era o chefe do Estado Maior e o segundo no mando do EZLN. Ele morre
em Las Margaritas nas primeiras horas do 1º de janeiro. Também
lembro do comandante Hugo ou senhor Ik, como lhe chamávamos, o qual
morre em Ocosingo, nos combates contra o exército federal nessa
localidade. Dos companheiros insurgentes de Materiais de Guerra,
lembramos de Álvaro e de Fredy, os quais também caíram combatendo em
Ocosingo... lembramos aos companheiros milicianos que caíram numa ou
noutra localidade.
Também está a lembrança da resposta brutal - sem nenhuma honra
militar - do exército federal, que não foi apenas combater nossas
tropas, nós estávamos ali para isso, senão que começou a liquidar
civis e dá-los como se fossem baixas nossas, atirando a esmo, em
todas direções, naqueles primeiros dias, sobretudo no que foi o
massacre de Ocosingo. Lembro, pois, essa falta de honra militar que
demonstrou o exército federal desde então, e que repetiria ao longo
destes dez anos de guerra intermitente que temos mantido contra
eles. Nós temo-nos defrontado (e essa é a lembrança que temos dos
federais) com essa falta de honra militar na hora de lutar e com as
sujas trapaças às quais apela para tentar levantar o seu decaído
prestígio.
Da nossa parte, lembramos os nossos combatentes, não apenas aos
caídos, também aos que continuam em pé de luta, com destaque para as
companheiras insurgentes, que em muitos casos, revelaram-se melhores
combatentes que os homens. Também está a atitude e firmeza dos
nossos companheiros comandantes, os membros do Comité Clandestino
Revolucionário Indígena - a grande maioria deles foi na frente nos
combates, junto com nós e nossas tropas, e provaram o que poucos,
hoje, mostram nas organizações: que o dirigente deve estar junto com
a sua gente, não ao margem dela, ou afastado ou atrás dela. Isso é o
que hoje lembramos.
Em resumo, a leitura que fazemos desse começo da guerra, nove anos e
nove messes depois, é a de que foi uma guerra desesperada mas
necessária - tanto - para os povos indígenas de Chiapas e do México
que até então permaneciam no esquecimento, no canto mais esquecido
da pátria, como nós dizíamos. E era a única maneira de que mudaram
as coisas, não apenas no sentido do modo em que as via o governo
federal, mas também a sociedade mexicana, inclusive a sociedade
internacional.
O início da guerra representa para nós a dor mas também a esperança.
Segundo a leitura que fazemos hoje isso foi o que marcou e permitiu
tudo o que tem acontecido depois. Estes mais de nove anos não teriam
sido possíveis no seu êxito sem essas primeiras horas do
levantamento armado.
Além da leitura interna, a leitura que fazemos, desse início da
guerra, também é algo que vai marcar até hoje a história pública do
EZLN. Isso porque vemos que, além dos combates entre o EZLN e o
Exército federal, há uma outra briga que não é propriamente
agressiva entre o EZLN e o que nós chamamos a sociedade civil. Desde
os primeiros minutos do começo do levantamento se produz esse
encontro e, de alguma maneira, começa a ser aventada uma das partes,
o exército federal, como algo inteiramente externo ao conflito.
Se são revisadas as fotos daquele 1º de janeiro de 1994, vê-se a
convivência, essa relação quase promíscua entre as forças zapatistas
e a sociedade civil. Hoje, o que eu tenho na minha memória visual, é
essa surpresa dos civis rodeando aos insurgentes, a surpresa de vê-
los e também a surpresa e o embaraço que nós tínhamos, nos olhares e
nas nossas faces, ao nos encontrar com essas pessoas. Não havia
camaradagem mas também não havia agressividade de nenhuma das duas
partes. Como se os dois estivéssemos seguros de que o outro não era
o inimigo.
Desde o começo, isso vai marcar o que será a relação entre o EZLN e
a sociedade civil ao longo de todos estes anos de encontros,
desencontros e reencontros. É importante assinalar, nesta leitura
que estamos tentando fazer que desde o início se produz esse
encontro, e desde o início o governo e o Exército começam a ficar
marginalizados. Estão, sim, como uma força agressiva, contra a qual
combate-se, mas que pouco e nada tem a ver com o que vai ser
construído - não no que vai ser destruído - ao longo destes quase
dez anos. Essa é a relação de surpresa, primeiro de embaraço: Ah,
estás cá!, de um e doutro lado, zapatistas e civis, a partir desse
1º de janeiro de 1994.
Isto vai ser importante - digo e repito - porque durante todos os
dias de luta, a atitude da sociedade civil em relação aos
insurgentes foi a de tentar saber quem eles são, como é que são, o
que pensam e o que querem. Tentar entender o que os tinha levado a
tomar essa decisão. Enquanto que a atitude do governo federal e do
exército federal era aniquilá-los, reprimi-los, destruí-los,
desaparece-los. E digamos que nós, após os primeiros combates nos
quais foram tomadas as cabeceiras, estávamos mais ocupados em
combater, em possibilitar o recuo das nossas tropas e em sobreviver.
Supõe-se que numa guerra os civis apareçam como refugiados ou como
vítimas, e neste caso não eram nem uma coisa nem a outra, porém,
claro, houve casos, nos quais ocorreu dessa maneira, naqueles dias
houve refugiados e deslocados. Mas na maioria dos casos ali andavam,
pelo menos nas cabeceiras que tomamos, nas localidades onde lutamos,
nas localidades pelas quais nós movimentamos, onde houve combates,
onde estivemos presentes. A maioria da população civil não fugia
diante da presença das nossas tropas.
Então, desde as primeiras horas desta guerra que já vai para dez
anos, dá-se este encontro y desde então, desloca-se o lugar que
sempre quiseram disputar o governo federal e suas tropas, o lugar
predominante. Eu acredito que tem sido determinante para muitas
coisas que foram aparecendo depois.
Tem uma outra coisa, a maneira dos zapatistas tomar as decisões, ou
seja construir as coisas desde abaixo, não decidi-las acima. Isso é
que dá para nós a força e a confiança de que estamos fazendo o
correcto na hora em que começamos a guerra. É uma das dúvidas, entre
muitas outras, que com frequência carrega um combatente: se é
correcto o que está fazendo. Nós tínhamos muitas dúvidas, se íamos
conseguir, se tínhamos a capacidade, qual ia a ser a resposta das
pessoas, qual ia ser a resposta do exército inimigo, qual ia ser a
resposta dos meios. Muitas dúvidas tínhamos, mas não tínhamos a
dúvida da legitimidade do que estávamos fazendo. Não estou me
referindo à decisão pessoal da cada combatente - que pesa e muito -
de estar determinado a lutar até a morte para conquistar algo. Não,
estou me referindo ao que significa agir com um respaldo coletivo,
neste caso de milhares de indígenas e milhares de combatentes.
2.Dez anos: o fogo e a palavra, consolidar a autonomia
Mais do que dividir em grandes etapas esse período, nós
diferenciamos três grandes eixos ao longo de estes quase dez anos. O
que nós chamamos de eixo de fogo, refere-se às ações, os
preparativos, os combates, as movimentações propriamente militares.
O eixo da palavra, refere-se a encontros, diálogos, comunicações,
onde a palavra ou o silêncio, isto é, a ausência de palavra. O
terceiro eixo vem a ser a coluna vertebral e refere-se ao processo
organizacional ou à maneira pela qual vai se desenvolvendo a
organização dos povos zapatistas. Esses três eixos, o eixo do fogo e
o eixo da palavra, articulados pelo eixo dos povos, do seu processo
de organização, marcam os dez anos de vida pública do EZLN. O eixo
do fogo e o eixo da palavra, aparecem com maior ou menor
intensidade, em períodos determinados também com maior ou menor
duração, e com maior ou menor incidência na vida do EZLN e o seu
entorno, ou na vida nacional ou no mundo. Mas os dois eixos sempre
têm a ver e estão determinados pela estrutura que vão adquirindo os
povos, que não somente sustentam o EZLN, senão que também, como
temos afirmado muitas vezes, são o caminho pelo qual anda o EZLN. O
ritmo do seu passo, o intervalo entre um passo e outra, a
velocidade, tem a ver, tanto no fogo como na palavra, com o processo
de organização dos povos. Em alguns casos é o fogo, quero dizer a
parte militar, a preparação dos combates, movimentações, manobras, o
combate propriamente dito, ações de avanço ou de recuo, os mais
importantes ou os que aparecem com mais evidência. Em outros casos a
palavra é predominante, ou os silêncios que se constróem ao redor da
palavra, neste caso para dizer calando, como nós falamos. Ao longo
destes quase dez anos marca-se um ou outro eixo, mas sempre tem a
ver com a maneira em que os povos estão se organizando.
Não é a mesma coisa como estão organizadas as bases de apoio do EZLN
para a guerra, que como se organizam para dialogar com o governo ou
com a sociedade civil, ou para resistir, ou para construir a
autonomia, ou para construir formas de governo, ou para se
relacionar com outros movimentos, ou com outras organizações, ou com
gente que não é movimento nem têm organização.
Neste caso, os povos, as bases de apoio zapatista, adoptam formas
que vão construindo-se, que não estão em nenhum livro nem em nenhum
manual, nem, claro, que nós lhes tenhamos dito. São formas de
organização que têm muito a ver com a sua experiência, e não estou
me referindo apenas à sua experiência ancestral e histórica que vêm
de tantos séculos de resistência, senão da experiência que
construíram já organizados como zapatistas.
Nesse sentido, 1994 está fundamentalmente marcado, ao meu modo de
ver, pelo eixo de fogo; não tão somente pelo início da guerra e os
combates ao longo de janeiro, senão também porque todo esse ano se
caracterizou pelas movimentações militares, tanto do governo como as
nossas. E a parte da palavra estava incipiente, mais como tenteando.
As grandes mobilizações militares são as de janeiro de 1994 e
dezembro desse mesmo ano, quando se dá a ruptura do cerco. Elas
implicam grandes mobilizações de milhares de combatentes.
Ao longo desse ano, se estão lembrados, quando há aparições públicas
do EZLN sempre se sublinha ou remarca-se o aspecto militar. Há
desfiles e deslocamentos militares para insistir em que somos um
exército.
Pelo lado da palavra se produzem encontros importantes, mas na
avaliação dos dez anos são vistos como esforços incipientes, em
comparação com o que vai acontecer depois.
Um exemplo, temos o diálogo de Catedral, que mais do que um diálogo
com o governo era um diálogo com a sociedade civil. É, pois, a
continuação desse encontro surpreendente que existe entre o EZLN e
os civis, do qual falava o dia 1º de janeiro de 1994, mas no decurso
do diálogo de Catedral ocorre de maneira mais aperfeiçoada, porque
mais do que dialogar com o governo, o EZLN dedicou-se a falar com as
pessoas, neste caso, através dos meios de comunicação. Realizaram-se
muitas entrevistas, houve encontros, etc., onde o EZLN tentava
dizer: isto é o que sou. Mas ainda continuava faltando a pergunta: e
você quem é, referindo-se, claro, à sociedade civil.
Na Convenção Nacional Democrática insiste-se ainda na parte do isto
é o que eu sou. O EZLN tinha-se se dado conta que ao governo não lhe
interessava acabar com o conflito e sim mantê-lo num nível que lhe
permitisse terminar os seis anos, porém que, no fim, não conseguiu
terminar bem devido às rupturas internas que provocaram o
assassinato de Colosio e depois o de Ruiz Massieu... Mas, bom, na
parte da palavra, isso foi o que também aconteceu, a CND.
Ao mesmo tempo em 1994 o EZLN começa a tentar conhecer e definir um
perfil do que é a classe política com a que também está-se
encontrando. Além do encontro com a sociedade civil, dão-se os
primeiros encontros com partidos políticos ou com líderes políticos,
ainda tenteando no que se tratava.
De qualquer maneira, mesmo com o diálogo, a CND e os encontros com a
classe política, vejo que o 94 está marcado pela linha de fogo.
O 1995 continua a linha de fogo, marcada pela traição do governo de
Zedillo ao diálogo que estava só se iniciando com ele. Dá-se a
ofensiva militar contra as posições do EZLN na Selva Lacandona,
produzem-se combates, caem companheiros, caem soldados inimigos e se
produz essa grande mobilização militar, a militarização que até hoje
não só mantém-se senão que tem aumentado ao longo destes anos.
Todo 1995 é isso, está marcado por isso. Inicia-se, pois, o diálogo
com Zedillo mas ainda marcado pela ameaça militar, neste caso do
governo federal, porque o ezln faz em agosto uma consulta prévia à
entrada mais no estilo em que vai ser o diálogo de San Andrés: a
primeira consulta nacional e internacional, onde pergunta-se sobre o
futuro do EZLN.
O EZLN está fazendo isso, a consulta, porque está pensando que se
for entra-lhe ao diálogo é porque vai entra-lhe a sério. Na consulta
boa parte das pessoas, um milhão duzentos mil, dizem que sim que há
que se converter em força política. Então o EZLN tem que entrar ao
diálogo com essa perspectiva, mas ainda está o problema da palavra
muito embaixo. No decurso de 1995 continua sendo predominante a
linha de fogo, mesmo com a consulta implicando uma aproximação mais
aperfeiçoada que a Convenção Nacional Democrática de 1994. Em 1995 o
EZLN recebe vários golpes.
Depois chegamos a 1996. O EZLN começa a construir a palavra de
maneira mais aperfeiçoada, como arma mas também como ponto de
encontro. Em 1996 são o Foro Nacional Indígena que depois vai-se
constituir em Congresso Nacional Indígena, é o Fórum da Reforma do
Estado, é o Encontro Continental e Intercontinental. Graças às
comunidades zapatistas, mas também a estes encontros, o EZLN começa
a perguntar quem você é e a obter respostas do lado da sociedade
civil. Começa a ser predominante o eixo da palavra.
Em 1997 o EZLN vai respondendo a esta nova maneira de se organizarem
as comunidades, que avançam cada vez mais, y lança de novo uma
iniciativa de diálogo. Esta vez já não coloca comissões senão um
grande contingente, que é a marcha dos 1111, que percorre grande
parte da República para chegar à cidade de México, para exigir o
cumprimento dos Acordos de San Andrés.
Desde essa data, o cumprimento dos Acordos de San Andrés, que é o
horizonte da guerra zapatista, converte-se num eixo muito importante
das mobilizações do EZLN. Porém, para tentar voltar atrás esse
avanço e diante das derrotas que está tendo o regime, são
reactivados os grupos paramilitares, adquirem mais e mais
beligerância e, finalmente, em dezembro de 1997, com Acteal, o ano
adquire forma definitiva pela linha de fogo. E essa ferida, essa
cicatriz, vai durar até hoje.
O 1998 é sobretudo linha de fogo. O EZLN e sobretudo as comunidades
ressentem uma ofensiva brutal da parte do governo, os ataques aos
municípios autónomos, escaramuças, combates com baixas dos dois
lados em várias regiões do movimento zapatista, combates de milhares
de bases de apoio contra colunas do exército federal para impedir
novos assentamentos militares. Enfim, tudo isso define que 1998
marque-se como linha de fogo.
Em 1999, o EZLN tenta, como sempre tentou, virar a mesa. Volta a
insistir na palavra porque está encontrando respostas do lado da
sociedade civil, e também da classe política, à pergunta de quem
você é. Já começa a se ver, a se definir, o ânimo da classe política
que vai ser definitivo em 2001 e 2002.
Em 1999 é lançada a Consulta Nacional pelos Direitos e a Cultura
Indígenas, e os povos zapatistas dão uma prova de força ao conseguir
enviar 2.500 homens e 2.500 mulheres para percorrer toda a
República. A Consulta Nacional representa um esforço organizacional
não somente do EZLN, que já levávamos organizados muitos anos, mas
também de muita gente que não têm organização e que se organiza não
só para a consulta, senão também para receber aos delegados,
transportá-los, preparar actividades de informação e para a consulta
propriamente dita. Toda essa mobilização dá ao EZLN, além dum apoio
fundamental para a lei sobre os Direitos e a Cultura Indígenas, uma
clara medida da relação que tem estado construindo com a sociedade
civil nesse tempo todo. Em Rebeldia deve ter alguns dados do esforço
de organização que significou essa consulta para a sociedade civil.
Para nós 1999 é uma resposta ao governo federal e à política
agressiva que tinha desenvolvido em 1998, é uma resposta aos poderes
da União sobre a importância da lei indígena, mas, sobretudo, é uma
resposta ao EZLN de um grande sector da sociedade que estava
esperando construir uma relação política com nós.
No ano de 2000, diante do período eleitoral, o EZLN recua e utiliza
outra vez o eixo da palavra, mas dessa vez com o silêncio. Acontecem
as eleições, a derrota do PRI, a subida de Fox e o EZLN mostra o
naipe. Depois de valorizar a Consulta Nacional e os encontros que
teve com vários sectores sociais no ano 2000, lança a Marcha da Cor
da Terra.
Na Marcha da Cor da Terra, o EZLN começa a tentar se aproximar mais
dessa sociedade que percebe a partir da Consulta de 1999, essa
sociedade que tem interesse em construir algo novo, que é também o
que os zapatistas querem. Y também o ezln está-se fazendo uma
pergunta fundamental sobre a classe política mexicana - se vem ao
caso ou não continuar construindo uma relação assim. Acontece a
marcha com todos os actos que não vou repetir cá.
O EZLN, depois que se produz a votação no Senado, no Congresso da
União, obtém uma resposta definitiva sobre a classe política
mexicana.
O 2002 dedica-se então à preparação do que vai ser essa
intercomunicação com a sociedade civil, e a construir, nos fatos, o
que tem demandado ao longo de tanto tempo.
No 2003, agora que anuncia-se a construção das Assembleias de Bom
Governo, avança-se na autonomia indígena e o EZLN já se apresenta
como uma alternativa não só na palavra, mas também na prática. Não
estou falando dum exemplo a seguir nem de guia para a ação, senão
como uma referência. O EZLN tem um perfil político prático para
oferecer na hora que dialoga com outros. Uma referência política e
prática, civil e pacífica, porque o referente que tínhamos era duma
organização armada, o de que havia que se organizar e levantar-se em
armas:
A criação das Assembleias de Bom Governo e os municípios autónomos
significam já uma outra alternativa, outra opção ou referente para a
sociedade.
Ao longo de todos esses anos, desde 1994 até 2003, sobretudo em 1996
e 1997, o EZLN começa a construir uma relação com o mundo, com
pessoas e movimentos em nível internacional, uma relação que tem os
seus altos e baixos mas que vai ser importante nesse processo de
construção duma referência alternativa, civil e pacífica. Uma
espécie de ensaio de um outro mundo possível que é o que está-se
tentando construir nas comunidades indígenas.
De uma maneira geral, é isso mais ou menos, o que posso assinalar
desses três eixos: o eixo do fogo e o da palavra, dependendo da
coluna vertebral que é o eixo da organização dos povos. E é a partir
daí que se constrói a relação com a sociedade civil, com suas
próprias características, e onde dá-se o processo ao qual eles nos
levaram, os políticos, em 2001, com a sua rejeição ao reconhecimento
dos direitos e da cultura indígenas.
3. Surpresas desses dez anos, acertos, encontros
Assim, em ordem cronológica, a primeira surpresa é que o mundo que
encontramos não tinha nada a ver com o que nós imaginávamos nas
montanhas. Daí o mais importante é nos ter dado conta que as
pessoas, em geral, tinham muito interesse em entender, em se
informar, em saber o que era tudo isto; diferente do que poderia se
esperar, de que as pessoas estivessem apáticas, que não lhes
importasse o que fosse.. Neste sentido, fomos muito afortunados ao
encontrarmos com esse México, com essa gente disposta a escutar e
ver o que era que estava se passando com os zapatistas. Essa foi uma
das grandes surpresas.
Outra das surpresas que temos tido é a juventude. Nós pensamos que
ia a estar totalmente céptica, receosa, cínica, pouco receptiva a
qualquer movimento, mais egoísta, mais fechada em si mesma. E não, é
uma juventude generosa, aberta, com vontade de aprender e vontade de
se entregar numa causa justa.
Mais uma surpresa é a grande participação das mulheres, do sector
feminino como se dirá depois, em cada uma das iniciativas e em todos
os níveis. Foi uma surpresa a decisão e a entrega dessas mulheres,
dessa irmãs como dizemos nós, tanto em nível nacional como
internacional.
Uma surpresa política foi o impacto que teve a palavra zapatista em
nível internacional e não me refiro apenas ao aspecto intelectual,
mas também ao impacto que tem tido em movimentos e organizações em
todo o mundo.
Outra das surpresas, há que reconhece-lo, é o grau de deterioro da
classe política mexicana, é tal que ousamos simplesmente dizer que
não tem mais remédio. Nós pensamos que existiam sectores com os
quais algo podia ser feito, mas já vimos que não. Isso, em grandes
linhas.
Se pudesse resumir tudo diria: a grande surpresa política é que se
tenha dado um ponto de encontro, ou uma via de comunicação, entre
este processo de organização dos povos e o que estava passando
abaixo em nível nacional e internacional. E a última grande surpresa
é a receptividade que existiu ao começo em todos os meios de
comunicação (porém que a maioria foi se fechando segundo passavam os
anos) para que se soubesse o que realmente acontecia nas comunidades
indígenas, não só de Chiapas como de todo México.
Eu penso que o acerto maior que temos tido é a disposição e a
capacidade de aprender, primeiro de aprender a lutar, de aprender a
reconhecer o inimigo, de aprender a reconhecer quem não é inimigo,
de aprender a falar, de aprender a escutar e aprender a caminhar
junto com outros, de aprender a respeitar e a admitir a diferença.
E, sobretudo, de aprender a nos ver a nós mesmos como somos e como
os outros nos vêm. Isso, penso, é o acerto maior dos zapatistas:
temos aprendido a aprender, mesmo que pareça um refrão pedagógico.
4. A autocrítica, o que não se voltaria a fazer
Se pudesse regressar o tempo, o que não voltaríamos a fazer é
permitir e... estimular... que se tenha superestimado a figura de
Marcos.
O que mais não voltaríamos a fazer. Penso, honestamente, que tudo o
que fizemos, bem ou mal, o fizemos pensando - depois de analisar -
que nesse momento essa decisão era a melhor. Se então tivéssemos
valorizado outras coisas que não enxergamos, talvez haveríamos
tomado outra decisão, mas nesse momento não podíamos ter feito outra
coisa. Fizemos o que pensamos que podíamos fazer. Umas vezes erramos
e noutras acertamos.
5. O aprendizado
Entre as muitas coisas que temos aprendido está a riqueza da
diversidade.
A grande vantagem de ter entrado em contacto com a sociedade civil é
ter entrado em contacto com muitos pensamentos e não um somente. E
isso nos têm permitido construir o pensamento de que, diante da
homogeneidade e da hegemonia, é preferível o respeito e a
convivência com os diferentes. Outra coisa que temos aprendido é a
valorizar e a respeitar, e a levar em conta, sempre, a nobreza da
maioria das pessoas, que se tem entregado em diferentes ocasiões
fundamentais para a vida do ezln e das comunidades indígenas sem
pedir nada em troca, e não só isso, também pondo muito da sua parte,
nalguns casos arriscando tudo para apoiar uma causa que consideram
justa.
O processo de encontro com ela, com a sociedade civil, o conversei
em trechos de Um Treze avos da Estela de Chiapas, mas que pode ser
resumido nisto: tem sido um encontro marcado pela nossa aprendizagem
e a aprendizagem da sociedade civil para nos reconhecer um ao outro,
e reconhecermos a nós mesmos. Ir construindo uma linguagem, uma
ponte de comunicação, uma maneira de nós entender.
6. A palavra como arma e o silêncio como estratégia
Damo-nos conta do valor da palavra, na realidade, até os diálogos de
Catedral ou um pouco depois. Aí começamos a aventar muitas palavras,
sobretudo através dos meios de comunicação, e logo vimos que
produzia bons resultados. Viemos descobrir o silêncio mais adiante,
na hora que descobrimos que o governo estava mais interessado em que
falássemos, sem importar que xingássemos às mães, mas que falássemos
alguma coisa porque pensava que assim sabia o que estávamos fazendo.
E quando estamos em silêncio não sabe o que estamos fazendo. Um
exército que tem usado a palavra de uma maneira tão fundamental como
arma, quando cala, lhes desperta preocupação. Não saberia precisar
quando mais o silêncio adquire peso... É definitivamente com
Zedillo, lá pelo 1996-1997, quando se construiu, mas onde teve mais
efeito foi em 1998, precisamente justo antes do segundo encontro com
a sociedade civil, que se realizou em San Cristóbal de las Casas.
7. O caminho da palavra
A Guerra, o Diálogo de San Cristóbal, a Convenção Nacional
Democrática, a primeira Consulta Nacional pela Paz, o diálogo de San
Andrés Sacamch´en dos Pobres, os Fóruns Especiais sobre Direitos e
Cultura Indígenas e sobre a Reforma do Estado, os Encontros
Continental e Intercontinental pela Humanidade e contra o
Neoliberalismo, a construção da Frente Zapatista de Libertação
Nacional, a participação no nascimento do Congresso Nacional
Indígena, a saída da Comandante Ramona à cidade de México, a marcha
das 1111 bases de apoio zapatistas, a Consulta Nacional e
Internacional pelo Reconhecimento dos Povos Indígenas, que incluiu o
percurso de 5 mil zapatistas por todo o território nacional, a
Marcha da Cor da Terra e, finalmente, a instalação das Assembleias
de Bom Governo e o nascimento dos Caracóis, entre muitos outros
eventos, chamados, saudações e convocatórias.
Mesmo faltando algumas que não tiveram eco ou foram de menor
repercussão, trata-se de iniciativas públicas, que têm como coluna
vertebral ou são construídas com base no processo de organização dos
povos zapatistas, no desenvolvimento da sua organização. Estamos
falando duma organização que está de tal maneira fusionada com o seu
povo, com a sua base de apoio, que dificilmente pode tirar uma
iniciativa que seja distanciada, que não implique ou não tenha
relação com essa base social. Então, digamos, nessa linha da
palavra, nessa linha de fogo, o processo de construção e de avanço
das formas de se organizarem as comunidades zapatistas, tem muito a
ver com o reconhecimento do outro, neste caso da sociedade civil.
Então, uma boa parte das iniciativas nomeadas, são as tentativas,
terminadas ou não, com êxito ou sem êxito, com as quais as
comunidades do ezln tentam construir a comunicação e o diálogo de
ida e volta com uns e com outros.
Na construção dessa intercomunicação, nesse saber como é o outro e
mostrarmos como nós somos., ao mesmo tempo, o EZLN - junto com as
comunidades - está construindo a legitimidade do seu movimento,
explicando as suas causas, as condições que o originaram, suas
formas de organização, e convidando a cada um não a que nos siga
senão para que siga o seu próprio caminho, que, como dizem, se estão
de acordo dois (ou vários) que vão ser o que sejam.
Às vezes a intercomunicação com a sociedade se produz entre
sectores, dada a raiz indígena do ezln, muito acentuada com os povos
indígenas. Também, produto do impacto que teve o ezln e a
repercussão e apoio internacional que recebeu, é posto especial
acento à intercomunicação com pessoas e movimentos em nível
internacional. Mais em geral, com a sociedade civil - assim sem
definir uma classe ou um sector social específico. Sempre dando-lhe
preferência à intercomunicação com indígenas, com as mulheres e com
os jovens. Até então, a estratégia, até onde pode ser dito, é
construir a legitimidade de um movimento, conhecer o outro, conhecer
o seu médio, conhecer a situação em nível nacional e internacional.
8. Balanço do diálogo de San Cristóbal de las Casas e Carlos Salinas
de Gortari
Carlos Salinas de Gortari é um ladrão cínico, é o que o define então
e hoje. O primeiro diálogo com o seu governo em San Cristóbal, nos
serviu como meio para olhar para outro lado. Nesse momento começou a
estratégia do EZLN de virar a mesa, quer dizer, terminar com o
esquema de janelinha nos diálogos governamentais e aproveitar esses
espaços para dialogar com os outros, com as pessoas, com a sociedade
civil como nós falamos.
No caso do diálogo da Catedral em San Cristóbal de las Casas, como
não tínhamos a maneira e nós não imaginávamos como íamos fazer para
dialogar com a sociedade civil, então o diálogo se produziu
sobretudo com os meios de comunicação, esperando que as pessoas, a
sociedade civil, fica-se sabendo através deles, do que queríamos
dizer: isto sou, isto é o que quero e isto é o que fui, para dizer
isso serviu o diálogo de Catedral.
Foi um diálogo que serviu-nos bastante; foi muito desgaste porque
foi muito intenso. Muito trabalho em poucos dias e à distância
pensamos que o final foi bom, porque como resultado desse diálogo
mais gente nos conheceu, mais gente ficou bem esclarecida. Essas
eram as nossas intenções e os nossos propósitos e foi o ponto de
partida para que o ezln construísse a legitimidade que tem hoje.
9. Diálogos de San Andrés e Ernesto Zedillo Ponce de León
Zedillo é um criminoso que, fora isso, é economista ou pretende sê-
lo. O balanço do diálogo de San Andrés, com o seu governo, é muito
positivo para nós, porque permitiu estruturar melhor o que
tentávamos em San Cristóbal. Conseguimos que na mesa se sentaram
todos os que chegamos a convidar e representou, nesse sentido, sem
levar em conta ainda os acordos, uma experiência que ainda não tem
sido valorizada nem no México nem no mundo. Uma experiência de
diálogo, de encontro duma força que não pretende a exclusividade
numa mesa na qual está sendo respondida a sua demanda, senão que
convida todos. Isto já se tem escrito nalguns lugares.
O principal aporte de San Andrés é a maneira em que se constrói o
diálogo entre o governo e o EZLN. Mas, alem disso, da parte do EZLN
abre-se a porta para outros lados, inclusive para organizações e
colocações muito críticas ou até rivais do EZLN.
No que refere-se aos acordos alcançados sobre Direitos e Cultura
Indígenas, significavam a concretização do ponto fundamental que o
levantamento de janeiro de 1994 introduziu na agenda nacional, isto
é, a situação dos povos indígenas do México. Significaram a
possibilidade de incorporar não somente as experiências dos
zapatistas, senão também de povos de todas partes do México, e
sintetizá-las na demanda do reconhecimento constitucional dos seus
direitos. Precisamente pela maneira em que se construiu esse
processo de diálogo, por como haviam-se construído os resultados, o
cumprimento dos Acordos de San Andrés significava nem mais nem menos
do que a saída do ezln à vida pública. Por tudo isso, como se vê
depois, a classe política aliou-se para impedir o reconhecimento dos
povos indígenas, dos seus direitos, e para impedir o trabalho do
EZLN na arena civil e política.
10. Vicente Fox, o fracasso da classe política
Em relação a Vicente Fox: sendo sintético diria apenas que o
processo de negociação foi um fracasso por toda a classe política,
não só por Vicente Fox, senão por todos os poderes da nação, por
todos os partidos políticos, por toda a classe política, esse
processo fracassou. Se tivesse triunfado não somente teria sido
exemplar para México, senão para o mundo. Teria marcado uma ruptura
e um precedente para orientar processos de diálogo e negociação no
mundo inteiro. Mas, em lugar disso eles preferiram fechar-se no seu
quarto para contagem do dinheiro que desfrutam, em vez de resolver o
problema e marcar um precedente para conflitos internacionais.
11.O EZLN e a luta indígena
Há que se levar em conta que alguns sectores têm dito que o EZLN
pega a luta indígena depois do levantamento, já avançado o
movimento. Segundo esta versão, de maneira oportunista, diz por
exemplo a Assembleia Nacional Indígena Plural pela Autonomia
(ANIPA), quando o EZLN se percebe de que o tema indígena está na
moda, começa a rumar o seu discurso para esse ramo. A acusação é
ridícula, como tudo o que faz ANIPA. Se a gente leva em conta o acto
fundamental do 1º de janeiro de 1994, no discurso da Primeira
Declaração da Selva Lacandona é explicado quem somos, e se diz:
"somos produto de 500 anos de lutas e etc.", e não existe nenhum
grupo social que possa dizer isso no México mais do que o indígena:
nem operários, nem camponeses, nem intelectuais podem dizer isso de
estar 500 anos...
A outra razão que há que levar em conta é que num exército que se
apresenta como o EZLN, onde há dois ou três mestiços e milhares de
indígenas, não acredito que seja necessário dizer que é importante a
questão indígena. Depois, quando o EZLN abre à imprensa as suas
fronteiras, para chamá-las de alguma maneira, permite-se o acesso da
imprensa às comunidades indígenas e falam com as pessoas, tudo isto
no momento em que estão desenvolvendo os combates. Isto é muito mais
eloquente que qualquer declaração dessas que fazem os dirigentes da
ANIPA e os seus assessores.
Somente os que disputam-se o osso de representar aos indígenas pelo
simples interesse económico ou quota de poder, os que chamam-se os
indígenas profissionais, os que vivem de aparentar ou fingir que são
indígenas, podem disputar-lhe isto ao EZLN. Sobretudo levando em
conta que o EZLN jamais se tem apresentado como o representante, o
líder ou o condutor de todos os povos indígenas do México. O EZLN
sempre tem afirmado que somente fala pelos povos indígenas que estão
organizados dentro do EZLN, de fato, no sudeste mexicano.
Bom, além do mais, esse assinalamento crítico ou calúnia que circula
nalguns sectores, sempre se faz pelas nossas costas, nunca na nossa
frente, porque sabem que não o podem defender.
Seguindo a história, nossa história, quando estão sendo discutidas
as leis revolucionárias em 1993, no que já estava-se formando com o
nome de Comité Clandestino Revolucionário Indígena, isto é, os
chefes dos vários povos indígenas - tzeltal, tzotzil, tojolabal,
chol, zoque e mam -, discutiu-se se seriam destacadas algumas
demandas indígenas do EZLN no momento do levantamento, e a parte que
argumentou melhor e que ganhou foi a que dizia que tinha que ser
dado um carácter nacional, de tal maneira que não se identificara o
movimento com aspirações regionais ou "étnicas", porque se dizia que
o perigo é que a nossa guerra fosse vista como uma guerra de
indígenas contra mestiços, e que era um perigo que tinha que ser
evitado. Parece-me que a decisão foi acertada, que a Primeira
Declaração da Selva Lacandona é contundente e é clara, que a
definição mais clara da questão indígena segundo foi avançando o
movimento já depois de se fazer público, já depois do início da
guerra, foi também acertada e foi modesta. Em nenhum momento se
pretendeu encabeçar nem falar em nome de todos os povos indígenas do
México. Então não sei porque colocam isso - se por si mesmo lhes dão
o osso, de todas maneiras acomodam-se.
Hoje, o ezln já de maneira pública não se apresenta nem se concebe a
si mesmo como o divisor de águas da luta indígena. Nós nos
apresentamos, como afirma a Primeira Declaração, como parte dum
processo de luta que vem de muitos anos e que está em muitos
lugares. No caso do México, a luta indígena não começa em 1994 nem
começa em Chiapas, existem antes de janeiro de 1994 muitas lutas de
resistência, de experiências valiosas em muitas partes do México,
com outros povos indígenas em diferentes regiões do pais. E o ezln
sempre o tem dito.
A mesa de San Andrés, a Mesa Um que refere-se a Direitos e Cultura
Indígenas não representou ao EZLN. Se tivéssemos pensado que nós
éramos os dirigentes do movimento indígena nacional, teríamos
entrado somente nós. Convidamos às organizações, grupos,
intelectuais, todos os que têm trabalhado e que sabem quais são as
demandas dos povos indígenas, que são diferenciadas mas que se
agrupam de maneira geral nisto que se tem definido como autonomia.
Isto era importante remarcá-lo desde o começo porque no início do
movimento, nos primeiros messes, a classe política e muitos meios de
comunicação afirmam que o problema principal, que o fundamento da
questão indígena no México, é um problema de assistencialismo. Isto
é, os indígenas são pobres e há que lhes dar esmola, neste caso,
mais esmola, mais lástima.
Marcos continua falando para o gravador. De pronto começam-se a
escutar, ao longe, trovoadas de foguetes festivos. O subcomandante
explica diante do microfone: "Isso que está troando agora é que
estão dando O Grito as Assembleias de Bom Governo. É a madrugada do
16 de setembro, estamos comemorando a Independência do México. Bom,
eu não porque estou num canto, mas lá está a Junta de Bom Governo"
O sub tenta continuar a sua gravação mas o ruído dos foguetes volta
a interromper. "Continua os foguetes, mas é pela comemoração da
independência do México da Espanha, mas já...", desculpa-se.
Bom, num começo se coloca o problema indígena como um problema de
pobreza material e não como o tinham colocado não só o EZLN, senão,
muito antes, outros povos e organizações indígenas no resto do país,
os quais o definiram como algo mais complexo que implicava questões
culturais, de autogoverno, de autonomia e não simplesmente a falta
de uma esmola mais substanciosa. No começo boa parte da opinião
pública nacional e internacional vê o problema como de "coitados
indígenas, há que ajudá-los um pouco, para que tenham boa moradia e
para se eduquem", pensando que a educação é a maneira pela qual o
indígena deixa de ser indígena, apreende espanhol, esquece a sua
língua, se mestiça ou se ladiniza, como antes se dizia, e isso
significa que já melhorou, o momento em que deixou de ser indígena.
Então, vamos dizer, essa é uma primeira etapa da luta indígena. É
sabido que no México e no mundo as condições de vida dos indígenas
são um desastre, são pré-históricas. E compara-se a sua situação com
o projecto de Salinas de Gortari, um projeto de ingresso ao primeiro
mundo, o de um pais capaz de lhe dar fôlego à globalização. Mas, é
evidente, o problema indígena não estava sozinho nessa comparação.
Na segunda etapa, que é próxima dos diálogos de San Andrés, podem-se
agrupar todas estas experiências e demandas que existem no momento
em que o ezln renuncia explicitamente - e o cumpre - ao papel de
vanguarda ou de encabeçar esse movimento indígena muito rico e muito
diversificado. As pessoas então se dão conta que o problema indígena
não é somente um problema económico, é também cultural, político e
social. E começam a serem colocadas as experiências que existem em
outros lugares, começam a dar-se a conhecer e articular-se no que
são os Acordos de San Andrés, onde já são incluídas demandas de
autonomia, de autogoverno, culturais. Isto é o que vai ser
articulado a seguir nos municípios autónomos zapatistas e nas
Assembleias de Bom Governo, não só como produto da experiência
zapatista senão que, agora, recolhendo tudo o que tínhamos aprendido
do nosso contacto com o movimento indígena nacional, e nalguns casos
com o movimento internacional.
Nesta segunda etapa, o movimento indígena constrói no México, junto
com o EZLN - não dirigido por ele -, essa espécie de ponte ou de
causa comum que unifica a todos, que seriam os Acordos de San
Andrés, o reconhecimento constitucional dos povos indígenas para
governar e se governar e dizer um monte de coisas. Porque no momento
em que se colocam as coisas somente em nível assistencialista, é
onde o pri, o pan e o prd, vêm uma brecha: bom - dizem - se trata-se
de dar mais dinheiro tudo bem, nós quedamo-nos com uma parte e lhes
damos outra, assim compramos votos, etc. Mas no momento em que se
colocam as demandas dos povos indígenas sobre a organização política
e formas de governo, os partidos políticos não estão de acordo. Como
o provaram no Congresso da União e hoje nas suas campanhas.
Então, pois, na segunda etapa começa-se a construir um consenso
sobre as demandas indígenas. Na terceira etapa, que vai da
assinatura dos Acordos de San Andrés até a Marcha da Cor da Terra,
começam a se generalizar estas demandas, a difundir-se ao interior
do movimento indígena nacional e também para o exterior, à sociedade
civil, aos meios de comunicação, através de outras organizações
sociais. Essa terceira etapa termina quando o Congresso da União
legisla contra esses direitos com o apoio do Executivo, e depois
essa decisão é avalizada pela Suprema Corte de Justiça da Nação.
Nesse momento termina essa etapa e começa a etapa na qual estamos.
Em resumo: na primeira etapa se coloca a necessidade de alguns
direitos; noutra etapa demanda-se o cumprimento desses direitos e na
última etapa são exercidos esses direitos, é nessa que estamos hoje.
12. A classe política
O EZLN sai à luz pública e, deslumbrado por essa saída, começa a
tentear e a reconhecer o terreno de quem é quem realmente. Não só
respeito à classe política, mas também respeito à classe política, o
ezln estava aprendendo.
Uma organização que dá tanto valor à palavra, da por certo que do
outro lado ocorre a mesma coisa e tardamos um tempo para entender
que não, que precisamente para a classe política a palavra não tem
absolutamente nenhum valor. Mas até nós aprender isso passaram-se
várias luas, como diz um compa.
Então, aí nós fomos tenteando, fomos falando com vários sectores e o
primeiro que aprendemos deste período foi que para o político a
palavra não tem nenhum valor. O segundo que aprendemos é que não
existem princípios, já não digamos morais, não existe nenhum
princípio político que mantenham. Um dia dizem uma coisa e depois
outra. Inclusive vêm com maus olhos quem faz o contrário. Refiro-me
em geral a toda a classe política sem importar a qual partido
político pertença. A diferença entre uns e outros pode ser que
existem alguns honestos, isto é, que não roubam. Não me refiro a
serem consequentes, que seriam os menos. O que os faz políticos,
esse desprezo pela palavra comprometida, essa falta de princípios e
de horizonte político é em geral para todos, não faria nenhuma
distinção. São a mesma coisa enquanto a que não existem princípios
nem têm moral. Podem ser um dia de direita se por aí vai o ´rating´
ou ser de esquerda se mudou o ´rating´, ou podem ser de centro. Por
isso a procura do centro, porque assim é mais fácil deslocar-se de
um extremo ao outro. Porém que existem partidos que fazem isso com
grande versatilidade.
Tudo isso o fomos aprendendo pouco a pouco. Todavia com a amargura
de saber o que estávamos enfrentando, tentamos com a Marcha da Cor
da Terra de obrigá-los de alguma maneira a que tomaram juízo ou que
se perceberam, já não enfrentados com o ezln senão com todos os
povos indígenas e com uma mobilização nacional e internacional como
foi a Marcha da Cor da Terra. Mesmo assim se comportaram como
políticos.
O principal aprendizado nesta década é que com a classe política
mexicana não há o que se fazer, definitivamente, já nem se rir,
pois.
13. As mudanças entre o México de 1994 e o de hoje
Existe uma diferença fundamental entre o México de hoje, 2003, e o
de 1994. Já houve o início de uma guerra e começaram a acontecer
coisas a partir de janeiro de 1994, coisas que não tinham acontecido
em muito tempo na história do México moderno: o assassinato do
candidato presidencial do partido no poder, o assassinato do
secretário do partido que está no poder, os ajustes internos
disfarçados de litígios judiciais e de acusações, a derrota do PRI
após tantos anos. Tudo isso dentro da classe política.
Por outro lado, ao mesmo tempo, as pessoas também enfrentam um
processo. Hoje as pessoas são mais críticas, estão mais dispostas do
que anos atrás, a participar e a mobilizar-se.
Mas, graças ao trabalho corrosivo da classe política, hoje as
pessoas são também mais cépticas, mas esse cepticismo não é como
antigamente, em que diziam "sempre ganha o PRI". Hoje existe algo de
rancor e de coragem na maioria das pessoas contra a classe política.
E o que está acontecendo é que os meios de comunicação (a maioria
deles) está abraçando à classe política, sem perceber que o voo é de
queda não de elevação. Sem perceber que o descrédito, a falta de
credibilidade, de interesse, e o rancor que está acumulando a classe
política, o estão acumulando também os meios de comunicação que,
entusiasmados na sua nova tarefa de Ministério Público, esquecem que
quem estão levando do braço é alguém ilegítimo. A legalidade não tem
nenhuma sustentação se lhe faltar legitimidade.
A mudança fundamental a temos visto nas pessoas. Enquanto ao sistema
político, a alternância é uma mudança mas não significa de nenhuma
maneira democracia, e as últimas eleições o provaram porque o
cidadão esteve ausente. O modelo económico que o PRI tinha em 1994
não somente continua, senão que se tem aprofundado. Aí é que está o
ataque aos fundamentos da soberania nacional. No social acelera-se o
processo de desagregação, precisamente com políticas económicas que
destruem o tecido social. Aí está o cinismo da classe política que
não tem nenhuma alternativa real para a maioria da gente.
Em resumo, tanto no político quanto no económico e social, México
está numa crise mais profunda que a que tinha em 1994.
14. O mundo entre 1994 e 2003
O mundo que encontramos em janeiro de 1994 sim já tínhamos pensado
ou adivinhado como ia ser. Já se tinha dado a queda do campo
socialista e a luta armada na América Latina não era muito popular,
nem se diga em outras partes do mundo. Isso já o esperávamos. Mas o
avanço que tinha tido o neoliberalismo e a globalização em todo o
mundo resultou uma surpresa, porque então detectamos não somente que
havia avançado o processo de destruição e reconstrução que temos
mencionado em alguns dos textos, senão que também havia avançado o
nascimento e a manutenção de formas de resistência e de luta em todo
o mundo. As internacionais socialistas ou comunistas, ou essas redes
internacionais mútuas para se opor ao capitalismo, tinham
desaparecido, mas haviam surgido focos de resistência em vários
lugares e estavam-se multiplicando. A isso deve-se que o
levantamento tenha tido receptividade numa parte importante da
comunidade internacional, em gente organizada ou com vontade de se
organizar. E refiro-me a algo além do sentimento de lástima ou de
comoção, legítima, certamente, de emoção diante do que significava o
levantamento do EZLN e, através dele, poder conhecer as condições
indignas nas que viviam os povos indígenas antes desse 1º de janeiro
de 1994. Isso foi para muita gente; para outros, além disso,
significou uma escolha política séria.
Esse mundo que encontramos em 1994, se bem que o imaginávamos, não
alcançávamos a entendê-lo, e por isso não alcançamos a entender a
receptividade que teve em muitos grupos, sobretudo em grupos de
jovens de todas as tendências e concepções políticas. Não
alcançávamos a entender por que o movimento zapatista provocou esta
simpatia e que se criaram comités de solidariedade praticamente nos
cinco continentes.
O mundo que existe hoje, dez anos depois, está mais polarizado. É o
que nós previmos, que a globalização não estava produzindo a aldeia
global senão um arquipélago mundial que está se agudizando, e não
somente enquanto aos interesses económicos, políticos e sociais de
esta grande sociedade, do poder em geral, como nós dizemos, de este
reparto, conquista e destruição do mundo, senão também enquanto no
que refere-se à resistência, à rebeldia que está crescendo de
maneira autónoma, independente, não como linha de consequência, não
como uma resistência que pode ser levada a todas partes do mundo,
senão que está adquirindo a sua maneira em cada local.
15. O movimento antiglobalização. Não fomos os primeiros
O movimento antiglobalização ou, como hoje se diz, alterglobalização
- porque não se trata de opor-se a que o mundo seja mundo, senão de
criar um outro mundo, como se diz por ai - não pensamos que seja um
movimento linear, com antecedentes e consequentes, nem que tenha que
ver com situações geográficas e de calendário, de datas, de dizer
que primeiro foi Chiapas, depois Seattle e depois Génova e hoje
Cancún. Não é que um preceda ao outro e o herde.
Nós concebemos nosso movimento, e o declaramos em 1994 para meios
internacionais, como um sintoma de algo que estava acontecendo ou
que estava para acontecer. Utilizamos então a metáfora do iceberg,
somos, dissemos, a ponta do iceberg que está assomando e daqui a
pouco vão assomar pontas por outros lados, de algo que está embaixo,
que está-se gerando e que está a ponto de explodir, dissemos então.
Nesse sentido, Chiapas não precede Seattle enquanto que o anuncie ou
Seattle seja a continuação. Seattle é uma outra manifestação dessa
rebeldia mundial que se está gerando fora dos partidos políticos,
fora dos canais tradicionais do trabalho político. E assim cada uma
das manifestações, e não me refiro às que seguiram à Organização
Mundial do Comércio e que têm-se convertido no seu pesadelo mais
quotidiana, senão a outros tipos de manifestações ou mobilizações ou
movimentos mais duradouros contra dessa globalização da morte e da
destruição.
Somos mais modestos enquanto ao nosso lugar. Somos um sintoma y
pensamos que nosso dever é nos manter o mais possível como apoio e
referente, mas não como um modelo para ser seguido. Por isso nunca
temos disputado, nem o faremos, dizer que o começo foi Chiapas e os
Encontros Continental e Intercontinental. A rebeldia que existe em
Chiapas se chama zapatista, mas em Seattle se chama de uma outra
maneira, na União Europeia de uma forma e na Ásia de outra, em
Oceânia, de outra. Inclusive dentro do México, em outras partes a
rebeldia se chama de outra maneira.
Nós vemos muito positivamente esse movimento alterglobalizador, no
sentido que não repete o modelo vertical de tomada de decisões, de
cima para abaixo, e isto lhe ajuda para que não tenha um comando
central, órgãos de direção ou algo assim. E que o movimento tenha
sabido respeitar as diferentes maneiras que manifestam-se no seu
interior, os pensamentos, as correntes, os modos, os interesses e a
forma em que são tomadas as suas decisões.
Pelo pouco que sei de Cancún até hoje, pelo que aparece na imprensa,
particularmente no jornal A Jornada, vê-se que esta dinâmica se
mantém e que continua sendo um movimento plural, não muito numeroso,
mas entende-se porque se deslocam de todas partes do mundo. Não é a
mesma coisa se mobilizar cá, em Chiapas, em solidariedade a alguém
que está muito próximo, do que mobilizar-se por alguém que está na
Coreia do Sul, para falar do exemplo que hoje está mais cadente. Mas
continua existindo esta pluralidade de interesses, esta diversidade
e esta riqueza, e também essas formas de luta e de se manifestar.
Neste sentido vemos que o movimento antiglobalização ou
alterglobalização continua sendo rico em experiências, ainda tem
muito que aportar e pensamos que vai dar muito, sempre e quando não
caia na tentação das estruturas e das passarelas. Quer dizer, o
risco que sempre existe é de que um movimento se converta numa
passarela de personalidades, sem que essas personalidade tenham
apoio de mobilizações nos seus locais.
Nós pensamos que esse movimento está-se traduzindo não somente na
crítica ao modelo que, neste caso, representa a OMC, senão que, em
muitos aspectos, estão sendo construídas alternativas não no papel,
senão em formas de organização social em diversos lugares, onde pode
se dizer que existem embriões desse outro mundo possível.
Afirma-se que diversos movimentos tanto do México quanto de outras
partes do mundo, têm visto no zapatismo um exemplo de luta e,
inclusive, de que alguns têm retomado seus princípios para a
construção das suas próprias resistências.
Nós lhes dizemos: aos que seguem o exemplo para não seguí-lo.
Pensamos que cada quem tem que construir a sua própria experiência e
não repetir modelos. Nesse sentido, o que lhes oferece o zapatismo é
um espelho, mas um espelho não é você, em todo caso te ajuda apenas
para ver como te vês, para te penteares desta maneira, para te
arrumar. Então, lhes dizemos que vejam em nossos erros e acertos, se
é que existem, as coisas que lhes possam servir para construir os
seus próprios processos, mas não se trata de exportar o zapatismo ou
de importá-lo. Pensamos que as pessoas têm a coragem suficiente e a
sabedoria para construir o seu próprio processo e o seu próprio
movimento, porque têm a sua própria história. Isso não somente há
que saudá-lo, senão que há que propiciá-lo.
16. Os desafios, os erros, as escolhas; o que continua?
Ou seja que querem o programa de acção... Mhhhm... Primeiro tem que
ser esclarecido que não todas as convocatórias nem iniciativas
zapatistas tiveram resposta significativa da sociedade civil
nacional e internacional. Nós pensamos que quando isto tem
acontecido a culpa não foi das pessoas, senão de erros, neste caso
meus, porque é o meu trabalho, porque cá no EZLN os erros conjugam-
se em primeira pessoa do singular e os acertos na terceira pessoa do
plural. Por nomear duas dessas convocatórias zapatistas que não
tiveram resposta significativa, estão, por uma parte, a de "Uma
oportunidade à palavra", referente à problemática do Pais Vasco, que
era também com o que ia ser aberta a incursão do ezln na Europa; e a
outra refere-se ao momento em que difundia-se nos meios a guerra
dos Estados Unidos contra o Iraque. Nesse contexto nós fizemos um
chamado para assinar um manifesto que elaborou um grupo de
intelectuais. Chamamos às pessoas para organizar mesas, discussões,
mas não teve eco. Nessas duas convocatórias não houve resposta
significativa, pelo menos nessas duas, mas pode ter mais por ai.
Isto para dizer que não tenho acertado a tudo, porque os erros são
na primeira pessoa do singular. Mas na realidade este apartado está
interrogando sobre o que continua, e o objectivo do ezln hoje não é
outro que consolidar esse exercer os direitos das comunidades,
porque, como explicava no começo, o eixo fundamental ou a coluna
vertebral destes dois braços ou linhas de ação, a do fogo e a da
palavra, é o eixo da organização política e o desenvolvimento dessa
organização política, social e cultural que existe nas comunidades.
E hoje trata-se das Assembleias de Bom Governo e os municípios
autónomos. Ai existe um pacote.
Como se queira a aposta está definida com clareza nos discursos do
Comando o dia 9 de agosto, o dia em que morrem os Águas-quentes e
nascem os Caracóis. Existem apostas no internacional. Existe uma
aposta muito clara no nacional, que tenta generalizar estas formas
de autogoverno ou de autogestão (que cá são possíveis de uma
determinada maneira) em outros locais.
Do governo e da classe política não vale a pena ocupar-se muito,
tendo em vista que tampouco ocupam-se da gente. Então não há que se
desvelar muito nesse aspecto.
17. Os povos zapatistas, a resistência
Em grandes linhas, isso que seria a coluna vertebral do movimento
zapatista, o que refere-se ao processo de organização dos povos,
poderia ser agrupado desta maneira:
Temos que nos remontar ao momento em que os povos organizam-se numa
organização política e militar e o que implica isso, sempre em
coletivo. Neste caso, passando do núcleo familiar ao da comunidade.
Depois da comunidade à região com diversas comunidades, e depois da
região à área com diversas regiões, depois da área a todo o EZLN,
aos diversos povos indígenas que se agrupam.
Já depois do levantamento, devido ao contacto que se tem com a
sociedade civil nacional e acentuadamente com a sociedade civil
internacional, os povos enriquecem a sua experiência cultural, o seu
horizonte, como nós dizemos, e podem enfrentar mais comodamente, já
afastados da tentação do fundamentalismo étnico - esse que é tão
querido pela ANIPA - um processo de autogoverno, nada mais que ele
fica um pouco retido porque faz parte das demandas nacionais.
Digamos que começam a serem construídas as formas mais avançadas de
autogestão e de autogoverno, que já funcionavam em nível comunitário
inclusive antes de que o EZLN chegara em Chiapas, mas logo avançam
para um estágio mais desenvolvido, ao dos municípios autónomos, em
torno de 1995 e 1996, mas este avanço dá-se de maneira irregular.
Alguns municípios têm mais experiência nesse processo de
autogoverno, o constróem e é produto da sua própria luta e do seu
próprio desenvolvimento, e é ai onde puxam ao EZLN para que aprenda
e fosse adequando-se.
Noutros locais não ocorre dessa maneira, são lugares nos quais
supõe-se que existiam municípios autónomos mas não funcionavam
realmente. Noutros locais sim desenvolviam-se como um governo, e com
a característica de que mandam obedecendo, com mudança de
funcionários, remoção, sanções pela corrupção, etc. Tudo isto, em
nosso caso, nas comunidades zapatistas, não é palavra ou promessa ou
utopia, senão que é uma realidade, e tampouco é aporte nosso, é
aporte das comunidades desde antes de que nós chegáramos. Isto vai
se desenvolvendo mais cada vez mas de maneira desigual.
Nos últimos dois anos, depois de que o Congresso da União e de que o
Executivo federal traíram a mobilização nacional e internacional em
favor dos direitos e cultura indígena, começa-se a tentar de igualar
o desenvolvimento dos municípios autónomos, começam-se a consolidar
os que já o estão, a desenvolver-se os que vão um pouco atrasados, e
a partir da declaração da Suprema Corte de Justiça que cancelava
este reconhecimento, começam-se a encaminhar para essa nova etapa
que chamamos as Assembleias de Bom Governo, que são relações entre
municípios autónomos para resolver problemas que foram sendo
detectados ao longo da sua existência.
Como eu dizia nas Estelas - remito vocês para elas -,
particularmente no Um Treze avos da Estela, tudo isto se produz num
processo de guerra, de perseguição, e de ataques de paramilitares,
de campanhas contra muito fortes nos meios, de doenças, de desastres
naturais, e tudo obstáculo que se possa imaginar.
Tudo isto enfrentaram os povos zapatistas, e ainda assim, constróem
essa alternativa de bom governo que são as Assembleias, porém que
falta ver se o cumprem, como dizemos nós.
Eles se têm organizado de maneira coletiva. Isto é fácil de dizer
mas difícil de entender e mais ainda de fazer. Nisso o que ajuda
muito é a experiência ancestral, agora sim que vem de séculos, das
comunidades, primeiro para desenvolver-se dentro das suas culturas e
depois para sobreviver às numerosas tentativas de aniquilamento e de
etnocídio que têm sofrido ao longo da história, desde o
descobrimento da América até os dias atuais.
Essa maneira coletiva que lhes permitiu desenvolver-se cultural,
social e economicamente, depois sobreviver à Conquista, à
Colonização, ao México independente e ao México moderno, é o que
depois lhes permite construir a resistência à maneira das
comunidades. O aspecto fundamental dessa resistência é que é
possível porque é coletiva, e ademais tem a vantagem de que graças a
esta intercomunicação que construiu o zapatismo com a sociedade
civil nacional e internacional, a resistência começou a gerar a
possibilidade de construir uma alternativa, e não somente tratava-se
de resistir até que um dia foram cumpridos os acordos, senão que
paralelamente a isso resistir, ir construindo os meios de
cumprimento ou de exercício desses direitos que estavam sendo
demandados.
O que faz que os zapatistas não se rendam aos diversos governos, aos
oferecimentos, é a experiência, a história e a consciência dessa
história. Tudo o que tem acontecido antes, as palavras, as promessas
e o que acontece depois dessas promessas, nos faz acreditar
firmemente, sempre, que estão tentando nos enganar. Em consequência
disso não estamos pedindo dêem para nós, senão que nos deixem fazer
sem que deixemos de ser o que somos, indígenas e mexicanos.
O mesmo coletivo, o trabalho político, o controle que se faz, o
desenvolvimento das formas de comunicação que temos ao interior de
nossas comunidades, faz que seja possível que a comunidade abrigue a
todos e cada um dos seus membros, que por vontade própria decidem se
manter na resistência.
Fizemos uma pesquisa, e os povos priístas não estão em melhores
condições de vida do que as comunidades zapatistas, para pôr um
exemplo. As comunidades rebeldes zapatistas, não todas, são as
únicas que contam com o serviço de saúde gratuito. Não existe
nenhuma comunidade fora das zapatistas e mesmo que não sejam todas,
que possa dizer o mesmo.
Em educação, a questão não é se pagam, senão se têm ou não, e as
comunidades zapatistas, em média, têm mais centros educacionais do
que as comunidades priístas. Isso no que refere-se a saúde e
educação. A alimentação, essa sim é igual para um e outro. A ajuda
que lhes da o governo aos priístas gastam em bebida não melhoram
nada a sua alimentação nem a sua vestimenta. Enquanto ao problema da
terra, esse é igual para todos, porém que o fato de que o zapatismo
propicie, promova e alente a produção coletiva, tem permitido, um
pouco, que a situação não se agudize tanto como nas comunidades
priístas.
Não estamos melhor que antes do levantamento. Além do mais, estas
melhoras não são produto das esmolas ou de nos termos vendido, senão
produto da organização interna das comunidades, da organização entre
comunidades e do apoio heróico da sociedade civil nacional e
internacional.
Não é o que queremos, falta muito para conquistar o que queremos,
mas estamos em melhores condições que antes do levantamento e,
ademais, com a convicção de que a nossa pobreza e nossas carências
têm rumo e tem fim, ou seja, têm uma esperança que as alimente.
18. As mulheres no EZLN
Enquanto à luta das mulheres indígenas rebeldes, da sua tríplice
marginalização pelo fato de serem mulheres, indígenas e pobres, as
companheiras organizam-se em dois níveis. Historicamente, digamos
que as mulheres das comunidades estavam mais marginalizadas, postas
de lado, e no momento em que algumas jovens indígenas vão-se para a
montanha e se desenvolvem mais, isso produz efeitos nas comunidades.
Naquele então, as insurgentes estavam mais avançadas ou em melhores
condições enquanto mulheres, do que as mulheres das comunidades..
Mas esse impacto que se produz nas comunidades começa a ter seu
desenvolvimento. E hoje nas comunidades este processo de organização
também tem avançado muito, porém que longe do que deveria ser.
No que se alcança a ver assim, em grandes traços, um é que nos
postos de direção, em áreas onde não existiam mulheres comités,
comandantas, como na área tzeltal, de dois ou três anos para cá já
há companheiras, porque as mulheres dos povos se organizaram para
escolher as suas próprias representantes ou responsáveis, como nós
dizemos. Isto acontece há muito na área tzotzil. Mas noutras partes,
há dois ou três anos que começam a surgir mais mulheres. Pode-se
detectar melhor no momento em que começou-se a generalizar o sistema
educacional zapatista, no qual as mulheres, as meninas que em geral
passavam-se na cozinha ou tomando conta dos irmãos pequenos, já
concorrem à escola, porém que ainda não conseguimos generalizá-lo.
Já não existe praticamente o casamento através da compra, ou seja,
que casem uma companheira com alguém de quem não gosta. Pelo menos
em comunidades zapatistas. Mas ainda continua existindo a violência
familiar contra as mulheres, os ataques sexuais, porém que não
existe essa figura nas legislações das comunidades. O que acontece é
que ai não posso ser eu a dize-lo, senão que as mulheres dissessem
os problemas que estão enfrentando.
Enquanto EZLN nós pensamos que este movimento de libertação, de
emancipação da mulher, tem muito a ver com as condições materiais,
isto é, não pode ser independente e livre a mulher que depende
economicamente do homem. Nesse sentido, o avanço das cooperativas
indígenas de mulheres lhes permite a elas ter um ingresso e ter a
independência económica, lhes permite fazer muitas coisas que antes
não se podia. E isso se está tentando generalizar, porém não sempre
em nível de cooperativa, mas trata-se de propiciar que as
companheiras possam trabalhar ou obter uma renda que lhes permita
mais independência, e que isso propicie outras coisas. Mas disso
estamos muito longe ainda, porque tem muito a ver com as condições
económicas das comunidades zapatistas.
Nós vemos que existe maior participação de mulheres no CCRI. De três
anos até a data, a porcentagem de comandantas cresceu até chegar a
mais de um 30 porcento, e antes andava entre o 10 e o 15 porcento em
todo o comité. Hoje sim existem comandantas de todos os povos
indígenas e antes não era assim. Participam mais, têm as suas
reuniões aparte. Eu percebo mais respeito de parte dos comandantes
para com as comandantas, coisa que não acontecia, mas falta muito
ainda. Esperamos algum dia poder contar boas novas respeito disso.
19. Os desafios das Assembleias de Bom Governo
O principal desafio é o que temos enfrentado todos: o aprendizado.
As assembleias de Bom Governo estão hoje nesse processo de
aprendizagem, onde vão ter que delimitar bem as suas funções
respeito dos municípios autónomos, porque nestes primeiros dias têm-
se dado casos de invasão de funções. Está acontecendo que as
Assembleias de Bom Governo começam a tomar decisões que correspondem
ao município autónomo e, noutros casos, funções que sim lhes
correspondem são delegadas para os municípios autónomos.
Hoje estão no processo de assentamento, de definir o seu horizonte e
o seu perímetro de ação com os municípios autónomos, com outros
municípios que não são zapatistas e com outras Assembleias de Bom
Governo. Então, estão-se organizando para esse aprendizado. Em cada
lugar estão representantes de cada município autónomo, acompanhados
duma delegação do CCRI de cada área que lhes explica e ajuda a
explicar a cada pessoa que chega. O papel do CCRI é que tudo seja
transparente para as comunidades, que saibam o que é que está sendo
feito em cada momento, quanto dinheiro se está recebendo, para o que
ele está sendo destinado, para que possa ser exercido esse mecanismo
de vigilância que tem dado resultados ao longo de séculos, onde o
coletivo fiscaliza para que o indivíduo não se corrompa, etc.
O problema que está sendo encontrando hoje é que as pessoas que vêm
falar com as Assembleias de Bom Governo pensam que elas são o EZLN,
e lhes fazem perguntas que correspondem ao ezln e não sobre as
formas de governo. E não há que esquecer que existem mais
comunidades zapatistas do que as que estão organizadas em municípios
autónomos e em Assembleias de Bom Governo. Existem comunidades
indígenas que não têm alcançado a coesão, ou não alcançam ainda a
tecer territorialmente a capacidade para serem um município
autónomo, e muito menos para ter uma Assembleia de Bom Governo e,
proporcionalmente, são maioria as que não têm representação autónoma
num município ou numa Assembleia de Bom Governo.
Então, pensar que o EZLN é mesma coisa que a Assembleia de Bom
Governo ainda é não terminar de entender o que coloca o ezln e pelo
tanto, demandar das Assembleias de Bom Governo posições, opiniões,
funções que competem ao EZLN, à organização que une aos povos em
resistência. Isso ainda é algo que tem que aprender a outra parte, a
sociedade civil.
Nós pensamos que tudo isto vai-se resolver com essa capacidade da
qual falei ao começo, da que estamos orgulhosos os zapatistas, a
capacidade de aprender.
* Texto extraído de Livro recentemente publicado no México, DF
Tradução: Juan Alberto Pezuto
https://www.alainet.org/pt/active/5726
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