O PT em busca de um inferno mais tranqüilo
16/03/2004
- Opinión
Os subterfúgios, pretextos e reações do PT frente ao escândalo
envolvendo diretamente Waldomiro Diniz são tão ou mais
comprometedores que o próprio fato em si. O buraco é muito mais
fundo que parece e foi cavado durante a trajetória ascendente do PT
por dentro de instituições que referendaram a decomposição do
Estado e da economia nacional. Esta ascensão pacífica e gradual só
seria possível com o compartilhamento de propósitos e métodos com
os setores protagonistas do desmonte: bancos e fundos de pensão
nacionais e internacionais, enclaves exportadores, segmentos de
serviços privatizados e redes criminosas organizadas.
Não há aliança com um desses setores que não implique em profundas
redefinições estratégicas. O então chefe da Casa Civil é que
afirmaria com todas as letras: "Fracassou uma coalizão político-
empresarial e político-parlamentar que governou o Brasil durante
dez anos". O governo do PT então deveria procurar "construir uma
nova coalizão político- parlamentar, uma nova aliança político-
empresarial e uma nova aliança popular-empresarial para consolidar
um projeto que, em primeiro lugar, resgata o projeto de
desenvolvimento nacional". O que há de novidade e de continuidade
na transição entre essas duas coalizões? Qualificativos como "nova
e popular" não substituem atores coletivos em movimento. A
priorização dos acordos interelites e interburocráticos em
detrimento da organização social autônoma significou uma opção pelo
pântano das concessões ilimitadas. O que pode parir o âmbito
"político-parlamentar" senão uma maioria congressual em regime de
engorda de clientelas? Que "aliança político-empresarial" é
concebível sem a transferência de prerrogativas deliberativas para
que os oligopólios cuidem dos seus interesses dentro do Estado?
O processo decisório econômico foi despido de intermediações
públicas e nacionais para em seguida ficar à mercê de arbitragens
privadas transnacionais. A política econômica costuma ser assunto
sério demais para ser tratado pelos que não se beneficiam dela. A
tecnocracia do capital aninhada comodamente no ministério da
Fazenda e no Banco Central se esmera em orientar o tráfego dos
capitais, sinalizando riscos e oportunidades. A gestão antecipa-se
à propriedade na ilusão de substituí-la. Marionetes rebelam-se
contra a inutilidade dos cordões. Bonecos adivinham os mais
secretos desejos de seus ventríloquos. Disciplina fiscal ao invés
de indução do desenvolvimento. Superávit primário sempre além do
mínimo exigido. O país, sua moeda e seus títulos na cotação
flutuante do dia. Que autonomia de gestão é possível com contratos
de dívida que impõem metas, procedimentos e prazos intocáveis e
irreversíveis? Uma volta a mais no torniquete para provar que há
margens adicionais de extração e, conseqüentemente, de negociação?
A chantagem faz a diferença e o privilégio
Entre 2001 e 2002, já se prefigurava a coalizão que levaria Lula à
presidência.O diálogo com o capital estrangeiro e seu staff
financeiro seguia os trilhos da confiança recíproca. O setor
primário-exportador remanescente, fortemente transnacionalizado,
oferecia-se amigavelmente para gerir as políticas de incentivo que
lhe dissessem respeito. Havia, contudo, dois setores renitentes,
empresas de serviços recém- privatizados e redes criminosas que se
locupletaram nos vazios deixados pelo Estado. Exigiam garantia de
intocabilidade. Os mais expostos dentre eles iriam às últimas
conseqüências para preservar sua invisibilidade.
Ameaças pré-eleitorais em código pretensamente esquerdista são
endereçadas a mandatários e dirigentes petistas. Bombas e tiros de
advertência nas varandas de suas casas. Listas de cabeças a rolar.
"O crime organizado tem um braço político e ele está contra o PT",
disse, à época, José Dirceu. Não se tratava de gosto ou desgosto
ideológico, mas apenas zelo pela "estabilidade" dos negócios. O
corpo estranho com compromissos públicos abrangentes precisava
sofrer enquadramento semelhante ao praticado pelos especuladores
financeiros nacionais e internacionais. Fato consumado, o capital
fugindo ou o sangue escorrendo. Demonstração pirotécnica do alto
custo da ruptura. A capitulação tornada aceitável, implodidas as
outras opções. A política, privatizada e fragmentada, degradada em
jogo de uma regra só: vencer ou perder. O PT venceu.
Vitória de Pirro, inglória e infamante por tudo o que foi
sacrificado em nome dela. Abandonadas as bandeiras históricas no
caminho, de que valeu a chegada? A "Carta aos brasileiros", o
documento que consagrou a funcionalidade e a maleabilidade
sistêmicas do PT, avisava aos ditos cujos que os interesses do
capital financeiro estariam sempre acima dos seus. Salvo-conduto
equivalente foi a obscena defesa da versão de crime comum frente à
execução encomendada de Celso Daniel. Palavra por palavra, pé ante
pé, são pequenas as margens de incerteza em um Estado-nação
espremido por cima pelos conglomerados e por baixo pelas máfias. As
únicas "mudanças" permitidas são aquelas processadas por "dentro".
Cláusulas sociais nas políticas anti-sociais do FMI, isso pode.
Operação Anaconda nas bordas desguarnecidas do crime organizado até
ajuda. O rabo do endividamento abana o cão assim como o braço
político do crime sacode o corpo.
Racionalizando a decomposição da nação
O financiamento das campanhas eleitorais é como correntemente se
recicla o patrimonialismo no Brasil. O poder a seus legítimos
donos, anuncia o leiloeiro ao final de cada martelada. Se é esse o
poder que sobra, é preciso valorizar cada lance e planejar
cuidadosamente cada oferta. O que é grave nas últimas denúncias de
corrupção não é o tráfico de influência praticado por um assessor
direto do então Primeiro- Ministro. É a aliança perene e convicta
com um ramo crucial para o crime organizado, que é a lavagem de
dinheiro. De procuradores a contraventores, todos sabem que é ali
que o bicho pega. Autoridade no assunto, Beira-mar já disse que
quem quiser conhecer a "verdadeira lama do tráfico" que investigue
o negócio de bingos no Brasil. Como justificar o congraçamento do
governo e de membros do PT, como o deputado Gilmar Machado, com o
management da criminalidade até a demissão de Waldomiro Diniz?
Falha técnica? Controvérsias de mérito? Os dirigentes do PT e do
governo nunca ouviram falar da reciclagem de dinheiro sujo provindo
do narcotráfico e segmentos afins? Tão cândidos defendendo uma
atividade lúdica e ainda geradora de receita, empregos e
contribuições sociais de monta.
O fato é que Waldomiro Diniz não estava naquela mesa extorquindo um
bicheiro em seu próprio nome. Sem ser filiado, solicitava
contribuições vultosas para candidaturas vinculadas ao núcleo
dirigente do PT. Quem o escalou para essa missão? Que benesses e
compromissos futuros foram oferecidos em troca? O 1% amealhado por
Waldomiro só compensaria se existissem muitos outros 99% a
recolher. Waldomiro era um interlocutor de confiança tanto das
quadrilhas do jogo quanto dos novos ocupantes do Planalto. Servir
incondicionalmente a dois senhores é possível desde que, no fundo,
ambos sejam um só. A institucionalização da lavagem de dinheiro no
país faria muito bem a autoridades que passariam a centralizar a
sangria das riquezas nacionais. Uma bela e extensa fachada oficial,
com taxa de administração unificada, seria o paraíso tão sonhado
pelas estruturas mais concentradas do crime organizado.
A tentativa mais ousada de legalização do bingo partiu da Casa
Civil. Um grupo interministerial, sob orientação direta do ministro
José Dirceu, converteu-se em câmara setorial da jogatina. O
anteprojeto atendia em cheio aos anseios das lavanderias de
dinheiro do país. Além da legalização, a principal reivindicação
desse segmento era a estadualização da fiscalização de suas
atividades, de modo a pulverizar os controles. Após o escândalo,
restou fugir para frente no intuito de deixar na poeira os rastros
do acordo. A medida provisória que proíbe os bingos é um disfarce
provisório e precário. Passo à frente para manter e justificar
incontáveis passos atrás.
Os pragmáticos dizem que política se faz com atores e recursos que
se têm diante de si. Mas o que sobra para um partido, convertido em
máquina eleitoral e administrativa, senão espúrios grupos de
interesse? O que pode fazer uma máquina senão valer-se de todos os
recursos conhecidos e mobilizáveis para derrotar suas congêneres?
As originais interfaces sociais foram sendo permutadas por outras
mais previsíveis. O PT aprendeu rápido que é montando blocos
privado-públicos orgânicos que se obtém governabilidade e,
conseqüentemente, maiores chances de reeleição. A identidade
originária do partido, socialista e contestatória, foi transformada
em invólucro de uso intensivo no marketing interno e externo. O
estofo seria prontamente flexibilizado conforme o figurino.
Conteúdo definido no jogo de interesses mais próximo. Canal de
diálogo intracapitalista confiável e, ainda por cima, "popular".
Mais estilo com maior espaço interno. Mercadoria ímpar. Quanto
vale? Tudo é negociável, companheiro.
* Luís Fernando Novoa Garzon é sociólogo e membro da ATTAC.
https://www.alainet.org/pt/active/5818
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