Os dilemas de Rafael Correa

21/01/2013
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Os setores progressistas de todo o mundo olham para a América Latina com apreensão. As incertezas quanto ao estado de saúde do presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, e os desdobramentos dessa situação para o futuro do processo de transformações por ele iniciado em 1999, são um fator de preocupação para as forças populares em todo o planeta. Especialmente na América Latina, onde Chávez subverteu a perversa lógica de subordinação nacional à que estavam submetidos os países da região, liderando o primeiro governo comprometido com os interesses nacionais e populares em décadas, a influência de seu legado é mais fortemente sentido. Não há dúvidas de que outras experiências surgidas no decorrer da última década são tributárias da novidade que Chávez simbolizou.

Entre essas experiências, está o governo de Rafael Correa, no Equador. Foi em meio às incertezas envolvendo o futuro da Revolução Bolivariana na Venezuela que começou na última semana a campanha eleitoral para eleger (ou reeleger) o presidente, o vice-presidente e 137 deputados à Assembleia Nacional equatoriana. Na corrida ao Palácio de Carondelet concorrem oito candidatos: o atual Presidente, Rafael Correa; o ex-banqueiro Guillermo Lasso; o ex-presidente Lucio Gutiérrez, deposto por protestos populares em abril de 2005; o empresário e candidato derrotado por Correa em 2006, Álvaro Novoa; o pastor evangélico Nelson Zavala; o cientista político liberal Maurício Rodas; o advogado Norman Wray e o economista e ex-ministro de Minas e Energia de Corrêa, Alberto Acosta.

As últimas pesquisas apontam amplo favoritismo de Correa: com 60,6% das intenções de voto e 72% de aprovação a seu governo, o presidente deve vencer as eleições já no primeiro turno. Guillermo Lasso, em segundo lugar, tem o apoio de 11,2% dos eleitores, seguido por Lúcio Gutiérrez (4,5%), Alberto Acosta (3,5%) e Álvaro Novoa (1,8%). Os demais não alcançam 1%.

O que explica tamanho apoio ao atual governo? A chamada “Revolução Cidadã” iniciada por Rafael Correa consiste num conjunto de reformas que buscam enfrentar problemas históricos do Equador, como a Dívida Externa, o controle sobre os recursos naturais estratégicos e medidas sociais de caráter emergencial para diminuir drasticamente as profundas desigualdades sociais que marcam o país.

Já início de seu governo, em 2007, Correa criou a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público, cuja atribuição foi a realização da auditoria oficial da dívida pública do país – tanto interna quanto externa – e seus impactos sociais, ambientais e econômicos. O presidente determinou a suspensão dos pagamentos dos títulos da dívida externa e submeteu o relatório final da comissão à justiça nacional e internacional. Após o reconhecimento de sua validade jurídica, Correa anunciou a proposta de aceitar somente algo entre 25% e 30% do valor dos títulos da dívida externa comercial. Aqueles detentores de títulos que não concordassem com a proposta teriam que recorrer à justiça, apresentando as suas petições contra o Equador. Face às provas contundentes de ilegalidade da dívida, 95% dos credores aceitaram a proposta. Depois de confrontado o problema da dívida pública equatoriana, os investimentos em saúde e educação quadruplicaram, demonstrando a efetividade da auditoria.

Além disso, os números divulgados num balanço oficial apresentado pelo governo no final do último ano são realmente impressionantes. O Equador esperava fechar 2012 com um crescimento do Produto Interno Bruto de cerca de 5% (contra o crescimento de 1% do Brasil) depois de ter se situado no ano de 2011 entre os países com maior crescimento em toda a região. O nível de desemprego caiu no ano passado a uma taxa de 4,2%, a mais baixa na história do país. Pela primeira vez, a pobreza extrema está em um dígito (9,4%), o que é praticamente a metade do valor observado no início do governo de Correa, quando 16,9% da população estava na miséria absoluta.

A essa política soma-se a eliminação do trabalho infantil, que retirou mais de 450 mil meninos e meninas dessa situação nos últimos cinco anos. Isto foi reconhecido pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) quando colocou o Equador como um dos campeões na redução da pobreza em 2011, assim como na atenção a mais de 130 mil pessoas com deficiências.

Essas iniciativas vêm acompanhadas de medidas assistenciais a idosos e apoio a mães solteiras chefes de famílias, mediante o chamado “Bônus de Desenvolvimento Humano” outorgado a cerca de 1,8 milhões de beneficiários. Parecido com a Bolsa Família brasileira, esse bônus é entregue sob a condição de que as mães enviem seus filhos à escola e garantam seu adequado crescimento através de programas de alimentação infantil para evitar a subnutrição crítica.

Paralelamente, o governo toma iniciativas no sentido de enfrentar a atual correlação de forças, tanto na política externa – rompendo relações com o governo da Colômbia quando dos ataques ao acampamento das FARC na fronteira com o Equador ou asilando Julian Assange em defesa da liberdade de informação – quanto interna, aprovando uma Constituição que prevê a institucionalização de vários avanços, submetida e aprovada em referendo popular por mais de 82% dos equatorianos.

Porém, nem só de acertos vive a Revolução Cidadã. Uma tensão latente opõe governo e movimentos sociais indígenas e urbanos. A implementação de um modelo de desenvolvimento cada vez mais centrado na exploração dos recursos naturais tem sido questionado, principalmente, por setores progressistas que até pouco tempo apoiavam o governo.

Com investimentos milionários em oito centrais hidroelétricas, o Equador pretende deixar de importar eletricidade da Colômbia e do Peru a partir de 2016. Além disso, com um mega projeto de U$12 bilhões na Refinaria do Pacífico, também quer exportar derivados de petróleo. Mas os planos oficiais de extração de recursos naturais têm contado com a oposição do principal movimento social do país: o movimento indígena. O novo processo de licitação internacional para a exploração do petróleo em larga escala na Amazônia equatoriana tem sido fortemente questionado. Não é primeira nem a mais importante polêmica entre Correa e os movimentos sociais.

Em março, os conflitos envolvendo os megaprojetos de mineração anunciados pelo governo equatoriano aprofundaram a ruptura entre Correa e parte do movimento indígena. Naquele mês, o governo inaugurou a mina a céu aberto “Progresso”, firmando o primeiro contrato com a empresa Ecsa para sua exploração. O início das atividades da mina se deu após intensos protestos e sob a acusação do governo não ter consultado previamente as comunidades afetadas. A resposta veio dias depois, com a grande Marcha pela Água, a Vida e a Dignidade, que percorreu o país desde o sul da Amazônia equatoriana, passando pelas principais cidades andinas até chegar a Quito, colocando em evidencia o tema da defesa da natureza e da soberania nacional.

Mais recentemente, o enfrentamento entre o governo e os movimentos sociais tem sido em torno da recente licitação para que empresas estrangeiras façam investimentos em 13 campos de petróleo no sudeste da Amazônia equatoriana. Irritado, Correa afirmou: "Basta desse infantilismo de 'não ao petróleo', 'não à mineração'(...)", defendendo o "aproveitamento responsável" dos recursos naturais não renováveis que o país possui”. No centro da polêmica, está a disposição da Constituição equatoriana que estabelece que toda a decisão do Estado que afete o ambiente terá que ser objeto de consulta com a comunidade local.

Correa defende que tal consulta não significaria consentimento prévio. Segundo ele, “não podemos ser mendigos sentados sobre um saco de ouro”, disse em várias ocasiões aos que se opõe à exploração mineira, quando já há evidências de grandes reservas de cobre, ouro e outros minerais a serem exploradas. Questionando os que criticam as iniciativas na área da exploração mineral, o governo afirma que os maiores depredadores são a expansão da fronteira agrícola e a mineração clandestina irresponsável.

Mas as críticas dos movimentos sociais não se resumem à questão ambiental. Em agosto de 2012, Correa defendeu a urgência de reformar a Constituição para sanear, segundo ele, o “hipergarantismo” que impede a governabilidade do país. Os movimentos questionam como uma Constituição considerada uma das mais avançadas em termos de direitos possa ser considerada um empecilho exatamente por assegurar garantias e direitos nunca antes previstos.

Ao mesmo tempo, há temas importantes que o governo nunca enfrentou. A ausência de uma reforma agrária, o problema da distribuição da água ou a democratização dos meios de comunicação são temas pendentes na agenda de Correa. Além disso, a economia continua dolarizada e o país segue subordinado às determinações do Federal Reserve, o Banco Central dos EUA.
É desse processo de crítica ao modelo de desenvolvimento levado à cabo pelo atual governo que nasce a candidatura de Alberto Acosta, ex-ministro de Minas e Energia de Rafael Correa e principal candidato à esquerda da coalizão Alianza País. Representando uma coalizão de movimentos sociais e partidos socialistas e comunistas unidos na “Unidade Plurinacional das Esquerdas”, a candidatura de Acosta simboliza não somente uma justa crítica aos limites do governo de Correa, mas uma plataforma efetivamente mais avançada para transformar profundamente a realidade do Equador. Com menos de 4% de apoio, porém, as pesquisas demonstram que a sociedade equatoriana não está preparada para uma saída radical aos séculos de atraso a que foi historicamente submetida. Razão pela qual, Correa deve mesmo capitalizar a grande maioria do apoio dos setores populares e progressistas.

Nos vinte anos que antecederam a chegada de Rafael Correa ao poder, nada menos que 14 presidentes haviam sido depostos (média de cerca de um presidente a cada ano e meio). A estabilidade política é uma conquista das elites que hoje podem negociar livremente, mas também é um avanço que favorece as forças populares na organização de um projeto efetivamente alternativo. O problema é onde entram Correa e sua “Revolução Cidadã” nisso tudo. Longe de ser uma experiência a serviço da “estabilização burguesa” como acusam os setores mais extremados da opositora Unidade Plurinacional das Esquerdas, o processo liderado por Correa é cheio de contradições e limites, embora mostre muito mais disposição para enfrentar os problemas históricos de seu país em comparação com outros governos da região. Pressionado entre “razões de Estado” que a legalidade burguesa impõe e a necessidade de rupturas, Correa se equilibra, ora acertando, ora errando. Faz um bom governo, bem posicionado na geopolítica regional e com inquestionáveis avanços sociais.

Mas para ele, tal como para os demais governantes que representam experiências democráticas e populares, o dilema é o mesmo: até onde é possível ir sem romper com os limites dessa legalidade? Como construir uma alternativa real de poder popular? Que fazer para fortalecer as organizações da sociedade civil? Se Correa não tiver em seu horizonte a necessidade de enfrentar essas questões, de pouco terá servido chegar até aqui.
 
- Juliano Medeiros é membro da Direção Nacional do PSOL e da Fundação Lauro Campos.
 
 
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