Nasce uma campanha: controle de capitais
05/06/2004
- Opinión
1. Em 2003, nosso governo pagou R$ 149 bilhões em juros
aos detentores de títulos da dívida interna (que, não
obstante, continuou a aumentar). Foi uma quantia 5 vezes
maior do que os gastos autorizados em saúde pública, 8
vezes maior do que os gastos autorizados em educação, 28
vezes maior do que em transportes, 47 vezes maior do que
em segurança pública, 50 vezes maior do que em preservação
do ambiente, 70 vezes maior do que em ciência e
tecnologia, 140 vezes maior do que em reforma agrária e
700 vezes maior do que em saneamento básico. Os números
dispensam comentários.
Quanto ao front externo, eis alguns dados divulgados
pela edição de 5 de maio de O Globo, que usa como fonte o
Banco Central: "Os depósitos [declarados] de pessoas
físicas e jurídicas [brasileiras] em contas no exterior
passaram [em 2003] de US$ 7,89 bilhões para US$ US$ 16,69
bilhões, com aumento de 111%. Em derivativos (operações de
mercado futuro), a expansão chegou a 327%, com aumento de
US$ 104,7 milhões para US$ 436,9 milhões. (...) A previsão
do Banco Central é que, em 2004, (...) os brasileiros
desembolsarão US$ 15,9 bilhões em juros de dívidas no
exterior e US$ 6,6 bilhões em remessas de lucros, num
total de US$ 22,5 bilhões – valor próximo da estimativa do
superávit comercial de US$ 24 bilhões. O saldo comercial
está cobrindo as despesas financeiras com juros e
remessas."
Um país que trabalha e exporta mercadorias durante um
ano inteiro apenas para pagar juros e remessas ao exterior
está colocado, para lembrar um artigo recente do
embaixador Rubens Ricupero, na posição de escravo de
ganho. Eram assim denominados os escravos que, no século
XIX, faziam trabalhos manuais nas ruas das cidades
brasileiras e, no fim do dia, repassavam aos senhores a
receita obtida. Por meio de um título de propriedade, o
fruto do trabalho de um tornava-se renda do outro.
O povo brasileiro, hoje, é escravo de ganho dos
detentores dos títulos da dívida interna. E o Brasil, como
um todo, é escravo de ganho do sistema financeiro
internacional. A gravidade da situação contrasta de forma
chocante com a inapetência do governo para enfrentá-la.
2. Nesse contexto, reconhecendo a urgência de propor
mudanças, intelectuais, organizações não governamentais e
movimentos sociais iniciaram uma campanha pelo controle da
movimentação de capitais. Nos dias 28 e 29 de maio
realizou-se em São Paulo um seminário sobre o tema, com
patrocínio da Fundação Rosa Luxemburgo, do ATTAC e do
Grupo de Pesquisa em Moeda e Crédito da PUC-SP. Nas mesas,
estiveram presentes, entre outros, os economistas Luís
Gonzaga Belluzzo (Unicamp), João Sicsú (UFRJ), Leda
Paulani (USP), Carlos Eduardo Carvalho (PUC-SP), Marcos
Cintra e Daniela Prates (Fundap), Carlos Schmidt (UFRGS) e
João Machado (PUC-SP), o filósofo Paulo Arantes (USP), o
sociólogo Francisco de Oliveira (Cebrap), as procuradoras
Raquel Branquinho e Valquíria Nunes e o deputado federal
Sérgio Miranda (PCdoB-MG), além de Antônio Martins (ATTAC)
e Moema Miranda (Ibase). Os textos apresentados e
debatidos no seminário estão publicados nas páginas
www.rls.org.br (rubrica "eventos realizados") e
www.planetaportoalegre.org.
A campanha pelo controle de capitais é o nosso tema do
mês. Dois cuidados iniciais são necessários. O primeiro,
com as palavras. Pois a forma predominante de dominação
ideológica não é mais o puro e simples ocultamento dos
fatos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas
ditaduras. A dominação se faz, hoje, muito mais pela
capacidade de nomear. Mário de Andrade dizia: "As pessoas
não pensam as coisas, elas pensam os rótulos." Tinha toda
razão. Boa parte do jornalismo contemporâneo – e quase
todo o jornalismo econômico – tornou-se apenas uma
grosseira arte de rotular.
À lei que define que os recursos públicos devem ser
prioritariamente orientados para pagar juros ao sistema
financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do
Estado, rotula-se "lei de responsabilidade fiscal". À
recorrente prática de cortar gastos essenciais, para
sustentar esses mesmos pagamentos, rotula-se "disciplina"
ou "austeridade", necessárias para formar um "superávit
primário". Ao desmonte dos mecanismos de defesa de uma
economia periférica e frágil rotula-se "abertura". Aos
efeitos do desvio das contribuições sociais – recolhidas
pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar o
sistema de Seguridade Social – rotula-se "déficit da
Previdência". E assim por diante.
Esse procedimento nada tem de ingênuo. Cabe aos meios
de comunicação difundir esses rótulos e, pela repetição,
incorporá-los à linguagem comum. Feito isso, não há mais
debate possível. Afinal, quem pode ser contra
"responsabilidade", "disciplina", "austeridade",
"abertura", "superávit", coisas evidentemente tão boas?
Quem pode ser a favor de "déficit", coisa intrinsecamente
tão ruim?
Em plena vigência de um regime político que garante
liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem
acesso aos conteúdos das questões. Tudo fica paralisado no
rótulo, pontos de partida e de chegada da mensagem, na
medida em que bloqueia qualquer pensamento.
O mesmo se dá na discussão que travaremos aqui. Também
neste caso, o nome da coisa – "livre movimentação de
capitais" – tem sido cuidadosamente escolhido para matar e
impedir o debate. Quem pode ser contra uma "livre
movimentação"? Não é a liberdade um conceito legítimo em
si?
(Toda essa prestidigitação semântica, que sustenta a
ideologia econômica dominante, poderia desfazer-se por
meio de um simples ato de renomear. Por exemplo, se
chamássemos a "lei de responsabilidade fiscal" de "lei que
define que garantir o pagamento de compromissos
financeiros é mais importante do que investir em serviços
essenciais", os pontos de vista seriam automaticamente
modificados. Porém, só quem controla os meios de
comunicação de massa pode nomear e renomear de forma
eficaz.)
3. Escapemos dos rótulos. Tentemos compreender o conteúdo
da coisa. A "livre movimentação de capitais" é o desmonte
de mecanismos que historicamente buscaram compatibilizar,
de alguma forma, o impulso à acumulação de capital
privado, de um lado, e os interesses mais gerais da
sociedade, como interesses de soberania e de cidadania, de
outro. Ambos não são necessariamente incompatíveis, mas
tampouco são necessariamente harmônicos. A economia
política, em todos os tempos, foi profundamente marcada
pelas tentativas de compatibilizá-los.
Numa economia, como a nossa, que apresenta contas
externas estruturalmente frágeis, quando os capitais se
movimentam sem regulamentação, para dentro e para fora,
alteram-se, antes de tudo, as relações de poder. Pois a
movimentação descontrolada de riqueza financeira impede o
controle e até mesmo o cálculo da taxa de câmbio,
ameaçando, com esse descontrole, desorganizar todo o
sistema de preços em que se baseia a economia real. Como o
mercado de câmbio é excepcionalmente volátil, ultra-
sensível a movimentos especulativos, o capital financeiro
adquire desse modo um poder de veto sobre quaisquer
decisões que a sociedade queira tomar. O Estado torna-se
refém dos seus movimentos. Se não fizer o que ele deseja,
aparece a ameaça de caos. Nesses contextos, como dizia
antes a velha Margareth Tatcher e diz agora o novo PT,
"não há alternativa".
O que se discute, pois, não é se devemos ter mais ou
menos liberdade abstrata, mas que graus de liberdade o
capital, o Estado e a sociedade devem ter, qual equilíbrio
se deve buscar entre diferentes agentes, de modo a
maximizar as perspectivas de desenvolvimento e o bem-estar
coletivo. A máxima liberdade de um é a mínima liberdade do
outro. Se o capital financeiro está livre, o Estado
nacional está preso. Se o Estado não define regras, ele
mesmo tem de adaptar-se às regras que o capital definirá.
O poder soberano troca de mãos.
4. O segundo cuidado, a que nos referimos, é com a
mistificação da história. Os defensores da
desregulamentação apresentam-se como representantes de um
saber econômico consolidado e tradicional, e não hesitam
em classificar de experimentalistas e aventureiras as
posições divergentes. Nada mais falso. Até quase o final
do século XX, nenhum economista sério, de qualquer
filiação doutrinária, considerou digna de exame a idéia de
que países com contas externas vulneráveis pudessem
liberar os movimentos de capital. Todo o pensamento
econômico consolidado e tradicional não só defende, mas
recomenda e muitas vezes exige a regulamentação. As
diferenças são apenas de ênfase, nunca de ponto de vista.
É fácil entender por quê. Sempre que estamos diante de
recursos escassos é preciso fazer um orçamento, ou seja,
planejar os gastos. O Orçamento público, por exemplo, é um
plano de gastos do Estado, em moeda nacional, num contexto
em que as demandas a serem atendidas superam os recursos
disponíveis em cada momento (se os recursos fossem sempre
abundantes, orçamentos seriam desnecessários). Ora, o
recurso mais escasso de todos, para nós, não é nem moeda
nacional nem títulos públicos (que, ambos, o nosso Estado
pode emitir), mas sim a moeda estrangeira (que o nosso
Estado não pode emitir) necessária para manter em
funcionamento uma economia que necessita fazer compras e
pagamentos no exterior. Os neoliberais defendem que o
Orçamento do Estado em moeda nacional seja estritamente
regulamentado, austero, disciplinado, "responsável". Mas,
paradoxalmente, também defendem que não se faça um
Orçamento de divisas (essas sim, muito escassas), de modo
que qualquer especulador, a qualquer momento, por qualquer
motivo, possa converter em dólares os reais que desejar, o
que mantém as reservas do Banco Central sob permanente
risco.
Disso pode resultar uma crise que paralise as
transações do país com o exterior. Daí o cuidado que os
economistas verdadeiramente responsáveis sempre dedicaram
a essa questão. Eles ficariam surpresos se adivinhassem
que, contemporaneamente, aventureiros taxariam de
aventureirismo suas sensatas recomendações no sentido de
manter sob controle o endividamento, de modo a evitar
situações de inadimplência.
5. Para evitar esse tipo de desequilíbrio – que, ocorrendo
em muitos países, afetaria negativamente o sistema
internacional –, a primeira versão do acordo de Bretton
Woods (1944), que reorganizou o funcionamento do sistema
capitalista depois da Segunda Guerra Mundial, exigia, por
demanda inglesa, que os países signatários controlassem os
movimentos de capital. Depois, por concessão aos Estados
Unidos (que, após Bretton Woods, obtiveram a predominância
de sua moeda nacional sobre o sistema internacional, e com
isso se libertaram de pressões sobre seu próprio balanço
de pagamentos), a versão final do acordo passou a
recomendar esse controle. É esta a expressão que consta
até hoje no artigo VI dos estatutos do Fundo Monetário
Internacional. Para enfatizar a recomendação, esses
estatutos proíbem o Fundo de aportar recursos a países
cujos desajustes externos sejam causados por
desequilíbrios na conta capital. O controle dessa conta –
que consolida as relações financeiras entre o país e o
exterior – é atribuição, responsabilidade e obrigação de
cada Estado nacional. O FMI só pode financiar
desequilíbrios em transações correntes (ou seja,
originadas nas contas comercial e de serviços). Toda a sua
recomendação recente, sob orientação dos Estados Unidos,
no sentido de favorecer a abertura das contas capital, bem
como suas decisões de conceder empréstimos a países que se
desequilibram por causa dessas aberturas, é uma violação
de seus estatutos.
O controle dos movimentos de capital sempre foi regra,
nunca exceção. Até mesmo os Estados Unidos – cujo balanço
de pagamentos, como dissemos, é protegido pela condição
especial de país emissor da moeda mundial – lançaram mão
desse controle quando, na década de 1960, instituíram o
chamado "imposto de equalização" sobre a saída de capitais
que migravam para a Europa. No Velho Continente, todos os
países, inclusive a liberal Inglaterra, usaram controles
extensamente até a década de 1990. O Japão, na prática, os
mantém até hoje, apesar das pressões norte-americanas. A
desregulamentação da conta capital nos países periféricos
só começou nessa década, e em poucos anos produziu crises
em todos os continentes, até mesmo nas economias dos
chamados Tigres Asiáticos, cuja inserção internacional
sempre foi muito mais robusta que a nossa.
No Brasil, a desregulamentação foi impulsionada pelo
governo de Fernando Collor, aprofundada pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso e mantida pelo governo de Lula,
inclusive ao arrepio da lei (como está relatado na ação
civil pública movida pelas procuradoras Raquel Branquinho
e Valquíria Nunes; elas denunciaram à Justiça quinze
dirigentes do Banco Central que alteraram leis por meios
de simples resoluções, sem obter aprovação no Poder
Legislativo). Desde a crise de 1929 a conta capital esteve
estritamente regulamentada no Brasil. Assim permanece na
China e na Índia, os países periféricos que, não por
acaso, apresentam, de longe, os melhores resultados
econômicos nas últimas décadas.
Insistimos nesses exemplos para mostrar que é
completamente falsa a idéia de que o saber econômico
consolidado recomenda desregulamentação, sendo aventureira
a proposta de adoção de controles. A realidade é o
contrário disso. E a literatura econômica é rica em
estudos que demonstram a necessidade desses controles.
6. Esse debate remete diretamente a questões decisivas. A
primeira é o que podemos chamar de nossa condição de
economia reflexa. Tentemos entendê-la.
A história da economia brasileira (e a dos demais
países da América Latina), nos últimos trinta anos, pode
ser contada como a história de suas sucessivas adaptações
aos ciclos do capital financeiro internacional. Na década
de 1970, o acúmulo dos chamados petrodólares e a
desregulamentação de algumas praças financeiras, com a
formação dos chamados mercados off-shore, produziram um
excesso de liquidez, logo repassado às nossas economias,
que o absorveram sob a forma de dívidas. As condições
pareciam propícias, com juros em torno de 4% ao ano.
Na década de 1980, as políticas do governo norte-
americano inverteram a situação, conduzindo o sistema
financeiro internacional a uma crise de liquidez que se
traduziu em um dramático aumento nas taxas de juros,
igualmente despejado sobre nossos países. Fomos levados a
realizar um ajuste em sentido contrário, não mais voltado
para absorver recursos sobrantes, mas para remeter, ao
exterior, um múltiplo do que havíamos recebido. Os
credores elevaram as taxas de juros a até 23% ao ano,
fazendo-as incidir retroativamente sobre o estoque de
dívida contraído na década anterior. Nossas economias
quebraram. Logo sobrevieram choques cambiais e uma
inflação galopante. Tivemos a primeira década perdida em
termos de crescimento econômico.
Na década de 1990, o sistema financeiro voltou a dispor
de excesso de liquidez, retornando a uma posição
emprestadora. Foi a vez da renegociação das chamadas
"dívidas velhas" da América Latina, contraídas na década
de 1970, seguida de planos, entre os quais o Plano Real,
cujo verdadeiro lastro foi a abertura de um novo ciclo de
endividamento. Com o país voltando a receber novamente
vultosos recursos do exterior, a crise inflacionária pôde
ser contida, ao preço de formar-se um novo passivo externo
em expansão. Qualquer contração no sistema financeiro
internacional abrirá para nós um novo período de
dificuldades, pois estamos longe de terminar de pagar a
"dívida velha", à qual se soma a "dívida nova", feita nos
dez últimos anos.
Este é, talvez, o principal problema estrutural da
economia brasileira (e latino-americana): sua condição de
economia reflexa, que apenas reage e se adapta a ciclos
externos e, por isso, não constitui o seu próprio projeto
de desenvolvimento. A abertura da conta capital, na década
de 1990, aprofunda e torna mais dramática essa nossa
condição, que não é nova.
7. Em trabalhos realizados em meados da década de 1950, em
plena euforia do Plano de Metas, Caio Prado Jr. chamava a
atenção para as conseqüências negativas de uma
industrialização realizada sob o comando do capital
estrangeiro. Os vínculos voláteis desse capital com o
espaço econômico nacional faziam com que o Brasil
apresentasse fraca capacidade de controlar o seu próprio
processo de desenvolvimento.
Importa aqui, antes de mais nada, ressaltar a definição
de Caio Prado para o conceito de capital estrangeiro: um
capital cujo espaço permanente de manobra ultrapassa
amplamente o espaço da sociedade nacional e que mantém com
ela vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas
de realizar bons negócios. Sob esse ponto de vista, o
principal efeito da abertura da conta capital é tornar
todo capital, potencialmente, capital estrangeiro,
independentemente da nacionalidade dos seus titulares,
pois desaparece o próprio conceito de espaço monetário
nacional. Caio Prado nunca imaginou que pudéssemos chegar
ao paroxismo da situação atual. Em 2002, US$ 13 bilhões
entraram no Brasil sob a forma de saldo comercial e nada
menos que US$ 9 bilhões deixaram o país pelo mecanismo das
chamadas contas CC-5, que permitem remessas não
controladas pelo Banco Central. Na outra ponta, verifica-
se que, desde 1995, os países que mais investem no Brasil
são sistematicamente os paraísos fiscais, que superam com
folga até mesmo os Estados Unidos. O dinheiro que vem dos
paraísos entra como se fosse investimento direto
estrangeiro, quando na maior parte, como todos sabem, é
dinheiro de brasileiros que faz o trajeto de fuga para
retornar, quando assim desejar, protegido pelo estatuto,
mais favorável e isento de tributos, de capital
estrangeiro.
A ampla predominância desse capital estrangeiro – cujos
proprietários, repetimos, o mais das vezes são brasileiros
– tem diversas conseqüências sobre a dinâmica da nossa
economia. A primeira é a fraca capacidade de a sociedade
disciplinar o impulso de acumulação de capital,
subordinando-o a objetivos maiores, como a ampliação da
soberania, da cidadania e do próprio desenvolvimento,
visto em perspectiva de longo prazo. A segunda é a
radicalização da dinâmica reflexa, marcada por ajustes
passivos aos ciclos internacionais, com tendência a crises
externas recorrentes. Nossos ciclos de modernização sempre
foram liderados pela assimilação de padrões de consumo
criados em sociedades muito mais ricas (o que exige a
concentração da renda nacional, para reproduzir aqui um
mercado adaptado a esses bens) e financiados por meio de
endividamento externo, o que manteve nossa economia
sujeita a crises no balanço de pagamentos. Essas
características tendem a agravar-se. Pois, se o capital
estrangeiro predomina – e se, como vimos, todo o capital
nacional se transforma também em capital "estrangeiro", no
sentido de Caio Prado – então o ciclo da acumulação
capitalista não é mais D – M – D', tout court. Ele passa a
conter em si um enorme fator complicador, na medida em que
se generaliza a demanda de que D' seja moeda estrangeira.
Isso exacerba sobremaneira a fragilidade estrutural do
balanço de pagamentos. Decorre daí a tendência a surtos de
desenvolvimento instável, sujeitos a interrupções bruscas
ou mesmo reversões, que têm gerado a desindustrialização
precoce do Brasil e de outros países da América Latina.
8. Uma incerteza exacerbada, uma alta instabilidade nas
condições em que se processa a acumulação, um
desenvolvimento intrinsecamente instável fazem com que o
capital potencialize sua natureza especulativa e passe a
exigir duas coisas: altíssima rentabilidade e enorme
certeza no curto prazo. A altíssima rentabilidade é a
contrapartida exigida para que, num sistema aberto e
desregulamentado, a riqueza líquida aceite trocar a moeda
melhor (o dólar) pela pior (o real), ou então (o que dá no
mesmo) aceite não realizar o movimento inverso. A enorme
certeza no curto prazo é a contrapartida exigida diante da
incerteza estrutural, de longo prazo, que ronda essas
economias. Por isso, a garantia legal de mobilidade plena,
dada pela abertura da conta capital, vem acompanhada de
outras exigências: governos acocorados, sociedades
desmobilizadas (que aceitem crescentes restrições ao
exercício da soberania e da cidadania), instituições
servis, "disciplina fiscal", Banco Central independente
(de fato ou de direito) e, principalmente, garantia de que
aquela mobilidade legal poderá ser exercida, de fato, a
qualquer momento. Esta última garantia é dada pelo aval do
FMI à política econômica: em caso de crise cambial, o
Fundo aporta os recursos necessários, em moeda forte, para
garantir a fuga ordenada de capitais, com o ônus recaindo
depois sobre o conjunto da sociedade, que pagará esses
empréstimos. Para conceder esse aval, o FMI, como se sabe,
impõe suas condicionalidades. O cerco se fecha (ver, sobre
isso, "As relações do Brasil com o FMI", análise de
outubro de 2003, publicada nesta página).
No artigo "Estado, império e propriedade" (Reportagem,
n. 52, janeiro de 2004), Carlos Medeiros escreveu: "Com a
desregulação financeira, a riqueza da nação e a riqueza
dos residentes nacionais não mais se exercem no mesmo
território monetário regulado soberanamente pelo Estado
nacional. (...) Nos anos 90, em sua maioria, os países
[latino-americanos] praticaram abrangente abertura da
conta capital, privatizaram e desnacionalizaram os
principais setores de infra-estrutura e alteraram os
mecanismos de proteção social. (...) A inserção
internacional pela conta capital significou duas coisas.
Em primeiro lugar, o acúmulo de elevado passivo externo, o
aspecto mais conhecido e mensurado; de outro, a expansão
da riqueza financeira privada denominada em dólares. Essas
transformações estão na base da desmontagem dos mecanismos
de coordenação que caracterizaram o Estado
desenvolvimentista. As assimetrias criadas entre setores
internacionalizados e os voltados para o mercado interno e
a fratura de interesses entre, de um lado, as famílias
ricas e dolarizadas e, de outro, as demais, estão na base
dos movimentos de fuga-reversão-fuga de capitais de
residentes. Esses movimentos, juntamente com as decisões
autônomas dos investidores internacionais, levaram a uma
intensa volatilidade da taxa de câmbio e dos ciclos de
investimento externo, no Brasil e na América Latina em
geral. Os governo responderam à instabilidade cambial,
provocada pelo exercício livre desses direitos de
propriedade, com elevação de juros. Com isso, transferiram
mais renda financeira, potencialmente dolarizada, para o
setor privado e os bancos em particular. Com o corte dos
gastos públicos, afetaram o crescimento dos mercados
internos e do emprego. (...) A subordinação da política
econômica aos mercados financeiros deve-se à força dos
interesses criados pelo rentismo e pela riqueza
dolarizada. A subordinação desses interesses às
necessidades do desenvolvimento da nação constitui hoje,
como no passado, base para qualquer projeto nacional de
desenvolvimento."
9. Carlos Medeiros tem toda razão. Sem controlar os fluxos
de capital não se consegue controlar a volatilidade do
câmbio e o nível das taxas de juros, e sem isso a política
econômica perde graus de liberdade essenciais para o bom
manejo de todas as variáveis macroeconômicas.
Mas, talvez o quadro seja ainda mais grave. O aumento
do peso dos circuitos rentistas e a transformação de todo
capital, potencialmente, em capital estrangeiro destrói a
possibilidade de um desenvolvimento capitalista em bases
nacionais e coloca a sociedade brasileira diante de
disjunções radicais: ou aceita transformar-se, única e
exclusivamente, em um espaço para fluxos de curto prazo do
capital, na forma de um mercado mais ou menos emergente,
conforme sua capacidade de adaptar-se aos ciclos do
sistema internacional; ou, para desenvolver-se com
autonomia, precisará romper com esse tipo de inserção
internacional, o que exigirá realizar profundas reformas
internas e reorganizar as bases sociais de seu sistema de
poder político.
O Brasil precisa decidir se continuará aceitando sua
histórica condição de economia reflexa, buscando em cada
momento a melhor estratégia oportunista para extrair
algumas vantagens dessa condição, ou se deseja construir
um projeto próprio, que dê ao país capacidade decisória
suficiente para dirigir o seu destino. É de soberania que
estamos falando. O governo Lula adotou claramente a
primeira opção – a da adaptação oportunista –, que
corresponde à opção das elites brasileiras, e por isso
lambuza-se com a possibilidade de vender mais soja e
minério de ferro para uma China que cresce. Não percebe a
ironia da história: a própria China é o melhor contra-
exemplo para sua política. Na segunda metade do século XX,
ela recusou o lugar subalterno que o sistema internacional
sempre lhe reservara, fez profundas reformas internas,
alterou seu sistema de poder, pagou o preço associado a
essas decisões e desponta como potência no século XXI.
Antes dela, no século XIX, outro grande país periférico
fez isso: os Estados Unidos. Em vez de adotar a eterna
fuga para a frente oportunista, ambos construíram
projetos, cada um ao seu modo.
O descontrole atual decorre de decisões de natureza
política que vêm sendo tomadas há muitos anos. Chegamos a
um ponto em que qualquer decisão do Estado brasileiro,
para não ser sabotada, precisa receber o aval do sistema
financeiro nacional e internacional, e o preço desse aval,
entre outros, é o de garantir muito maior rentabilidade às
aplicações financeiras feitas aqui. Os efeitos disso sobre
o nosso desempenho econômico e o nosso equilíbrio social
são sabidamente desastrosos. Alterar essa situação exige
uma decisão política de novo tipo que, por sua vez, se
desdobra em escolhas de natureza técnica.
Obter soberania envolve custos. Isso nos remete a outra
questão de fundo implicada na controvérsia sobre controle
de capitais: queremos mesmo nos autogovernar? Se a
resposta for sim, parece óbvio que precisamos criar
instituições, leis, regras e práticas capazes de
reconstruir o espaço monetário nacional e impedir que
movimentações especulativas de capital financeiro
desarticulem nossa economia. É o ponto de partida para um
novo projeto.
PS. No fechamento deste artigo, recebemos a informação de
que o IBGE cometeu um erro metodológico no cálculo do
produto interno bruto (PIB) divulgado no fim de março
deste ano, que apontou um crescimento positivo de 1,7%
sobre o último trimestre de 2003. Refeitos os cálculos,
com as bases consideradas adequadas, chega-se a um
crescimento negativo de 1,2% no mesmo período. Alertado, o
IBGE publicou em sua página na internet uma nota confusa,
quase ininteligível, em que reconhece a necessidade de
proceder à correção de metodologia, mas adia maiores
esclarecimentos para o segundo semestre de 2004. Todos
esperamos que o corpo técnico do IBGE mantenha a tradição
de seriedade que lhe é própria e divulgue para a
sociedade, o quanto antes, os verdadeiros números do
desempenho da economia brasileira, desfazendo todas as
dúvidas.
* Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. Fundação Rosa Luxemburgo. Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira. Página na internet: www.outrobrasil.net. Economia e Política Econômica. Data do fechamento: 6 de junho de 2004
https://www.alainet.org/pt/active/6275?language=en
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