Realidade das ruas e euforia enganosa

26/06/2013
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A “pororoca” que estourou nas ruas das principais cidades brasileiras nos fez acordar de um sonho enganoso e levemente irresponsável. Estávamos tão acostumados a nos queixar de tudo que se passava em nosso país... O complexo de cachorro vira-lata de que falava o saudoso Nelson Rodrigues nos possuía da cabeça aos pés e nos transformava em uma nação de autoestima muito baixa.

A era Lula nos devolveu, sem dúvida, o orgulho de ser gigantes. A economia começou a ir bem, os pobres melhoraram de vida. O carisma do ex- presidente nos deu visibilidade e o bom desempenho econômico de seu governo conquistou para o país credibilidade internacional juntamente com a subida nos índices de crescimento. O discurso da esquerda finalmente vitoriosa após tantas derrotas e que prometia um Brasil mais justo nos enchia de esperança.

Tão embevecidos estávamos que o mensalão e a vergonha que trouxe consigo não conseguiram empanar nossa euforia. Racionalmente a realidade se abria, aterradora, diante de nossos olhos. Mas achávamos que não era tão ruim assim. Afinal, qual é o governo que não tem nenhuma irregularidade?  
 
Nem o pranto desconsolado dos idealistas de primeira hora, como Chico Alencar e Heloisa Helena; nem a saída de alguns dos mais consistentes colaboradores do governo como Frei Betto; nem a queda cheia de dignidade de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente nos convenceram de que em meio a todas as boas e  positivas conquistas havia algo não muito bom nem sadio sendo “cozinhado” lá no fundo.
            
E seguimos em frente. País de vencedores. Ganhamos a Copa, as Olimpíadas. Viajamos como nunca com o dólar baixo. Recursos entrariam em profusão para fazer-nos ainda mais capazes de gerir nosso brilhante futuro.   E reelegemos Lula. E elegemos Dilma. Mas, de repente, nem o carisma de um e a seriedade da outra conseguiram segurar a insatisfação que aflorava como um tsunami e que acabou explodindo nas últimas semanas. Foi como um tiro certeiro em nossa euforia que pretendia resistir e superar até mesmo o julgamento do mensalão, com a mídia batendo diariamente no governo que continuava com a popularidade em alta.
 
 Parece-me que junto a toda a ambiguidade das manifestações – que exibe reivindicações justas e urgentes mesclada com cenas de arruaças e quebra-quebras seguramente encomendados e indisfarçavelmente predatórios – é hora de procurar as lições do acontecido. E parece que algumas lições se evidenciam. 
 
A primeira é que lidar com o poder é o desafio ético mais difícil do mundo. Poder e ética dificilmente conseguem conviver sem concessões falaciosas à dignidade e à equidade. É extremamente desafiante e duro para quem acede ao poder manter os ideais e as promessas anteriores, e não ceder às pressões e às tentações que obnubilam o discernimento. Por isso, estamos apenas engatinhando na democracia que as ruas exibem e pedem. Quando se passa do espaço público e livre para as salas de reuniões dos políticos, onde imperam o conchavo, a mentira, as alianças espúrias, o que se vê é um esquecimento quase total do bem comum para legislar e agir em causa própria e dos interesses comezinhos de uma minoria. Aprender a lidar com o poder é um desafio sempre presente que as ruas tornaram mais claro nestes últimos tempos.
 
A segunda é saber ler nas duas direções o lema que marca o governo do Brasil: “Brasil: um país de todos”. A abrangência da palavra “todos” parece que foi seccionada e passou a ser apenas de uma parte da população. Por um lado, se aplaude, sem dúvida, o fato de privilegiar os mais necessitados, pois só assim se atinge a todos com o benefício de um povo com as necessidades básicas atendidas. E isso o governo fez.  
 
Mas no caminho entre o desejo de fazer e o benefício realmente chegar aos destinatários, existe uma pedra: a corrupção, que desvia recursos, faz misteriosamente desaparecerem verbas que não são utilizadas para as finalidades primeiras e transforma em frustração os melhores projetos. 
 
A lição é bem clara. Não se consegue realmente erradicar a pobreza e a injustiça esmagando a classe média assalariada e dando-lhe a totalidade da conta para pagar. A classe alta continua tão bem como sempre. Nada a atinge.   A classe média, que deveria fazer aliança com as classes populares, ser a mediadora dos projetos que vão beneficiar esta última sente-se lesada.  
 
E então parte para um de dois caminhos: corrompe-se ou protesta. Melhor o segundo, não acham? Os protestos das ruas são em sua maioria compostos por esses trabalhadores assalariados que não aguentam mais a pressão em que vivem. É preciso ouvi-los sem preconceitos. Tomara que todo esse processo nos faça mais conscientes de que em termos de desenvolvimento não existe mágica.   Nem solução que não passe por trabalho duro, muitos anos difíceis e resultados conquistados após árduas batalhas. Euforia é palavra proibida para quem deseja a justiça. Que essa lição das ruas cale fundo em nós.  
    
  
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Centro de Teologia  e Ciências Humanas da PUC-Rio,  é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco. O lançamento será hoje, dia 27 de junho, a partir de 19 horas, na Livraria Timbre, Shopping da Gávea – rua Marquês de São Vicente 52-2º piso. Se você mora no Rio, apareça. Estaremos esperando por você. 
 
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