O chavismo e o novo sentido comum de época
30/07/2013
- Opinión
A política não é, como nas visões simplistas e supostamente realistas, a rígida luta pelo poder entre interesses já constituídos. Pelo contrário, a política começa antes: definindo as posições em torno de interpretações compartilhadas da realidade, definições sobre quais feitos constituem problemas relevantes e propostas de metas comuns. As explicações que geram sentidos compartilhados são discursos que, assim, não apenas descrevem senão constroem a realidade: geram lealdades e determinadas correlações de forças. Os discursos mais estáveis, que conseguem articular setores sociais distintos e amplos em torno de objetivos, emoções, aspirações e mitos comuns, constituem o que chamamos “identidades políticas”: um laço prioritário de solidariedade política, sentido de pertencer a um grupo e mobilização conjunta por objetivos comuns.
Novo relato se cristalizou em torno da figura de Hugo Chávez, como referência intelectual e afetiva, como catalizador de posições
Em tempos de estabilidade política, as instituições, que representam a cristalização de um determinado equilíbrio de forças entre grupos sociais – sempre com a preeminência de algum deles, com aliados secundários e setores subordinados –, satisfazem com êxito a maioria das aspirações e demandas sociais, e dispersam, isolam ou inviabilizam com o mesmo êxito as que confrontam frontalmente a ordem estabelecida. Esta não é apenas uma questão institucional, senão cultural, moral e intelectual: há estabilidade quando uma narrativa fixa as posições, naturaliza a divisão de papéis e bens sociais e produz certezas sobre o presente e o futuro, dando coerência a uma comunidade política. Em termos gramsicanos: gera consentimento entre os governados.
Em tempos de estabilidade política, as instituições, que representam a cristalização de um determinado equilíbrio de forças entre grupos sociais – sempre com a preeminência de algum deles, com aliados secundários e setores subordinados –, satisfazem com êxito a maioria das aspirações e demandas sociais, e dispersam, isolam ou inviabilizam com o mesmo êxito as que confrontam frontalmente a ordem estabelecida. Esta não é apenas uma questão institucional, senão cultural, moral e intelectual: há estabilidade quando uma narrativa fixa as posições, naturaliza a divisão de papéis e bens sociais e produz certezas sobre o presente e o futuro, dando coerência a uma comunidade política. Em termos gramsicanos: gera consentimento entre os governados.
Entretanto, crises orgânicas são produzidas quando não apenas alguns atores, senão o conjunto do quadro institucional e cultural é incapaz de responder à maioria das demandas ou de produzir certezas. Nestes momentos, os consensos que antes organizavam a esfera pública são sobrecarregados, colapsados, velhos e incapazes de gerar confiança de massas. Trata-se do tempo político aberto para a mudança: para a irrupção de novos discursos e novos símbolos, que proponham uma ordenação diferente das lealdades – com frequência polarizando o espaço contra as elites tradicionais e sua arquitetura política – e gerem um novo horizonte histórico.
O surgimento do chavismo e seu impacto na cultura política
A revolução bolivariana tem sido, entre outras muitas coisas, um processo como o descrito: a aparição de um novo relato, em um momento de esgotamento dos tradicionais, que propunha uma ordem diferente. Uma explicação nova do que é a sociedade venezuelana, de quais são seus principais problemas, quem são os responsáveis e as vítimas, com propostas de soluções e de quem está sendo chamado para protagonizá-las. Este novo relato se cristalizou em torno da figura de Hugo Chávez, como referência intelectual e afetiva, como catalizador de posições antes muito diversas, hoje articuladas na principal identidade do cenário político internacional: o chavismo.
O mais importante, o que de maneira mais determinante marca o tempo político atual na Venezuela, não tem nada a ver com o alcance quantitativo desta identidade política, senão com sua capacidade quantitativa de reordenar o tabuleiro. O relato do chavismo não é apenas uma articulação majoritária, uma vez que permeou a cultura política venezuelana de forma transversal, modificando o sentido comum de época: os elementos universais de legitimidade e ilegitimidade, o que é justo ou injusto, as valorações, o que cabe esperar da política e do Estado e a posição de cada um neles, as palavras fortes com as que se pensa – como “Povo” ou “Pátria” – de tal maneira que até os seus adversários devem se deslocar, ainda que seja apenas declarativamente, em direção a novos consensos, o que não deixa de ter efeitos no imaginário coletivo.
Não confunda essa primazia discursiva com liderança política garantida. As estruturas econômicas, culturais, acadêmicas e midiáticas, os poderes privados e as inércias e costumes herdados seguem empurrando em direção à restauração da velha ordem oligárquica e colonial. O movimento popular segue liberando uma complexa guerra de posições no interior do Estado para, ao mesmo tempo, transformá-lo e fazê-lo funcionar eficazmente para os de baixo. Mas a disputa política está sendo travada hoje em um terreno atravessado pelo que ontem eram valores de uma parte e hoje começam a ser solo comum de uma percepção de época, favorável ao protagonismo político plebeu.
Esta transformação intelectual e moral é menos sólido, mas talvez mais profunda – como um junco que é menos robusto que uma árvore, mas que com frequência é mais resistente às mudanças do vento e às tormentas – do que as mudanças institucionais ou jurídicas: o chavismo deslocou o eixo de gravidade da política Venezuela em direção ao fortalecimento dos setores tradicionalmente excluídos e uma valorização da democracia como uma construção popular cotidiana. Esta mudança não é revertida em uma eleição. De certa forma, chegou para ficar.
Esta transformação intelectual e moral é menos sólido, mas talvez mais profunda – como um junco que é menos robusto que uma árvore, mas que com frequência é mais resistente às mudanças do vento e às tormentas – do que as mudanças institucionais ou jurídicas: o chavismo deslocou o eixo de gravidade da política Venezuela em direção ao fortalecimento dos setores tradicionalmente excluídos e uma valorização da democracia como uma construção popular cotidiana. Esta mudança não é revertida em uma eleição. De certa forma, chegou para ficar.
Entre as características centrais do relato chavista, se encontram a centralidade dos setores empobrecidos e a revitalização da política como fortalecimento dos de baixo, a recuperação do orgulho nacional usando um código de soberania e num horizonte latino americanista, a união cívica-militar e o novo papel das Forças Armadas, a prioridade impostergável da redistribuição da riqueza coletiva e a igualdade social como componente essencial da democracia. Hoje estes são conteúdos e aspirações que não podem ser ignorados abertamente por ninguém que aspire seduzir as maiorias na Venezuela. E isso constitui uma vitória cultural.
Como um novo sentido comum de época, trata-se de um espaço discursivo submetido a tensões, contradições e discussões. Grande parte do conflito pela condução cultural e política em sentido revolucionário está hoje relacionada com a capacidade para evitar a fossilização ou o esvaziamento deste relato e desta identidade como um referente universal do passado sem efeitos no presente: a batalha por sedimentar, sistematizar, definir as fronteiras do chavismo e situá-lo em relação aos desafios do presente, renovando o compromisso popular majoritário com o projeto de país que ele havia definido.
- Jesse Chacón e Iñigo Errejón são colaboradores da Fundação GISXXI (Grupo de Investigação Século XXI). Leia o texto original, em espanhol.
Tradução: Kelly Cristina Spinelli
30/07/2013
https://www.alainet.org/pt/active/66104
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