O Movimento Passe Livre

23/01/2014
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Como todos sabem, foi a luta do Movimento Passe Livre (MPL), movimento a favor dos transportes públicos gratuitos e mobilizado contra o aumento da passagem do ônibus, que desencadeou a ampla e impressionante mobilização popular no Brasil em junho passado, colocando centenas de milhares de pessoas, se não milhões, nas ruas das principais cidades do país. Quais lições podemos tirar dessa experiência e qual é o alcance social, ecológico e político da luta pelo transporte gratuito?
 
O MPL foi criado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais. Esses coletivos já existiam havia alguns anos e haviam travado lutas importantes, como a de Salvador, em 2003, contra o aumento da passagem de ônibus. A carta de princípios do MPL (revista e completada em 2007 e 2013) define o movimento como “um movimento horizontal, autônomo, independente, não partidário, mas não antipartidos”. A horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um modo de proceder libertário, que desconfia das estruturas e das instituições “verticais” e “centralizadas”. A autonomia em relação aos partidos significa a recusa de ser instrumentalizado por estes últimos, mas o movimento não rejeita a colaboração e a ação comum com organizações políticas, em especial da esquerda radical. Assim, coopera com associações de bairros populares, movimentos pelo direito à moradia, redes de luta pela saúde e certos sindicatos (metroviários, professores). Vê no transporte gratuito não um fim em si, mas “um meio para a construção de uma sociedade diferente”. Pequena, a rede nunca passou de algumas centenas de militantes, enraizados primeiro nas escolas de ensino médio e mais tarde em certos bairros populares. De sensibilidade anticapitalista libertária, os ativistas têm diferentes origens políticas: trotskistas, anarquistas, altermundialistas, neozapatistas; com uma pontinha de humor, alguns se definem como “anarcomarxistas punks”. Em novembro de 2013, graças ao apoio financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo, o MPL realizou pela primeira vez desde sua criação uma Conferência Nacional em Brasília, com a participação 150 delegados, representando 14 coletivos locais. Algumas resoluções foram adotadas, por consenso, e um grupo de trabalho, composto por representantes dos coletivos, foi encarregado de coordenar as iniciativas, respeitando a autonomia local e a “horizontalidade”. (Obtivemos essas informações graças a dois encontros com militantes do MPL em São Paulo, em novembro de 2013.)
 
O método da luta do MPL também tem inspiração libertária: a ação direta na rua, frequentemente lúdica e “isolante”, ao invés da “negociação” ou do “diálogo” com as autoridades. Os militantes não fetichizam nem a violência nem não violência; uma de suas ações típicas é o bloqueio de ruas, ao som de música, ateando fogo a pneus e “catracas”. O símbolo do MPL é uma catraca em fogo… Devo lembrar que o transporte comum, que originalmente era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades do país, e é de responsabilidade de empresas capitalistas de hábitos mafiosos. No entanto, os prefeitos das cidades têm o controle dos preços das passagens.
 
A inteligência tática do MPL foi ter estabelecido, em primeiro lugar, um objetivo concreto e imediato: contra o aumento das passagens decidido pelas autoridades locais nas principais cidades do país, tanto as administradas pela centro-direita quanto pela centro-esquerda (o PT, que se tornou social-liberal). Rejeitando os argumentos pretensamente “técnicos” e “racionais” das autoridades, o MPL mobilizou milhares de manifestantes, duramente reprimidos pela polícia. Esses manifestantes se transformaram em dezenas de milhares e, depois, em milhões (à custa, é verdade, de certa diluição política), e os poderes locais foram obrigados a, precipitadamente, revogar os aumentos. Primeira lição importante: a luta compensa, é possível ganhar e dobrar as autoridades “responsáveis”!
 
Ao mesmo tempo que travava esse combate prático e urgente, o MPL não deixou um só instante de agitar seu objetivo estratégico: tarifa zero, transporte público gratuito. Para isso, observa a Carte de Princípios, é necessário “retirar o transporte comum do setor privado, pondo-o sob o controle dos trabalhadores e da população”. É o que os militantes do MPL denominam “perspectiva classista” do seu combate. Trata-se de uma exigência de justiça social elementar: o preço do transporte é proibitivo para as camadas mais pobres da população, que vivem na periferia degradada das grandes cidades e dependem dos transportes comuns para trabalhar ou estudar. Essa é uma reivindicação que interessa diretamente aos jovens, aos trabalhadores, às mulheres, aos moradores das favelas, isto é, à grande maioria da população urbana.
 
Mas a tarifa zero é também uma demanda profundamente subversiva e antissistêmica, dentro do espírito do que poderíamos chamar de método do programa de transição. Como observa a Carta de Princípios do MPL, “nossas demandas ultrapassam os limites do capitalismo e põem em questão a ordem existente”. Ela é um belo exemplo do que o filósofo marxista Ernst Bloch chamava de uma utopia concreta. É claro que há cidades, tanto no Brasil como na Europa, em que essa proposta pode ser realizada. Numerosos estudos especializados demonstraram que é perfeitamente possível colocá-la em prática sem sobrecarregar o orçamento das administrações locais. A verdade, no entanto, é que a gratuidade é um princípio revolucionário, que vai ao arrepio da lógica capitalista, pela qual tudo deve ser mercadoria; portanto, é um conceito intolerável, inaceitável e absurdo para a racionalidade mercantil do sistema. Ainda mais que, como propõe o MPL, a gratuidade dos transportes é um precedente que pode abrir o caminho para a gratuidade de outros serviços públicos, como educação, saúde etc. De fato, a gratuidade é a prefiguração de uma sociedade diferente, baseada em valores e regras diferentes daquelas do mercado e do lucro capitalistas. Daí a resistência obstinada das “autoridades”, sejam elas conservadoras, neoliberais, “reformadoras”, centristas ou sociais-liberais.
 
Há ainda outra dimensão da reivindicação do transporte gratuito, que por enquanto não foi suficientemente alegada pelo MPL (mas começa a ser levada em consideração): o aspecto ecológico. O sistema atual, totalmente irracional, de desenvolvimento ilimitado do carro individual, é um desastre tanto do ponto de vista da saúde dos habitantes das grandes cidades – milhares de mortes são causadas pela poluição do ar, diretamente provocada pelo escapamento dos veículos – quanto do ponto de vista do meio ambiente. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás de efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica que são as mudanças climáticas. O carro é, desde o fordismo até hoje, a principal mercadoria do sistema capitalista mundial; consequentemente, as cidades são inteiramente organizadas em função da circulação automobilística. Ora, todos os estudos mostram que um sistema de transportes coletivos eficaz, extenso e gratuito, permitiria uma redução significativa do uso do carro individual. O que está em jogo não é somente a tarifa do ônibus ou do metrô, mas outro modo de vida urbana, simplesmente outro modo de vida.
 
Em resumo, a luta pelo transporte público gratuito é ao mesmo tempo uma luta pela justiça social, pelo interesse material dos jovens e dos trabalhadores, pelo princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios ecológicos. Ela permite formar amplas coalizões e abrir brechas na irracionalidade do sistema mercantil. Nós temos muito que aprender com o MPL…
 
- Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
 
Enviado pelo autor em francês e traduzido para o português por Mariana Echalar.
 
23/01/2014
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