Imprensa e tiranias democráticas

16/06/2014
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A democracia é a forma mais agônica de governo, por ser a mais afeita à polêmica; por ser, portanto, o regime que mais se sustenta numa esfera argumentativa, a arena que sedia as disputas retóricas. E por que a democracia é uma agonística? Porque ágon, no grego, significa luta, mas, sobretudo, a peleja na arte de comover e de convencer.
 
Discursar é buscar sofregamente o fôlego, tal qual um enfermo, face às ânsias da morte, recorre desesperadamente às últimas reservas de ar. Num contexto democrático, é defender aos estertores o que se considera ser o melhor argumento, aquele que irá orientar a melhor ação, por sua vez, voltada para o bem comum.
 
Invadir, vandalizar, quebrar, arrebentar, queimar... Até seriam expedientes democráticos, se esgotadas as instâncias e formas discursivas cobertas pela Constituição, no que ela ampara todos os cidadãos em termos de liberdades: de pensamento, expressão e manifestação, entre outras, sempre sabendo-se que a mesma Carta cobra em responsabilidade o que assegura em direitos.
 
Lamentavelmente, o Brasil tem vivido um tipo de anomia democrática, que consiste em primeiramente barbarizar para, em seguida, traduzir os gestos de agressão em agenda, linguagem, língua e discurso. E por que vandalizar faz sentido coletivamente? Porque esta é uma forma de se ganhar visibilidade massiva; é a garantia de que, imediata e sucessivamente, as cenas estarão na mídia, nas redes sociais e à vista de toda uma população, em parte gratificada com a violência, como se ela zerasse o acúmulo de frustrações, a principal delas, pagar-se imposto de Suécia e ter serviço de submundo.
 
Os quebra-quebras são uma forma não-polêmica de democracia. Sequer se dá chance ao interlocutor de tomar conhecimento do teor das petições. Consta que este ano, no Rio de janeiro, em um só dia foram depredados 300 ônibus, em protesto pela má qualidade do transporte público. Em Brasília, onde o metrô não comporta os seus usuários, um vagão foi depredado exatamente por isso, por circular cheio demais. Em São Paulo, os metroviários atingiram com a sua paralisação os cinco milhões de passageiros/dia. E a Copa do Mundo transformou-se numa oportunista forma de chantagem, até por parte de “servidores” públicos mais bem servidos em matéria de salários.
 
Atraso cultural
 
E o que a imprensa tem a ver com tudo isso? Por que vale o clichê de que ela é sempre a culpada de tudo? Talvez sim, na medida em que ela é por excelência a instituição sede e garante da livre circulação das ideias, argumentos e propostas. Ou, pelo menos deveria ser. Mas, para isso, não basta haver efetivamente liberdade de imprensa, é preciso que haja maturidade cívica e, com ela, saber-se que não à toa os jornais, revistas e emissoras de rádio e TV já foram e ainda são chamados de tribunas.
 
O Brasil é um país de liberdades ainda em construção. A comunicação como um direito (artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) ainda está em fase de consolidação. A primeira Conferência Nacional de Comunicação foi sabotada pela grande imprensa, especialmente pelos concessionários mais poderosos da mídia eletrônica. No Brasil, o maior investimento publicitário é para dar sustentabilidade ao entretenimento de retorno comercial. Educação e Cultura ainda são, na mídia, categorias marginais. E quem delas cuida precipuamente, os veículos “públicos” (leia-se estatais), vivem à míngua. E não têm como sair às ruas, quebrando e vandalizando, para exigir a sua cota.
 
Em síntese, duas atividades ainda estão por ser implantadas, desenvolvidas e consolidadas no Brasil: a primeira, chama-se literacia dos meios (em português de Portugal, ou media literacy, em inglês), ou seja, educação para a mídia; a segunda, a leitura crítica dos meios (media criticism). Falta, entre nós, tanto a educação cívica do cidadão, por meio da qual ele saberia que tem direito à comunicação; quanto a educação cívica dos meios de comunicação de massa, para que tenham ou recuperem a consciência de que eles são espaços públicos, que hospedam uma “esfera pública”, isto é, o âmbito e o contexto que devem perpassar as polêmicas que, numa democracia efetiva, devem sinalizar as decisões em favor do bem comum.
 
Muito se tem escrito nos meios acadêmicos sobre a centralidade da mídia, pois é esse conjunto dos meios que faz a “mediação” do sentido nas produções sociais de uma nação livre, democrática e plural. Ampliar o acesso dos meios de comunicação ao cidadão e à sociedade é uma forma de se construir a própria democracia e a sua legitimidade. Do contrário, sem espaço para os seus argumentos, o público se manifestará sob a sua forma mais empírica e até bruta – a multidão que apedreja, queima e bota abaixo o pouco que já se edificou.
 
Com uma frequência muito estreita, a imprensa brasileira tem divulgado escalas internacionais comparativas em que o Brasil ainda está muito mal localizado. Se a Copa do Mundo fosse, por exemplo, em saneamento básico, o nosso país não chegaria às quartas de final. Em desenvolvimento humano, estamos gravitando na casa dos 60 e pouco desde a década de 1990. Mais recentemente, uma agravante veio se somar a essa conjuntura de atraso cultural: o fenômeno que se avulta, se difunde e ameaça a todos, que é o de se tiranizar a própria democracia com manifestações predatórias de patrimônios e marcadas por interdições de espaços públicos. Frágeis reféns: o povo e o regime que é exercido em seu nome – a democracia.
 
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- Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília
 
Observatório da Imprensa, edição 803, 17/06/2014
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