Mais crescimento, mais democracia, mais cidadania

07/09/2014
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O processo eleitoral que envolve 143 milhões de brasileiros largou com reviravoltas em uma das principais entre as 11 candidaturas à Presidência da República. A campanha efetivamente começou ainda sob o impacto da morte trágica de Eduardo Campos (PSB). Mas, além do mundo das pesquisas, que muitas vezes mais desnorteiam do que indicam, é preciso refletir sobre as ideias em jogo nesta eleição. Quem pode, de fato, fazer com que o país continue na rota do combate à injustiça social? A receita inclui três ingredientes: mais democracia, mais cidadania, mais crescimento. Mas passa pela ocupação dos espaços políticos. Dependendo de quem fizer isso, o Brasil poderá andar para a frente – ou dar ré.
 
“O ponto central é preservar e ampliar as conquistas recentes”, diz a cientista política e historiadora Dulce Pandolfi, professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas) e diretora do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. “Ainda temos níveis altíssimos de concentração de renda, de riqueza.” Ela identifica avanços, mas também aponta riscos de retrocesso. “São escolhas, são opções políticas. Não há garantia de que essa rota não seja desviada.”
 
Para o diretor-geral do Instituto Brasileiros de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Cândido ­Grzybowski, também há motivo de preocupação. “O risco maior é o de retorno a um liberalismo solto, mais feroz do que foi no tempo de Fernando Henrique. E seria muito ruim voltar a um liberalismo ortodoxo”, afirma. Com críticas à atual gestão, ele observa que o governo “pelo menos tentou mitigar um pouco daquele legado neoliberal e retomar um papel mais ativo do Estado”. Mas as ruas precisam ser mais ouvidas – e o cientista político espera que o país “radicalize” a sua democracia, para buscar um novo modelo de desenvolvimento.
 
A presença dos movimentos sociais nas ruas, para Grzybowski, deixou a desejar. Talvez por uma ilusão de que a proximidade com o governo permitisse uma evolução da agenda social. O presidente da CUT, entretanto, considera que a central e os movimentos populares nunca deixaram de pressionar. “O que faltou foi ousadia ao governo para dar mais vazão a demandas do campo democrático e popular. Isso vale para temas localizados do mundo do trabalho, como a redução da jornada e uma solução para o fator previdenciário. E também para enfrentamentos mais amplos, como a reforma política, a reforma tributária e a democratização dos meios de comunicação”, diz Vagner Freitas.
 
O sindicalista ressalta, entretanto, que o único caminho para que esses avanços sejam empreendidos é a continuidade desse processo de mudanças que vem sendo posto em prática desde 2003. “Está em jogo esse processo de inclusão da classe trabalhadora na vida política e econômica do país. Aécio já deixou claro que a equipe econômica de sua campanha representa o retorno à era FHC. E Marina tem sua campanha dirigida por banqueiros e economistas ligados a eles. Virou instrumento da elite econômica do país que tem como prioridade derrotar o projeto que vem sendo executado nos últimos 12 anos. De avanços sociais tremendos, de crescimento movido a promoção de empregos e distribuição de renda.”
 
RBA
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Eduardo Fagnani: oposição defende o mercado. Dulce Pandolfi:
ampliar a presença na política. E Vagner Freitas: faltou ousadia
 
Governabilidade
 
“A principal questão é política, e não econômica. O entrave está no que o PT chama de governabilidade, o que prevê a não ruptura com setores como o financeiro, o agronegócio, as empreiteiras, que são forças que representam o atraso. Houve uma aliança capaz de dividir a classe dominante e ganhar as eleições, fazer coisas boas. Agora precisamos de uma onda que promova direitos universais e cidadania para camadas mais amplas da população. É que os novos movimentos estão querendo”, afirma Grzybowski.
 
O economista Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento, ressalta a importância da “construção coletiva” de um projeto de transformação. No período recente, observa, o Brasil conseguiu abrir brechas, em meio a uma visão neoliberal hegemônica, no sentido de conduzir um processo de política econômica com inclusão social.
 
“Desde os anos 80, anos 90 no Brasil, a visão hegemônica no mundo era o neo­liberalismo: mercado, indivíduo, meritocracia, o esvaziamento da esfera pública, perda de poder dos Estados nacionais. O poder dos mercados financeiros globalizados continua sendo mundialmente forte”, afirma Fagnani, transportando a discussão para o cenário eleitoral. “Os setores que fazem oposição ao governo são defensores desses interesses. Simples assim. O PSDB propõe uma volta ao passado.”
 
Segundo ele, falar, por exemplo, em diminuição da meta de inflação, traria como consequências aumento “alucinado” dos juros, desorganização do mercado de trabalho, redução do investimento social. “O que está em disputa hoje é isso”, diz o economista. “Ajuste com política econômica ortodoxa, você pode rasgar o capítulo ‘política social’.” Principal economista da equipe de Aécio Neves, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga já declarou publicamente considerar alto o atual centro da meta de inflação (4,5%).
 
O passo seguinte, para Fagnani, é continuar insistindo na redução da desigualdade, via mobilidade social, com políticas de transferência de renda. “No campo progressista, é avançar na inclusão pela cidadania social. É impossível fazer isso com uma política de ajuste.”
 
Confiança
 
Segundo o professor João Saboia, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há mais um clima de expectativa desfavorável do que uma situação efetivamente ruim – e, nisso, há certa contribuição da mídia: “Parece que o país está caindo aos pedaços. O que piorou realmente é o crescimento econômico. Houve uma grande desaceleração”, observa. “Acho que a gente tem de melhorar o clima de confiança. Tem mercado interno muito grande, tem espaço para exportação. Não é só o governo. A gente tem potencial muito grande para retomar o crescimento. Não adianta jogar para baixo.”
 
É preciso pressionar, pede Grzybowski. “Com esse governo, temos mais chance de disputar as mudanças necessárias, mas temos de criar dificuldades para o governo. O agronegócio leva o Ministério da Agricultura e a agricultura familiar, o MDA. O Ministério do Desenvolvimento tem o BNDES, mas o Meio Ambiente não tem. A gente conseguiu ganhar governos, mas não conseguiu fazer valer a agenda democrática-popular”, afirma o diretor do Ibase. “Eu sou o primeiro a dizer que este governo alcançou mudanças históricas para o país. Mas o país precisa muito mais, e é possível conseguir. A necessidade de distribuição de riqueza ainda é incontornável. Talvez essa campanha eleitoral ocasione um “susto” que desperte para um novo dinamismo e recomposição das forças mais consequentes.”
 
Segundo ele, crescimento da renda e de oportunidades para os “novos batalhadores” – citando uma expressão do sociólogo Jessé de Souza – ainda não representa cidadania. “É empreendedorismo, e individualismo. Não é universalização de direitos. Eu não queria mais gente tendo condições de ter acesso a um plano privado de saúde. Eu queria o SUS funcionando. É claro que o SUS melhorou, é evidente. Mas não é suficiente. Na busca da universalização, paramos no meio do caminho. Na educação, tem muito mais gente na escola, mas que escola temos? Tem mais gente comprando carros, mas resolve? Ou isso está parando as cidades?”
 
Participação
 
São questões relacionadas à qualidade do desenvolvimento, como propõe Luciane Udovic, da coordenação do Grito dos Excluídos Continental e do Programa Justiça Econômica. “É verdade que a redução da pobreza e da pobreza extrema é significativa, tanto pela transferência direta de renda (Bolsa Família e outros programas) como pelo aumento do salário mínimo e do crédito. Contudo, a situa­ção estrutural de distribuição de renda ainda apresenta poucas mudanças, pois os 10% mais ricos ainda detêm algo como 43% do total da renda, enquanto os 40% mais pobres ficam com 10%. Portanto, é preciso aprofundar não apenas a transferência de renda, mas sim a elevação da massa salarial.”
 
Ela ressalta, ainda, outros dois itens: reforma tributária (“fundamental para a redução da pobreza e da desigualdade”) e redução de juros. “Como grande parte da ‘inclusão’ social dos últimos anos tem sido via crédito para consumo, os juros terminam comendo grande parte do salário das pessoas e assim temos uma financeirização da economia em que todo mundo está envolvido”, comenta.
 
Ao citar relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio que inclui os temas da superação da fome e da desnutrição, Luciane observa que há menções ao sucesso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), mas falta discutir o modelo agrícola “baseado no consumo altíssimo de venenos”, em referência ao uso de agrotóxicos no país. “É algo que tem consequências para a saúde e o meio ambiente. E não podemos apenas fechar os olhos ou limitar a análise ao fato de a fome ter sido (quase) erradicada, algo sem dúvida bom, mas que não deve nos levar a esquecer que a qualidade do regime alimentar também é importante.”
 
É o momento de crescer o investimento na infraestrutura, aponta Eduardo ­Fagnani. “Apesar dos avanços que tivemos, as desigualdades sociais são marcas profundas, têm raízes históricas. São desafios complexos, não são coisas para resolver em quatro anos”, afirma, pedindo uma agenda de desenvolvimento para discutir questões estruturais – e não apenas setoriais. “O campo progressista precisa voltar a pensar nessas questões. Hoje já há uma fragmentação muito grande.” As manifestações de 2013, diz, reforçaram a necessidade de avançar em termos da cidadania social. “E universalizar esses direitos que a Constituição já garante”, acrescenta.
 
Para o economista Claudio Dedecca, também da Unicamp, ainda falta pensamento estratégico. “A sociedade brasileira não se perguntou qual era a estratégia, que país queremos para daqui a dez, 15 anos, e quais são as políticas chave. Estamos carentes de uma visão de médio e longo prazos. Você não pode pedir para as instâncias do governo que tocam o dia a dia para que elas pensem o futuro estratégico.”
 
A cientista política Dulce Pandolfi observa que, além de se planejar pouco, existe a questão da descontinuidade. Para ela, falta também pensar em como ampliar a presença social na política. Nesse sentido, a professora da FGV e diretora do Centro Celso Furtado, além de ressaltar a importância dos conselhos já existentes, elogia a recém-criada política de participação social. “É um projeto altamente participativo. E esse mecanismo será aperfeiçoado.” Luciane, do Grito dos Excluídos, é mais reticente quanto aos espaços de participação existentes. E identifica “movimento fragmentados e agendas decididas po cima”.
 
Um certo desalento captado nas intenções de voto pode ser visto também como um desafio, analisa o diretor do Ibase. “As novas gerações não sabem o que é uma ditadura. E deviam saber que a pior democracia é muito melhor. Nós, militantes por esse Brasil de mais mudanças, não podemos deixar prosperar isso. Falta convencimento para essa gente desalentada de que a participação pode desempatar o jogo”, diz Grzybowski.
 
Dulce também capta certa descrença na sociedade com a política de participação. “Não é gratuita. O Congresso Nacional deixa muito a desejar. E a gente tem no Brasil uma tradição de regimes autoritários. A democracia no Brasil é muito recente. E democracia, como ela diz, é disputa de ideias e funciona sob pressão. “A cidadania é precedente da democracia.”
 
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Colaborou Paulo Donizetti de Souza
 
Reforma política com participação social
 
 
Dorival Elze/CUT
 Plebiscito
Plebiscito levou debate sobre reforma política às ruas
 
Na primeira semana de setembro, aquela em que é lembrada a independência brasileira, o país discutiu a importância da reforma do sistema político. Um plebiscito de valor simbólico – pois oficialmente só pode ser convocado pelo Congresso – coletaria o “sim” de milhões brasileiros à convocação de uma Constituinte exclusiva com objetivo de fazer essa reforma. O movimento toma corpo desde o ano passado, quando reunia 60 entidades de variados setores da sociedade. E iniciou setembro com 373 organizações unidas em torno da consulta. A movimentação prossegue nos próximos meses, até que sejam reunidas condições de apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular.
 
O advogado Ricardo Gebrim, um dos coordenadores da campanha, lembrou que a Constituinte exclusiva foi sugerida em junho do ano passado pela presidenta Dilma Rousseff ao Congresso, após as manifestações populares, e parou no Congresso. “Vamos retomar essa iniciativa.
 
O presidente da CUT, Vagner Freitas, lembra que parte das mudanças para aprofundar a democracia brasileira passa pelo Parlamento. “O Congresso teria de ser um espelho do Brasil. E não é. Empresários, grandes proprietários rurais, bancos, planos de saúde têm o controle, menos de 20% dos parlamentares tem origem nos movimentos de trabalhadores”, diz. “Essa representatividade só vai melhorar se acabarem as doações de empresários a campanhas”, afirma.
 
O secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Pereira, assinala que 95% das doações para campanhas saem de empresas da iniciativa privada. “Precisamos de um sistema mais transparente, que permita ao eleitor ser, de fato e de forma efetiva, o senhor da sua decisão”, defende.
 
“Queremos que o povo ajude a tomar as principais decisões no nosso país”, afirma dom Joaquim Mol, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), lembrando que as mulheres também são mal representadas, com menos de 10% de assentos nos parlamentos do país. Valdir Misnerovicz, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), reforça: “Sem reforma política não serão observados avanços em conquistas para os principais problemas da sociedade”.
 
Freitas observa ainda que se os movimentos sociais imaginam um segundo mandato mais sensível às principais reformas reclamadas, terão de reaglutinar forças. “Empresário não quer reforma política porque quer dominar o Congresso, não quer democratizar a mídia porque quer controlar a circulação de informação, e não quer mais participação social nas decisões de governo. A disputa pelo poder seguirá acirrada, antes e depois da eleição”, acredita o presidente da CUT.
 
Paulo Donizetti de Souza
 
 
- Vitor Nuzzi, da RBA
 
08/09/2014
 
https://www.alainet.org/pt/active/76930
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