Participação social no Brasil: uma larga construção
02/10/2014
- Opinión
A experiência democrática no Brasil é extremamente recente. Considerando-se que o País acumula mais de 500 anos de história, contabiliza menos de 10% deste tempo com regime político democrático. Em 2015, o País completará três décadas de experiência continuada da democracia, o mais longo período de eleições livres de interrupções.
Ademais, por insuficiências e imperfeições do sistema eleitoral brasileiro, ganha importância a campanha por reforma política que amplie a participação popular. Esta, por sinal, somente mais recentemente passou a ser aceita na agenda das políticas públicas, com a ascensão de conselhos e conferências que tornou ativa e altiva a participação popular a partir dos governos Lula e Dilma.
Mesmo assim, o reconhecimento e fortalecimento da participação popular requerem avanços ainda maiores. Para tanto, cabe considerar a trajetória ausente da participação popular, escondida e reprimida pelas forças antirreformistas majoritárias em todo o País.
Este é o objetivo desta contribuição, tornar mais explícita a longa e interditada construção da presença popular no Brasil.
Tradição autoritária
Com mais de cinco séculos de existência, o Brasil explicita continuamente uma inegável condição de autodefesa dos privilegiados segmentos sociais frente ao reclame de mudanças nacionais. O recorrente predomínio das forças antirreformistas exemplifica-se desde o passado de longevo atraso na abolição do trabalho escravo (1888) à enorme demora na universalização do voto de analfabeto, ocorrido somente em 1985.
Recorda-se que até o ano de 1881, por exemplo, os brasileiros com direito a voto eram aqueles do sexo masculino, alfabetizado e portador de determinada riqueza. Na década de 1930 em diante, a cidadania política foi ampliada para homens e mulheres, sem incluir os analfabetos que representavam cerca de 2/3 da população adulta.
Idêntico sentido prevaleceu no acesso aos direitos sociais, ainda que entrecortado pelos testes de meios para sua efetividade. Em 1943, por exemplo, quando garantias sociais e trabalhistas foram estabelecidas no país (Consolidação das Leis Trabalhistas), o acesso somente se tornou possível aos empregados assalariados formais e urbanos, que representavam menos de 15% dos ocupados na década de 1940 ou menos de 50% em 1980.
No caso da cidadania civil mantiveram-se restrições ao pleno direito de propriedade, especialmente a fundiária que desde 1850, com a criação legal do mercado de terras no Brasil, predominou a ilegalidade da força de grileiros ante a dos posseiros. Nas cidades, a ilegalidade se tornou quase uma norma em avassalador processo de urbanização a partir da década de 1950, sobretudo com a formação das periferias nos grandes centros metropolitanos.
Na mesma medida, a resistência à incorporação plena das distintas raças e suas composições ao conjunto do corpo da nação. Pela Constituição do Império, em 1824, por exemplo, todos os residentes passaram a ser formalmente considerados cidadãos, desde que nascidos em terra brasileira, querem livres ou libertos.
Na prática, contudo, a prevalência de monopólios nos direitos sociais impossibilitou a universalização do acesso à educação, saúde, assistência e previdência, consagrando a efervescência da força da elite branca. Isso se configurou mais expressivo pelas diferentes regionalidades componentes da formação dos brasileiros, como sertanejos, caipiras, entre outros que apesar de formalmente integrados, conviveriam com restrições e limites derivados do padrão seletivo, parcial e desigual de inclusão social no Brasil.
Os regimes autoritários se mostraram herdeiros do sentido metropolitano da exploração colonial estabelecida pela Coroa portuguesa desde o século 16. Inicialmente relacionado às influências do poder das forças estrangeiras na configuração interna da dominação das elites.
Até o século 20, por exemplo, as forças externas expressavam fundamentalmente o poder dos impérios. Tanto assim que o próprio surgimento do Estado nacional, com a instalação do jovem império em 1822 no Brasil, condicionou o estreito caminho passível entre a decadência do império português e a pujança do império britânico. Sem discordar da Coroa portuguesa, as elites nacionais acenavam cada vez mais com a proximidade submissa à hegemonia britânica.
Na sequência, a experiência autoritária se fez valer pelo exercício da violência do poder interno das oligarquias regionais frente aos riscos da organização dos movimentos populares. Nesse sentido as elites se contrapuseram a qualquer forma que permitisse a sustentação da organização do povo ao longo do tempo. Participação popular somente no estrangeiro.
Da Inconfidência Mineira, passando pelas guerras de Canudos e do Contestado, às revoltas regionais do século 19, a força do monopólio da violência policial foi empregada sem limites. O fundamental, a propósito, era impedir a organização popular e, sobretudo, a sua legitimidade.
Apesar disso, as elites internas negaram qualquer estabelecimento de registro legal divisor de raças, como havido, por exemplo, na África do Sul e Estados Unidos, ou mesmo de estamento social, conforme observado na Índia. Mas isso não significou, todavia, a democratização das raças.
Da mesma forma, a aversão ao povo organizado pelas elites possibilitou aceitar uma norma formal e geral de cidadania (brasileiro é aquele nascido e liberto, independente da raça que possui a partir de 1824). Esta norma, porém, não impediu que fossem construídas sofisticadas teias de caráter antirreformista frente à possibilidade de acesso aos direitos civis, políticos e sociais para toda a população.
Assim, assistiu-se ao estabelecimento de um padrão seletivo e gradual de incorporação das massas populares aos direitos de efetiva cidadania com o passar do tempo. A trajetória autoritária das elites manteve o sentido da sustentação tanto da legalização de privilégios para poucos como da legitimação das desigualdades para muitos, na medida em que as forças do antirreformismo preservaram ao máximo a monopolização das oportunidades geradas.
A força do antirreformismo
Diante de quase meio milênio de predomínio da sociedade agrária no Brasil, as tentativas de mudanças institucionais foram mediadas por elites com forte apelo antirreformista. A começar pela construção do Estado nacional inserido em processo mais amplo de alterações institucionais desencadeadas na Europa e no Brasil.
Menos que ruptura, a transição da antiga colônia (por mais de três séculos) para o Estado nacional aconteceu sem descontrole da Metrópole, cujo primeiro monarca do jovem império foi Pedro I, quando ele era Pedro IV na linha sucessória da Coroa portuguesa. Neste aspecto, as recomendações de integração racial defendidas, inicialmente por Frei Caneca e José Bonifácio e que relacionavam o fim da escravidão com a distribuição de terras, se perderam em meio ao fechamento do circuito antirreformista.
O resultado foi a permanência de praticamente intacto o conjunto da população submetido à condição de intocável pelas políticas públicas. O antirreformismo se manteve como marca da expansão da renda compartilhada com poucos, enquanto ao Estado fundamentava-se no patrimonialismo e financiamento assentado na tributação sobre os pobres.
Também em duas mudanças institucionais de grande relevância, a abolição da escravatura (1888) e o surgimento da República (1889), as reformas defendidas por abolicionistas como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, entre outros, ficaram presas aos embates dos salões de onde eram defendidas. A inclusão dos ex-escravos em demandas ocupacionais existentes ou mesmo a redistribuição das terras visando à democratização da propriedade fundiária não aconteceram, posto o enorme obstáculo exercido pelas forças antirreformistas de sempre.
Sem a incorporação dos analfabetos ao sistema político, a Velha República (1889–1930) terminou por reproduzir as mesmas regras do jogo derivadas do Império, cujos interesses privilegiados eram os dos ricos (proprietários rurais, comerciantes, industriais e profissionais liberais). Ao mesmo tempo, a prevalência das políticas econômicas e sociais liberais que se estenderam para o império manteve novamente um enorme contingente de intocáveis pelas políticas públicas.
Na transição para a sociedade urbana e industrial, especialmente a partir da Revolução de 1930, abriram-se novas perspectivas para o salto no processo de inclusão social no Brasil. Ademais de se tratar do processo de modernização capitalista liderada pelo estancieiro Getúlio Vargas, o movimento contra reformas exerceu, em vários momentos históricos, verdadeiros bloqueios antidemocratas às alterações institucionais necessárias à universalização das políticas públicas, como a contrarrevolução de 1932, em São Paulo, o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964.
Chama a atenção também o fato de que nos casos de passagem dos regimes autoritários (Estado Novo, 1937-45 e ditadura militar, 1964-85) para a democracia não se registram rupturas profundas. De maneira geral, as transições políticas se mostraram articuladas e sob o controle compartilhado dos antigos regimes autoritários.
Exemplo disso foi a primeira eleição presidencial ocorrida após o fim do Estado Novo, cujo presidente eleito foi o general Eurico Gaspar Dutra, em 1945, que havia sido o ministro da Guerra de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945). Ademais, percebe-se a força da transição para o regime democrático em 1985, quando o primeiro presidente civil foi José Sarney, presidente do Arena e do PDS (partidos de apoio e sustentação da ditadura militar) entre 1979 a 1984.
Como não houve eleição por voto popular, o poder das forças antirreformistas derrotou a campanha por eleição direta em 1984 e estabeleceu pelo Colégio Eleitoral a vitória da chapa Tancredo Neves/José Sarney pelo PMDB. Na morte de Tancredo, Sarney, na qualidade de vice-presidente, assumiu o primeiro governo civil entre 1985 e 1990.
Na retomada do regime democrático desde 1985, parcela da sociedade se manteve submetida à trajetória do padrão seletivo e gradual de incorporação às políticas públicas. Somente pela nova Constituição Federal de 1988, o quadro geral começou a mudar.
Reformismo adiado
Pela perspectiva das forças políticas que desde a Revolução de 1930 conformaram nova maioria dirigente, responsável pela implantação e sustentação do projeto nacional-desenvolvimentista, constatam-se duas importantes tentativas de realização de um conjunto de reformas progressistas no Brasil. Para isso, a construção de blocos de apoio social e partidário voltados ao resgate de parcela significativa daqueles considerados por intocáveis pelas políticas públicas.
De um lado, o movimento das reformas de base que esteve em alta no início da década de 1960. De outro, o programa Esperança e Mudança, que esteve presente no movimento popular das Diretas Já para escolha do presidente da República na primeira metade dos anos de 1980.
Destaca-se que desde a década de 1950, o aprofundamento do movimento de urbanização se deu apoiado por enorme fluxo migratório de parcela considerável da população do campo. Diante disso, as grandes cidades passaram a conviver com sinais claros do colapso de suas infraestruturas (transporte, habitação, carestia, eletricidade, telefonia, entre outros) e da mobilização social crescente em torno dos temas populares associados à aceleração da inflação.
A polarização social eivada da ausência do planejamento urbano tornou mais complexa o enfrentamento do próprio subdesenvolvimento num país que havia começado a operar sob o regime democrático mais amplo somente a partir de 1945. De um lado, o movimento contrário à carestia do custo de vida para as classe populares resultava do crescente preço da habitação e dos alimentos praticados nas grandes cidades.
No caso da moradia, a pressão por imóveis era elevada diante da expansão das ocupações urbanas que atraíam levas de migrantes, enquanto a especulação imobiliária dominava nos centros tradicionais das cidades. Sem mudar os interesses imobiliários, o encaminhamento adotado em geral foi o de levar a população trabalhadora migrante para regiões cada vez mais distantes dos ricos centros urbanos.
O desenvolvimento das periferias nas grandes cidades ganhou inegável impulso, possibilitando definir, inclusive, o padrão de segregação social estabelecido entre os incluídos e os intocáveis pelas políticas públicas. Nas regiões periféricas das cidades, em geral despossuídas de legalidade, os posseiros terminaram sendo impingidos à autoconstrução de suas moradias, mesmo deslocados de infraestrutura básica como água potável, saneamento, eletrificação, estradas, transportes, escolas, postos de saúde, entre outros.
Além disso, empreendimentos imobiliários foram surgindo na forma de ondas especulativas estabelecidas na medida em que a infraestrutura era levada pelo setor público para áreas mais distantes do centro das cidades. O custo crescente dos imóveis (próprios ou alugados), absorvendo maiores parcelas do orçamento das famílias, sobretudo das mais pobres, era expressão direta disso.
Ao mesmo tempo, a saída de parte importante da população do meio rural elevou consideravelmente a demanda por alimentos nas cidades. O setor agropecuário, neste sentido, registrava dificuldades para atender plenamente à crescente demanda de alimentar todo o país.
Assim, o preço dos alimentos pressionava ainda mais o custo de vida em geral, sobretudo o da população pobre. Mesmo com a industrialização de alimentos e o avanço do setor de produção alimentar, a mudança nos preços reativos entre alimentos in natura e manufaturados não era plenamente absorvida pelas classes populares.
As mobilizações sociais, expressas à época por crescentes greves, passeatas, marchas, entre outras manifestações, apresentavam cada vez mais o conteúdo político, embora a base do desconforto fosse de natureza socioeconômica. A estrutura fundiária (rural e urbana) foi identifica como algo a ser enfrentado por novas políticas públicas.
Na estrutura partidária havia aqueles mais próximos dos anseios populares, como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Comunista (PC) – embora proscrito à época – e, sobretudo, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que comandara o governo federal com Getúlio Vargas (1951-54) e exercera tanto a vice-presidência da República nos governos JK (1956-60) e Jânio Quadros (1961), como novamente a Presidência da República (1961-64) com João Goulart (Jango).
Diante disso, o Brasil viveu uma intensa e tensa disputa nacional logo no início da década de 1960, tendo sob comando do presidente Jango as chamadas reformas de base. O programa reformista de então apontava para o encaminhamento progressista de questões que até então não haviam ainda sido tratadas abertamente no interior da maioria política que vinha, desde os anos de 1930, sustentando o projeto nacional-desenvolvimentista.
De acordo com a mensagem do presidente João Goulart enviado ao Congresso Nacional durante a abertura dos trabalhos legislativos, logo no início de 1964, as reformas de base consideravam um universo amplo de mudanças estruturais. O reformismo nacional desenvolvimentista contava com a determinação de lançar novas políticas públicas capazes de incluir o conjunto populacional definido por intocáveis.
Desta forma, a orientação era a mobilização dos intocáveis para a sua incorporação na reorganização da base de apoio social e político das reformas de base. Para isso, a proposta de democratização do acesso à propriedade fundiária, por meio da reforma agrária visava garantir maior quantidade de terras voltadas à produção agropecuária e, assim, consolidar o segmento da agricultura familiar, compensando em parte o poder político e econômico dos proprietários rurais.
Na época também emergiu o entendimento governamental de que parcela da constante alta nos preços dos produtos alimentícios nas cidades derivava da oferta quase inelástica da produção agropecuária dominada pelo latifúndio. Do mesmo modo, o crescente custo nas despesas de habitação para as famílias de baixa renda revelava o poder da especulação imobiliária nas cidades, responsável pela expulsão de trabalhadores dos centros urbanos para as periferias.
No ano de 1960, por exemplo, cerca de 1/3 dos brasileiros residia em habitações alugadas, enquanto parcela majoritária das terras agriculturáveis permanecia sob o domínio improdutivo muitas vezes do grande proprietário rural. Diante disso, a defesa da realização das reformas agrária e urbana tinha por objetivo incorporar parcela significativa dos intocáveis desprovidos do acesso à propriedade e elevar a produção agropecuária.
Por outro lado, a inclusão dos intocáveis na cidadania política passava pela mudança no sistema político, capaz de permitir o voto dos analfabetos e de militares situados em patentes inferiores. Na época, cerca de 40% da população adulta eram analfabetos e, por isso, estavam excluídos do processo eleitoral.
Por fim, ainda, a reforma social, identificada pelas medidas de políticas públicas que visavam ampliar o acesso dos intocáveis pelas políticas sociais e trabalhistas. Nesse sentido, a incorporação da população ocupada no meio rural ao sistema de proteção estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho. Em plena década de 1960, a metade dos brasileiros encontrava-se ainda no campo e em condições muito precárias de vida e trabalho.
Além da inclusão nas políticas sociais e trabalhistas, o acesso à CLT no meio rural abriria a possibilidade de organização dos trabalhadores tendo por referência o reconhecimento e financiamento oficial do sindicalismo praticamente inexistente no campo até então. A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, apontava justamente para esta perspectiva.
Por isso as reformas de base concentraram-se na incorporação dos direitos civis (propriedade urbana e rural), políticos (voto aos analfabetos e sindicatos aos ocupados no campo) e sociais (difusão da CLT no campo) aos considerados hoje intocáveis. Ademais, a pauta das reformas envolvia também a educação, a tributação, a administração pública e bancos.
Como se sabe, o golpe militar em abril de 1964 confirmou, novamente, a força do antirreformismo. Mais uma vez, a universalização dos direitos foi postergada.
Várias das reformas propostas originalmente pelo movimento progressista anterior (reformas de base) terminaram sendo adotadas pelo autoritarismo vigente por 21 anos (1964-85), embora sob o ritmo da modernização econômica com a exclusão social. Sob o domínio do conservadorismo, a maioria política que sustentava o projeto nacional desenvolvimentista impulsionou o mais rápido crescimento econômico que manteve significativo contingente de brasileiros na condição de pobreza e submetido à enorme desigualdade de renda, riqueza e poder.
Em função disso, as condições de universalização dos direitos de cidadania (civil, político e social) estavam amparadas na democratização da propriedade, na ampla participação e representação política e no acesso ao sistema de proteção e promoção social e trabalhista. As reformas de base ficaram para trás, assim como os brasileiros circunscritos à condição de intocáveis das políticas públicas tiveram que aguardar mais tempo para a sua inclusão.
Apesar disso, a reação organizada pelos progressistas se manteve acesa. A partir da segunda metade da década de 1970, uma nova convergência política e social passou a ganhar gradualmente maior importância, mesmo sob o domínio do regime militar.
Berço recente da participação popular
A partir da retomada dos movimentos sociais descortinados por associações estudantis, de trabalhadores e de moradores e bairros, a luta pela redemocratização do País foi gradualmente acumulando forças a partir da década de 1970. O forte ritmo de expansão econômica do regime militar gerou ascensão social de quase toda a sociedade, embora mais forte nos estratos superiores da pirâmide distributiva nacional.
Mesmo que positivo, dada a ampliação do nível de emprego e da renda domiciliar pelo acréscimo de mais membros das famílias ocupados, a maior parte dos trabalhadores terminou sendo exposta à segregação territorial. Ou seja, a explosão das periferias nas grandes cidades, com habitações irregulares e desprovidas das condições adequadas de urbanidade (água potável, saneamento, iluminação, estrada, transporte, posto de saúde, escolas, entre outras).
Das periferias surgiu importante movimento de organização da base mais pobre da população, tendo as associações de moradores e de bairros desenvolvido forte atuação em torno da redemocratização nacional e da redefinição de políticas públicas. Também pelo movimento de oposição sindical e de fortalecimentos dos dirigentes autênticos em torno do fim do arrocho salarial e do sofrimento dos trabalhadores em função do acordo com o FMI no início da década de 1980, a luta pelo retorno do regime democrático avançou ainda mais.
De resto, a reconfiguração do sistema partidário representada pela transição do bipartidarismo (Arena e MDB) para o multipartidarismo (PDS, PFL, PP, PMDB, PDT, PCdoB, PT, PTB, entre outros) tornou possível a convergência entre movimentos sociais e agremiações partidárias em torno de um novo programa de reformas. Na primeira metade da década de 1980, o documento Esperança e Mudança lançado pelo PMDB apontava para um conjunto necessário de reformas progressistas a ser conduzido pela maioria política que vinha desde os anos 1930 sustentando, em maior ou menor medida, o projeto nacional desenvolvimentista.
As reformas propostas à época respondiam, em parte, à crise da dívida externa (1981-83) e às políticas recessivas adotadas, bem como à incorporação de parcela dos intocáveis pelas políticas públicas. A visão antiliberal e nacionalista se destacava na medida em que buscava resgatar o padrão de financiamento de médio e longo prazos, bem como reorganizar a estrutura produtiva, com forte ênfase na construção de grandes grupos industriais nacionais.
A reforma do Estado se constituiria fundamental, tendo em vista o foco nas políticas de distribuição de renda, com a elevação do salário mínimo e a alteração do sistema de proteção social. A criação de uma rede descentralizada de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS), por exemplo, apontava para o fim do acesso à saúde para somente aqueles com emprego assalariado formal no meio urbano.
Para isso, a defesa também da reforma agrária e tributária progressiva tratava de fazer avançar os direitos civis de propriedade e de justiça social. A construção de uma nova política econômica e social consistiria na manutenção do projeto nacional desenvolvimentista dirigido pelas forças progressistas.
Com a derrota do movimento em torno das Diretas Já, os avanços esperados pelo retorno ao regime democrático permaneceram truncados. Da mesma forma, a gravidade da crise econômica, não obstante a maioria parlamentar do PMDB (1985-90), constrangeu a efetivação do programa de reformas Esperança e Mudança, o que consagrou, mais uma vez, a força do antirreformismo no Brasil.
Apesar da pressão popular derivada do movimento social em franca reorganização (sindicatos de trabalhadores, associações estudantis, organizações de moradores e bairros, entre outras) e dos partidos progressistas, o enfrentamento em novas bases dos intocáveis no País foi condicionado pela reafirmação do pacto conservador. Isso porque nem mesmo a maioria política que sustentava o projeto nacional desenvolvimentista se manteve frente ao ciclo de alta inflação, da desorganização das finanças públicas, do baixo dinamismo econômico e da desaceleração do emprego determinados pelas políticas econômicas de ajuste exportador.
Ao mesmo tempo, a passagem para a normalidade democrática ocorreu sem que os protagonistas e operadores do regime militar fossem interpelados a respeito das decisões e consequências de 21 anos de autoritarismo e governo de exceção. A expressão “transição transada” indicou o quanto a defesa dos setores arcaicos da sociedade havia se se convertido em força traduzida pelo tradicional antirreformismo brasileiro.
Por fim, a expectativa gerada pelo predomínio eleitoral do PMDB nas eleições de 1986 terminou sendo postergada frente ao fracasso do Plano Cruzado em combater a inflação e relançar a economia em novas bases para a inclusão social. A resposta política, em consequência, se deu por meio da desestruturação da antiga maioria política que sustentava o projeto nacional-desenvolvimentista.
Na sequência, a vitória eleitoral de Collor de Mello para presidente da República em 1989 interrompeu o longo ciclo urbano e industrial iniciado ainda na década de 1930. A ascensão do neoliberalismo impulsionado pelos governos dos anos de 1990 resultou da formação de maiorias políticas de caráter pontual, mais especificamente associada a momentos de importantes decisões, como no apoio ao Plano Real, a vitória em dois turnos eleitorais do presidente FHC (1994 e 1998) e as privatizações no setor produtivo estatal.
O abandono do projeto nacional-desenvolvimentista apontou desde então para o maior alargamento do segmento compreendido por intocáveis pelas políticas públicas. Seja pela explosão do desemprego e das ocupações informais, seja pela desconstrução de importantes políticas públicas, predominou a crença de que as forças do mercado seriam as próprias responsáveis pelo melhor processo de expansão econômica e de inclusão social.
O balanço da experiência neoliberal foi a repressão econômica e social. A ausência de crescimento econômico sustentado aconteceu simultaneamente à expansão dos problemas sociais como o desemprego e as ocupações precárias.
Superação do atraso neoliberal
Com o Plano Real desde 1994 assistiu-se à derrocada do último bastião dos movimentos políticos e sociais identificados com o projeto nacional desenvolvimentista. Logo o aprofundamento do processo de abertura comercial, financeira e produtiva introduzido no governo Collor de Mello, em 1990, terminou por desorganizar o sistema nacional de produção de manufaturas, com sua exposição aos limites da concorrência internacional, sem deter condições isonômicas de competição.
Os estados pertencentes às regiões Sul e Sudeste foram os mais penalizados, justamente por concentrarem a maior parte do parque industrial do País. Ao mesmo tempo, com o Plano Real, a capacidade dos governadores dos estados de responder por meio de política pública própria foi solapada em função do neoliberalismo na centralização da política fiscal e monetária no plano federal.
No âmbito da política fiscal, os governo estaduais foram submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal no gasto, ao mesmo tempo que absorveram a negociação da dívida pública com a imposição de pesado encargo sobre seus orçamentos, sem a possibilidade de usar mecanismos tradicionais de endividamento até então existentes.
Os bancos comerciais e de desenvolvimento pertencentes aos governos estaduais foram privatizados ou federalizados, esvaziando ainda mais a capacidades de fazer política de defesa e apoio ao setor produtivo. Ou seja, a maior centralização das políticas fiscal e monetária pelo governo federal minou o poder dos governos estaduais, inclusive no que concerne à determinação da política interna do partido, bem como na aglutinação de suas bancadas no Congresso Nacional.
Para, além disso, a força dos governadores que estava associada à capacidade de definição das redes de apoio no interior de cada estado em prol da eleição dos parlamentares (estaduais e federais) foi contida pela dimensão e amplitude das políticas do governo federal. Para aqueles parlamentares reunidos em torno da base de apoio do governo federal, o fortalecimento nas campanhas eleitorais se apresentaria mais importante e efetivo do que vinculado ao poder dos governadores.
Em função disso tudo, a sustentação política ao projeto nacional desenvolvimentista se esvaziou quase que completamente. Os governadores perderam capacidade de maior interferência no jogo da política nacional, assim como a crescente centralização no plano do governo federal e sua maioria parlamentar se distanciou de qualquer sentido nacional desenvolvimentista e das reformas progressistas.
No contexto nacional de regressão econômica e social estabelecida durante os governos neoliberais, com o decréscimo da participação do País na economia mundial (do 8º posto em 1980 para o 13º em 2000), o aumento do desemprego (2,7% para 15% da força de trabalho entre 1980 e 2000) e a redução na parcela do rendimento do trabalho na renda nacional (de 50%, em 1980, para 42% em 2000), a Frente Brasil Popular venceu as eleições nacionais no ano de 2002, após três participações consecutivas do então candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Adiciona-se a isso, a fragmentação social e política do País gerada por anos de hegemonia neoliberal e o poder articulador das forças do antirreformismo, percebe-se o estabelecimento de ousadia equivalente à natureza leninista para administrar o Brasil em favor das classes populares, especialmente do segmento identificado por intocáveis.
Inicialmente, a convivência – por certo tempo – com os fundamentos da política econômica herdada permitiu aproveitar do fluxo maior de comércio externo para fazer valer o novo regime de crescimento da produção com distribuição da renda e redução da pobreza e desigualdade social. Assim, o País diminuiu a taxa de inflação para menos de 6% (em 2002 era de 12,5%) sem comprometer o ritmo de expansão econômica e social.
Em virtude disso, o Brasil voltou a crescer mais fortemente com a multiplicação por quatro do produto nacional, com a geração de mais de 21 milhões de empregos formais desde 2003. A melhora social se deu também pela significativa queda na pobreza, com a saída de mais de 36 milhões de pessoas da condição de insuficiência de renda para viver.
Também vale acrescentar a elevação acumulada no rendimento do conjunto das famílias em 35% no idêntico período de tempo, sendo duas vezes maiores para o segmento de menor renda. A ampliação da inclusão nos bancos e no crédito permitiu trânsito de cerca de 70 milhões para 120 milhões de pessoas que passaram a ter acesso ao sistema bancário, representando o aumento da massa de crédito que passou de valor equivalente a 24% do PIB, em 2002, para 55% do PIB, em 2013.
A poupança obtida com contenção das despesas com juros serviu no redirecionamento dos recursos públicos para o crescimento dos investimentos e do gasto social. Enquanto a participação dos investimentos do setor público no PIB passou de 2,6% para 4,4% entre 2002 e 2013, os recursos direcionados à Educação subiram de 4,8% para 6,1% do PIB no mesmo período de tempo.
As despesas com enfrentamento da pobreza cresceram e viabilizaram o ingresso de parte da população de baixa renda nos mercados de consumo de massa. No mesmo sentido, a reconstrução do Estado degradado pelo neoliberalismo implicou aumentar o emprego público e recuperar remunerações, sem que isso significasse comprometimento relativo maior dos gastos com funcionalismo público federal, uma vez que passaram de 4,8% do PIB para 4,2% entre 2002 e 2013.
No balanço geral, o saldo do governo federal desde 2002 indicou o reposicionamento do Brasil no mundo, a recuperação do ritmo da expansão econômica nacional e a reconfiguração da estratificação social com rebaixamento da pobreza, desemprego e desigualdade de renda. Para isso, a formação de uma nova maioria política se mostrou, desde o princípio do processo eleitoral, em 2002, uma das peças fundamentais.
Para além da base política identificada com movimentos sociais e políticos progressistas, houve a necessidade de ampliar também a sustentação de apoio ao processo de mudanças em todo o País. O surgimento de um novo ator se mostrou estratégico.
Foi neste sentido que a abertura das políticas públicas à inclusão dos até então considerados intocáveis apontou o novo caminho pelo qual o apoio político-eleitoral se mostrou viável para a sucessão de vitórias acumuladas desde 2002. A participação política dos chamados intocáveis, concomitante com a base organizada, suavizou, em parte, os obstáculos do antirreformismo vigente em todo o País.
O acúmulo de forças no campo democrático viabilizou a recente inflexão progressista que historicamente as lutas travadas pelos trabalhadores organizados e parcela significativa dos intocáveis por políticas públicas buscavam realizar. A tensão em torno da habitação, evidenciada, por exemplo, pelos moradores pobres, favelados e demais remediados nas regiões metropolitanas das grandes cidades, reverteu-se em política nacional pela moradia popular.
Resumidamente, ressalta-se que desde a implementação do programa de habitação popular (Minha Casa, Minha Vida), em 2009, a construção de três milhões de moradias foram contratadas pelo governo federal, com quase 1,5 milhão entregues aos segmentos pauperizados da população. A atenção às demandas e ao atendimento por parte das políticas públicas apropriadas pelo conjunto heterogêneo da população, especialmente os intocáveis, consolidou no governo federal a vitória eleitoral de três mandados presidenciais que continham programas similares.
Este foi, até o presente, a primeira vez que no regime democrático, um programa de governo com unidade política e programática se manteve por tanto tempo. Nos governos do Estado Novo (1937-45) e da ditadura militar (1964-85) houve também certo registro de unidade programática por algum tempo, embora sem expressão democrática.
Para além da novidade em termos longevos da unidade programática governamental, identificou-se a constituição de um novo personagem político pelo qual se encaixou parte importante das políticas econômicas e sociais de inclusão. Não obstante os constrangimentos advindos das forças reunidas em torno do antirreformismo no Brasil, o segmento até então considerado intocável pelas políticas públicas assumiu crescente condição de força política.
Em seu benefício, a redução da pobreza e desigualdade, bem como a melhora ocupacional e habitacional, permitindo sair de sua condição anterior e assumir a posição de novo personagem político com importância relativa no enfrentamento das forças do antirreformismo. Em virtude disso que a perspectiva do desenvolvimento em bases inéditas passou a ganhar destaque nos debates interpretativos do Brasil atual.
Não obstante a ênfase ressaltada a partir de distintas forças dinâmicas da sociedade e da economia do País emergiram conceitos pertinentes como o novo-desenvolvimentismo e o social-desenvolvimentismo que procuram apontar o curso atual divergente dos projetos anteriores perseguidos pelo nacional-desenvolvimentismo e neoliberalismo. As mudanças na trajetória brasileira a partir do início do século 21 registram o conjunto de escolhas realizadas por sucessivas vitórias eleitorais programáticas defendidas pelos governos da Frente Brasil Popular.
- Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.
Ademais, por insuficiências e imperfeições do sistema eleitoral brasileiro, ganha importância a campanha por reforma política que amplie a participação popular. Esta, por sinal, somente mais recentemente passou a ser aceita na agenda das políticas públicas, com a ascensão de conselhos e conferências que tornou ativa e altiva a participação popular a partir dos governos Lula e Dilma.
Mesmo assim, o reconhecimento e fortalecimento da participação popular requerem avanços ainda maiores. Para tanto, cabe considerar a trajetória ausente da participação popular, escondida e reprimida pelas forças antirreformistas majoritárias em todo o País.
Este é o objetivo desta contribuição, tornar mais explícita a longa e interditada construção da presença popular no Brasil.
Tradição autoritária
Com mais de cinco séculos de existência, o Brasil explicita continuamente uma inegável condição de autodefesa dos privilegiados segmentos sociais frente ao reclame de mudanças nacionais. O recorrente predomínio das forças antirreformistas exemplifica-se desde o passado de longevo atraso na abolição do trabalho escravo (1888) à enorme demora na universalização do voto de analfabeto, ocorrido somente em 1985.
Recorda-se que até o ano de 1881, por exemplo, os brasileiros com direito a voto eram aqueles do sexo masculino, alfabetizado e portador de determinada riqueza. Na década de 1930 em diante, a cidadania política foi ampliada para homens e mulheres, sem incluir os analfabetos que representavam cerca de 2/3 da população adulta.
Idêntico sentido prevaleceu no acesso aos direitos sociais, ainda que entrecortado pelos testes de meios para sua efetividade. Em 1943, por exemplo, quando garantias sociais e trabalhistas foram estabelecidas no país (Consolidação das Leis Trabalhistas), o acesso somente se tornou possível aos empregados assalariados formais e urbanos, que representavam menos de 15% dos ocupados na década de 1940 ou menos de 50% em 1980.
No caso da cidadania civil mantiveram-se restrições ao pleno direito de propriedade, especialmente a fundiária que desde 1850, com a criação legal do mercado de terras no Brasil, predominou a ilegalidade da força de grileiros ante a dos posseiros. Nas cidades, a ilegalidade se tornou quase uma norma em avassalador processo de urbanização a partir da década de 1950, sobretudo com a formação das periferias nos grandes centros metropolitanos.
Na mesma medida, a resistência à incorporação plena das distintas raças e suas composições ao conjunto do corpo da nação. Pela Constituição do Império, em 1824, por exemplo, todos os residentes passaram a ser formalmente considerados cidadãos, desde que nascidos em terra brasileira, querem livres ou libertos.
Na prática, contudo, a prevalência de monopólios nos direitos sociais impossibilitou a universalização do acesso à educação, saúde, assistência e previdência, consagrando a efervescência da força da elite branca. Isso se configurou mais expressivo pelas diferentes regionalidades componentes da formação dos brasileiros, como sertanejos, caipiras, entre outros que apesar de formalmente integrados, conviveriam com restrições e limites derivados do padrão seletivo, parcial e desigual de inclusão social no Brasil.
Os regimes autoritários se mostraram herdeiros do sentido metropolitano da exploração colonial estabelecida pela Coroa portuguesa desde o século 16. Inicialmente relacionado às influências do poder das forças estrangeiras na configuração interna da dominação das elites.
Até o século 20, por exemplo, as forças externas expressavam fundamentalmente o poder dos impérios. Tanto assim que o próprio surgimento do Estado nacional, com a instalação do jovem império em 1822 no Brasil, condicionou o estreito caminho passível entre a decadência do império português e a pujança do império britânico. Sem discordar da Coroa portuguesa, as elites nacionais acenavam cada vez mais com a proximidade submissa à hegemonia britânica.
Na sequência, a experiência autoritária se fez valer pelo exercício da violência do poder interno das oligarquias regionais frente aos riscos da organização dos movimentos populares. Nesse sentido as elites se contrapuseram a qualquer forma que permitisse a sustentação da organização do povo ao longo do tempo. Participação popular somente no estrangeiro.
Da Inconfidência Mineira, passando pelas guerras de Canudos e do Contestado, às revoltas regionais do século 19, a força do monopólio da violência policial foi empregada sem limites. O fundamental, a propósito, era impedir a organização popular e, sobretudo, a sua legitimidade.
Apesar disso, as elites internas negaram qualquer estabelecimento de registro legal divisor de raças, como havido, por exemplo, na África do Sul e Estados Unidos, ou mesmo de estamento social, conforme observado na Índia. Mas isso não significou, todavia, a democratização das raças.
Da mesma forma, a aversão ao povo organizado pelas elites possibilitou aceitar uma norma formal e geral de cidadania (brasileiro é aquele nascido e liberto, independente da raça que possui a partir de 1824). Esta norma, porém, não impediu que fossem construídas sofisticadas teias de caráter antirreformista frente à possibilidade de acesso aos direitos civis, políticos e sociais para toda a população.
Assim, assistiu-se ao estabelecimento de um padrão seletivo e gradual de incorporação das massas populares aos direitos de efetiva cidadania com o passar do tempo. A trajetória autoritária das elites manteve o sentido da sustentação tanto da legalização de privilégios para poucos como da legitimação das desigualdades para muitos, na medida em que as forças do antirreformismo preservaram ao máximo a monopolização das oportunidades geradas.
A força do antirreformismo
Diante de quase meio milênio de predomínio da sociedade agrária no Brasil, as tentativas de mudanças institucionais foram mediadas por elites com forte apelo antirreformista. A começar pela construção do Estado nacional inserido em processo mais amplo de alterações institucionais desencadeadas na Europa e no Brasil.
Menos que ruptura, a transição da antiga colônia (por mais de três séculos) para o Estado nacional aconteceu sem descontrole da Metrópole, cujo primeiro monarca do jovem império foi Pedro I, quando ele era Pedro IV na linha sucessória da Coroa portuguesa. Neste aspecto, as recomendações de integração racial defendidas, inicialmente por Frei Caneca e José Bonifácio e que relacionavam o fim da escravidão com a distribuição de terras, se perderam em meio ao fechamento do circuito antirreformista.
O resultado foi a permanência de praticamente intacto o conjunto da população submetido à condição de intocável pelas políticas públicas. O antirreformismo se manteve como marca da expansão da renda compartilhada com poucos, enquanto ao Estado fundamentava-se no patrimonialismo e financiamento assentado na tributação sobre os pobres.
Também em duas mudanças institucionais de grande relevância, a abolição da escravatura (1888) e o surgimento da República (1889), as reformas defendidas por abolicionistas como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, entre outros, ficaram presas aos embates dos salões de onde eram defendidas. A inclusão dos ex-escravos em demandas ocupacionais existentes ou mesmo a redistribuição das terras visando à democratização da propriedade fundiária não aconteceram, posto o enorme obstáculo exercido pelas forças antirreformistas de sempre.
Sem a incorporação dos analfabetos ao sistema político, a Velha República (1889–1930) terminou por reproduzir as mesmas regras do jogo derivadas do Império, cujos interesses privilegiados eram os dos ricos (proprietários rurais, comerciantes, industriais e profissionais liberais). Ao mesmo tempo, a prevalência das políticas econômicas e sociais liberais que se estenderam para o império manteve novamente um enorme contingente de intocáveis pelas políticas públicas.
Na transição para a sociedade urbana e industrial, especialmente a partir da Revolução de 1930, abriram-se novas perspectivas para o salto no processo de inclusão social no Brasil. Ademais de se tratar do processo de modernização capitalista liderada pelo estancieiro Getúlio Vargas, o movimento contra reformas exerceu, em vários momentos históricos, verdadeiros bloqueios antidemocratas às alterações institucionais necessárias à universalização das políticas públicas, como a contrarrevolução de 1932, em São Paulo, o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964.
Chama a atenção também o fato de que nos casos de passagem dos regimes autoritários (Estado Novo, 1937-45 e ditadura militar, 1964-85) para a democracia não se registram rupturas profundas. De maneira geral, as transições políticas se mostraram articuladas e sob o controle compartilhado dos antigos regimes autoritários.
Exemplo disso foi a primeira eleição presidencial ocorrida após o fim do Estado Novo, cujo presidente eleito foi o general Eurico Gaspar Dutra, em 1945, que havia sido o ministro da Guerra de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945). Ademais, percebe-se a força da transição para o regime democrático em 1985, quando o primeiro presidente civil foi José Sarney, presidente do Arena e do PDS (partidos de apoio e sustentação da ditadura militar) entre 1979 a 1984.
Como não houve eleição por voto popular, o poder das forças antirreformistas derrotou a campanha por eleição direta em 1984 e estabeleceu pelo Colégio Eleitoral a vitória da chapa Tancredo Neves/José Sarney pelo PMDB. Na morte de Tancredo, Sarney, na qualidade de vice-presidente, assumiu o primeiro governo civil entre 1985 e 1990.
Na retomada do regime democrático desde 1985, parcela da sociedade se manteve submetida à trajetória do padrão seletivo e gradual de incorporação às políticas públicas. Somente pela nova Constituição Federal de 1988, o quadro geral começou a mudar.
Reformismo adiado
Pela perspectiva das forças políticas que desde a Revolução de 1930 conformaram nova maioria dirigente, responsável pela implantação e sustentação do projeto nacional-desenvolvimentista, constatam-se duas importantes tentativas de realização de um conjunto de reformas progressistas no Brasil. Para isso, a construção de blocos de apoio social e partidário voltados ao resgate de parcela significativa daqueles considerados por intocáveis pelas políticas públicas.
De um lado, o movimento das reformas de base que esteve em alta no início da década de 1960. De outro, o programa Esperança e Mudança, que esteve presente no movimento popular das Diretas Já para escolha do presidente da República na primeira metade dos anos de 1980.
Destaca-se que desde a década de 1950, o aprofundamento do movimento de urbanização se deu apoiado por enorme fluxo migratório de parcela considerável da população do campo. Diante disso, as grandes cidades passaram a conviver com sinais claros do colapso de suas infraestruturas (transporte, habitação, carestia, eletricidade, telefonia, entre outros) e da mobilização social crescente em torno dos temas populares associados à aceleração da inflação.
A polarização social eivada da ausência do planejamento urbano tornou mais complexa o enfrentamento do próprio subdesenvolvimento num país que havia começado a operar sob o regime democrático mais amplo somente a partir de 1945. De um lado, o movimento contrário à carestia do custo de vida para as classe populares resultava do crescente preço da habitação e dos alimentos praticados nas grandes cidades.
No caso da moradia, a pressão por imóveis era elevada diante da expansão das ocupações urbanas que atraíam levas de migrantes, enquanto a especulação imobiliária dominava nos centros tradicionais das cidades. Sem mudar os interesses imobiliários, o encaminhamento adotado em geral foi o de levar a população trabalhadora migrante para regiões cada vez mais distantes dos ricos centros urbanos.
O desenvolvimento das periferias nas grandes cidades ganhou inegável impulso, possibilitando definir, inclusive, o padrão de segregação social estabelecido entre os incluídos e os intocáveis pelas políticas públicas. Nas regiões periféricas das cidades, em geral despossuídas de legalidade, os posseiros terminaram sendo impingidos à autoconstrução de suas moradias, mesmo deslocados de infraestrutura básica como água potável, saneamento, eletrificação, estradas, transportes, escolas, postos de saúde, entre outros.
Além disso, empreendimentos imobiliários foram surgindo na forma de ondas especulativas estabelecidas na medida em que a infraestrutura era levada pelo setor público para áreas mais distantes do centro das cidades. O custo crescente dos imóveis (próprios ou alugados), absorvendo maiores parcelas do orçamento das famílias, sobretudo das mais pobres, era expressão direta disso.
Ao mesmo tempo, a saída de parte importante da população do meio rural elevou consideravelmente a demanda por alimentos nas cidades. O setor agropecuário, neste sentido, registrava dificuldades para atender plenamente à crescente demanda de alimentar todo o país.
Assim, o preço dos alimentos pressionava ainda mais o custo de vida em geral, sobretudo o da população pobre. Mesmo com a industrialização de alimentos e o avanço do setor de produção alimentar, a mudança nos preços reativos entre alimentos in natura e manufaturados não era plenamente absorvida pelas classes populares.
As mobilizações sociais, expressas à época por crescentes greves, passeatas, marchas, entre outras manifestações, apresentavam cada vez mais o conteúdo político, embora a base do desconforto fosse de natureza socioeconômica. A estrutura fundiária (rural e urbana) foi identifica como algo a ser enfrentado por novas políticas públicas.
Na estrutura partidária havia aqueles mais próximos dos anseios populares, como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Comunista (PC) – embora proscrito à época – e, sobretudo, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que comandara o governo federal com Getúlio Vargas (1951-54) e exercera tanto a vice-presidência da República nos governos JK (1956-60) e Jânio Quadros (1961), como novamente a Presidência da República (1961-64) com João Goulart (Jango).
Diante disso, o Brasil viveu uma intensa e tensa disputa nacional logo no início da década de 1960, tendo sob comando do presidente Jango as chamadas reformas de base. O programa reformista de então apontava para o encaminhamento progressista de questões que até então não haviam ainda sido tratadas abertamente no interior da maioria política que vinha, desde os anos de 1930, sustentando o projeto nacional-desenvolvimentista.
De acordo com a mensagem do presidente João Goulart enviado ao Congresso Nacional durante a abertura dos trabalhos legislativos, logo no início de 1964, as reformas de base consideravam um universo amplo de mudanças estruturais. O reformismo nacional desenvolvimentista contava com a determinação de lançar novas políticas públicas capazes de incluir o conjunto populacional definido por intocáveis.
Desta forma, a orientação era a mobilização dos intocáveis para a sua incorporação na reorganização da base de apoio social e político das reformas de base. Para isso, a proposta de democratização do acesso à propriedade fundiária, por meio da reforma agrária visava garantir maior quantidade de terras voltadas à produção agropecuária e, assim, consolidar o segmento da agricultura familiar, compensando em parte o poder político e econômico dos proprietários rurais.
Na época também emergiu o entendimento governamental de que parcela da constante alta nos preços dos produtos alimentícios nas cidades derivava da oferta quase inelástica da produção agropecuária dominada pelo latifúndio. Do mesmo modo, o crescente custo nas despesas de habitação para as famílias de baixa renda revelava o poder da especulação imobiliária nas cidades, responsável pela expulsão de trabalhadores dos centros urbanos para as periferias.
No ano de 1960, por exemplo, cerca de 1/3 dos brasileiros residia em habitações alugadas, enquanto parcela majoritária das terras agriculturáveis permanecia sob o domínio improdutivo muitas vezes do grande proprietário rural. Diante disso, a defesa da realização das reformas agrária e urbana tinha por objetivo incorporar parcela significativa dos intocáveis desprovidos do acesso à propriedade e elevar a produção agropecuária.
Por outro lado, a inclusão dos intocáveis na cidadania política passava pela mudança no sistema político, capaz de permitir o voto dos analfabetos e de militares situados em patentes inferiores. Na época, cerca de 40% da população adulta eram analfabetos e, por isso, estavam excluídos do processo eleitoral.
Por fim, ainda, a reforma social, identificada pelas medidas de políticas públicas que visavam ampliar o acesso dos intocáveis pelas políticas sociais e trabalhistas. Nesse sentido, a incorporação da população ocupada no meio rural ao sistema de proteção estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho. Em plena década de 1960, a metade dos brasileiros encontrava-se ainda no campo e em condições muito precárias de vida e trabalho.
Além da inclusão nas políticas sociais e trabalhistas, o acesso à CLT no meio rural abriria a possibilidade de organização dos trabalhadores tendo por referência o reconhecimento e financiamento oficial do sindicalismo praticamente inexistente no campo até então. A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, apontava justamente para esta perspectiva.
Por isso as reformas de base concentraram-se na incorporação dos direitos civis (propriedade urbana e rural), políticos (voto aos analfabetos e sindicatos aos ocupados no campo) e sociais (difusão da CLT no campo) aos considerados hoje intocáveis. Ademais, a pauta das reformas envolvia também a educação, a tributação, a administração pública e bancos.
Como se sabe, o golpe militar em abril de 1964 confirmou, novamente, a força do antirreformismo. Mais uma vez, a universalização dos direitos foi postergada.
Várias das reformas propostas originalmente pelo movimento progressista anterior (reformas de base) terminaram sendo adotadas pelo autoritarismo vigente por 21 anos (1964-85), embora sob o ritmo da modernização econômica com a exclusão social. Sob o domínio do conservadorismo, a maioria política que sustentava o projeto nacional desenvolvimentista impulsionou o mais rápido crescimento econômico que manteve significativo contingente de brasileiros na condição de pobreza e submetido à enorme desigualdade de renda, riqueza e poder.
Em função disso, as condições de universalização dos direitos de cidadania (civil, político e social) estavam amparadas na democratização da propriedade, na ampla participação e representação política e no acesso ao sistema de proteção e promoção social e trabalhista. As reformas de base ficaram para trás, assim como os brasileiros circunscritos à condição de intocáveis das políticas públicas tiveram que aguardar mais tempo para a sua inclusão.
Apesar disso, a reação organizada pelos progressistas se manteve acesa. A partir da segunda metade da década de 1970, uma nova convergência política e social passou a ganhar gradualmente maior importância, mesmo sob o domínio do regime militar.
Berço recente da participação popular
A partir da retomada dos movimentos sociais descortinados por associações estudantis, de trabalhadores e de moradores e bairros, a luta pela redemocratização do País foi gradualmente acumulando forças a partir da década de 1970. O forte ritmo de expansão econômica do regime militar gerou ascensão social de quase toda a sociedade, embora mais forte nos estratos superiores da pirâmide distributiva nacional.
Mesmo que positivo, dada a ampliação do nível de emprego e da renda domiciliar pelo acréscimo de mais membros das famílias ocupados, a maior parte dos trabalhadores terminou sendo exposta à segregação territorial. Ou seja, a explosão das periferias nas grandes cidades, com habitações irregulares e desprovidas das condições adequadas de urbanidade (água potável, saneamento, iluminação, estrada, transporte, posto de saúde, escolas, entre outras).
Das periferias surgiu importante movimento de organização da base mais pobre da população, tendo as associações de moradores e de bairros desenvolvido forte atuação em torno da redemocratização nacional e da redefinição de políticas públicas. Também pelo movimento de oposição sindical e de fortalecimentos dos dirigentes autênticos em torno do fim do arrocho salarial e do sofrimento dos trabalhadores em função do acordo com o FMI no início da década de 1980, a luta pelo retorno do regime democrático avançou ainda mais.
De resto, a reconfiguração do sistema partidário representada pela transição do bipartidarismo (Arena e MDB) para o multipartidarismo (PDS, PFL, PP, PMDB, PDT, PCdoB, PT, PTB, entre outros) tornou possível a convergência entre movimentos sociais e agremiações partidárias em torno de um novo programa de reformas. Na primeira metade da década de 1980, o documento Esperança e Mudança lançado pelo PMDB apontava para um conjunto necessário de reformas progressistas a ser conduzido pela maioria política que vinha desde os anos 1930 sustentando, em maior ou menor medida, o projeto nacional desenvolvimentista.
As reformas propostas à época respondiam, em parte, à crise da dívida externa (1981-83) e às políticas recessivas adotadas, bem como à incorporação de parcela dos intocáveis pelas políticas públicas. A visão antiliberal e nacionalista se destacava na medida em que buscava resgatar o padrão de financiamento de médio e longo prazos, bem como reorganizar a estrutura produtiva, com forte ênfase na construção de grandes grupos industriais nacionais.
A reforma do Estado se constituiria fundamental, tendo em vista o foco nas políticas de distribuição de renda, com a elevação do salário mínimo e a alteração do sistema de proteção social. A criação de uma rede descentralizada de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS), por exemplo, apontava para o fim do acesso à saúde para somente aqueles com emprego assalariado formal no meio urbano.
Para isso, a defesa também da reforma agrária e tributária progressiva tratava de fazer avançar os direitos civis de propriedade e de justiça social. A construção de uma nova política econômica e social consistiria na manutenção do projeto nacional desenvolvimentista dirigido pelas forças progressistas.
Com a derrota do movimento em torno das Diretas Já, os avanços esperados pelo retorno ao regime democrático permaneceram truncados. Da mesma forma, a gravidade da crise econômica, não obstante a maioria parlamentar do PMDB (1985-90), constrangeu a efetivação do programa de reformas Esperança e Mudança, o que consagrou, mais uma vez, a força do antirreformismo no Brasil.
Apesar da pressão popular derivada do movimento social em franca reorganização (sindicatos de trabalhadores, associações estudantis, organizações de moradores e bairros, entre outras) e dos partidos progressistas, o enfrentamento em novas bases dos intocáveis no País foi condicionado pela reafirmação do pacto conservador. Isso porque nem mesmo a maioria política que sustentava o projeto nacional desenvolvimentista se manteve frente ao ciclo de alta inflação, da desorganização das finanças públicas, do baixo dinamismo econômico e da desaceleração do emprego determinados pelas políticas econômicas de ajuste exportador.
Ao mesmo tempo, a passagem para a normalidade democrática ocorreu sem que os protagonistas e operadores do regime militar fossem interpelados a respeito das decisões e consequências de 21 anos de autoritarismo e governo de exceção. A expressão “transição transada” indicou o quanto a defesa dos setores arcaicos da sociedade havia se se convertido em força traduzida pelo tradicional antirreformismo brasileiro.
Por fim, a expectativa gerada pelo predomínio eleitoral do PMDB nas eleições de 1986 terminou sendo postergada frente ao fracasso do Plano Cruzado em combater a inflação e relançar a economia em novas bases para a inclusão social. A resposta política, em consequência, se deu por meio da desestruturação da antiga maioria política que sustentava o projeto nacional-desenvolvimentista.
Na sequência, a vitória eleitoral de Collor de Mello para presidente da República em 1989 interrompeu o longo ciclo urbano e industrial iniciado ainda na década de 1930. A ascensão do neoliberalismo impulsionado pelos governos dos anos de 1990 resultou da formação de maiorias políticas de caráter pontual, mais especificamente associada a momentos de importantes decisões, como no apoio ao Plano Real, a vitória em dois turnos eleitorais do presidente FHC (1994 e 1998) e as privatizações no setor produtivo estatal.
O abandono do projeto nacional-desenvolvimentista apontou desde então para o maior alargamento do segmento compreendido por intocáveis pelas políticas públicas. Seja pela explosão do desemprego e das ocupações informais, seja pela desconstrução de importantes políticas públicas, predominou a crença de que as forças do mercado seriam as próprias responsáveis pelo melhor processo de expansão econômica e de inclusão social.
O balanço da experiência neoliberal foi a repressão econômica e social. A ausência de crescimento econômico sustentado aconteceu simultaneamente à expansão dos problemas sociais como o desemprego e as ocupações precárias.
Superação do atraso neoliberal
Com o Plano Real desde 1994 assistiu-se à derrocada do último bastião dos movimentos políticos e sociais identificados com o projeto nacional desenvolvimentista. Logo o aprofundamento do processo de abertura comercial, financeira e produtiva introduzido no governo Collor de Mello, em 1990, terminou por desorganizar o sistema nacional de produção de manufaturas, com sua exposição aos limites da concorrência internacional, sem deter condições isonômicas de competição.
Os estados pertencentes às regiões Sul e Sudeste foram os mais penalizados, justamente por concentrarem a maior parte do parque industrial do País. Ao mesmo tempo, com o Plano Real, a capacidade dos governadores dos estados de responder por meio de política pública própria foi solapada em função do neoliberalismo na centralização da política fiscal e monetária no plano federal.
No âmbito da política fiscal, os governo estaduais foram submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal no gasto, ao mesmo tempo que absorveram a negociação da dívida pública com a imposição de pesado encargo sobre seus orçamentos, sem a possibilidade de usar mecanismos tradicionais de endividamento até então existentes.
Os bancos comerciais e de desenvolvimento pertencentes aos governos estaduais foram privatizados ou federalizados, esvaziando ainda mais a capacidades de fazer política de defesa e apoio ao setor produtivo. Ou seja, a maior centralização das políticas fiscal e monetária pelo governo federal minou o poder dos governos estaduais, inclusive no que concerne à determinação da política interna do partido, bem como na aglutinação de suas bancadas no Congresso Nacional.
Para, além disso, a força dos governadores que estava associada à capacidade de definição das redes de apoio no interior de cada estado em prol da eleição dos parlamentares (estaduais e federais) foi contida pela dimensão e amplitude das políticas do governo federal. Para aqueles parlamentares reunidos em torno da base de apoio do governo federal, o fortalecimento nas campanhas eleitorais se apresentaria mais importante e efetivo do que vinculado ao poder dos governadores.
Em função disso tudo, a sustentação política ao projeto nacional desenvolvimentista se esvaziou quase que completamente. Os governadores perderam capacidade de maior interferência no jogo da política nacional, assim como a crescente centralização no plano do governo federal e sua maioria parlamentar se distanciou de qualquer sentido nacional desenvolvimentista e das reformas progressistas.
No contexto nacional de regressão econômica e social estabelecida durante os governos neoliberais, com o decréscimo da participação do País na economia mundial (do 8º posto em 1980 para o 13º em 2000), o aumento do desemprego (2,7% para 15% da força de trabalho entre 1980 e 2000) e a redução na parcela do rendimento do trabalho na renda nacional (de 50%, em 1980, para 42% em 2000), a Frente Brasil Popular venceu as eleições nacionais no ano de 2002, após três participações consecutivas do então candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Adiciona-se a isso, a fragmentação social e política do País gerada por anos de hegemonia neoliberal e o poder articulador das forças do antirreformismo, percebe-se o estabelecimento de ousadia equivalente à natureza leninista para administrar o Brasil em favor das classes populares, especialmente do segmento identificado por intocáveis.
Inicialmente, a convivência – por certo tempo – com os fundamentos da política econômica herdada permitiu aproveitar do fluxo maior de comércio externo para fazer valer o novo regime de crescimento da produção com distribuição da renda e redução da pobreza e desigualdade social. Assim, o País diminuiu a taxa de inflação para menos de 6% (em 2002 era de 12,5%) sem comprometer o ritmo de expansão econômica e social.
Em virtude disso, o Brasil voltou a crescer mais fortemente com a multiplicação por quatro do produto nacional, com a geração de mais de 21 milhões de empregos formais desde 2003. A melhora social se deu também pela significativa queda na pobreza, com a saída de mais de 36 milhões de pessoas da condição de insuficiência de renda para viver.
Também vale acrescentar a elevação acumulada no rendimento do conjunto das famílias em 35% no idêntico período de tempo, sendo duas vezes maiores para o segmento de menor renda. A ampliação da inclusão nos bancos e no crédito permitiu trânsito de cerca de 70 milhões para 120 milhões de pessoas que passaram a ter acesso ao sistema bancário, representando o aumento da massa de crédito que passou de valor equivalente a 24% do PIB, em 2002, para 55% do PIB, em 2013.
A poupança obtida com contenção das despesas com juros serviu no redirecionamento dos recursos públicos para o crescimento dos investimentos e do gasto social. Enquanto a participação dos investimentos do setor público no PIB passou de 2,6% para 4,4% entre 2002 e 2013, os recursos direcionados à Educação subiram de 4,8% para 6,1% do PIB no mesmo período de tempo.
As despesas com enfrentamento da pobreza cresceram e viabilizaram o ingresso de parte da população de baixa renda nos mercados de consumo de massa. No mesmo sentido, a reconstrução do Estado degradado pelo neoliberalismo implicou aumentar o emprego público e recuperar remunerações, sem que isso significasse comprometimento relativo maior dos gastos com funcionalismo público federal, uma vez que passaram de 4,8% do PIB para 4,2% entre 2002 e 2013.
No balanço geral, o saldo do governo federal desde 2002 indicou o reposicionamento do Brasil no mundo, a recuperação do ritmo da expansão econômica nacional e a reconfiguração da estratificação social com rebaixamento da pobreza, desemprego e desigualdade de renda. Para isso, a formação de uma nova maioria política se mostrou, desde o princípio do processo eleitoral, em 2002, uma das peças fundamentais.
Para além da base política identificada com movimentos sociais e políticos progressistas, houve a necessidade de ampliar também a sustentação de apoio ao processo de mudanças em todo o País. O surgimento de um novo ator se mostrou estratégico.
Foi neste sentido que a abertura das políticas públicas à inclusão dos até então considerados intocáveis apontou o novo caminho pelo qual o apoio político-eleitoral se mostrou viável para a sucessão de vitórias acumuladas desde 2002. A participação política dos chamados intocáveis, concomitante com a base organizada, suavizou, em parte, os obstáculos do antirreformismo vigente em todo o País.
O acúmulo de forças no campo democrático viabilizou a recente inflexão progressista que historicamente as lutas travadas pelos trabalhadores organizados e parcela significativa dos intocáveis por políticas públicas buscavam realizar. A tensão em torno da habitação, evidenciada, por exemplo, pelos moradores pobres, favelados e demais remediados nas regiões metropolitanas das grandes cidades, reverteu-se em política nacional pela moradia popular.
Resumidamente, ressalta-se que desde a implementação do programa de habitação popular (Minha Casa, Minha Vida), em 2009, a construção de três milhões de moradias foram contratadas pelo governo federal, com quase 1,5 milhão entregues aos segmentos pauperizados da população. A atenção às demandas e ao atendimento por parte das políticas públicas apropriadas pelo conjunto heterogêneo da população, especialmente os intocáveis, consolidou no governo federal a vitória eleitoral de três mandados presidenciais que continham programas similares.
Este foi, até o presente, a primeira vez que no regime democrático, um programa de governo com unidade política e programática se manteve por tanto tempo. Nos governos do Estado Novo (1937-45) e da ditadura militar (1964-85) houve também certo registro de unidade programática por algum tempo, embora sem expressão democrática.
Para além da novidade em termos longevos da unidade programática governamental, identificou-se a constituição de um novo personagem político pelo qual se encaixou parte importante das políticas econômicas e sociais de inclusão. Não obstante os constrangimentos advindos das forças reunidas em torno do antirreformismo no Brasil, o segmento até então considerado intocável pelas políticas públicas assumiu crescente condição de força política.
Em seu benefício, a redução da pobreza e desigualdade, bem como a melhora ocupacional e habitacional, permitindo sair de sua condição anterior e assumir a posição de novo personagem político com importância relativa no enfrentamento das forças do antirreformismo. Em virtude disso que a perspectiva do desenvolvimento em bases inéditas passou a ganhar destaque nos debates interpretativos do Brasil atual.
Não obstante a ênfase ressaltada a partir de distintas forças dinâmicas da sociedade e da economia do País emergiram conceitos pertinentes como o novo-desenvolvimentismo e o social-desenvolvimentismo que procuram apontar o curso atual divergente dos projetos anteriores perseguidos pelo nacional-desenvolvimentismo e neoliberalismo. As mudanças na trajetória brasileira a partir do início do século 21 registram o conjunto de escolhas realizadas por sucessivas vitórias eleitorais programáticas defendidas pelos governos da Frente Brasil Popular.
- Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.
Artigo desenvolvido tendo por base o livro A vez dos intocáveis (FPA, 2014).
03/10/2014
https://www.alainet.org/pt/active/77678
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