Em baixo à esquerda

28/02/2005
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Para: (Censurado no original) De: Subcomandante Insurgente Marcos (Censurado no original) Envio-lhe um abraço, o meu e o de todos os companheiros. Por aqui estamos bem. Não havia pensado nisso, mas esta carta me parece uma excelente forma para dar por encerradas as transmissões do Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica. E não há melhor maneira de terminar a não ser com a página esportiva. Como você já deve saber, ao contrário do lema dos esportes olímpicos "mais forte, mais rápido, mais alto", em nossos desportos e olimpíadas zapatudas levantamos o de "mais fraco, mais lento, mais baixo"... Mais fraco Pois vou te dizer que estamos subindo a encosta que leva ao rádio. Bom, para que você me entenda vou dizer que, na hierarquia dos horrores e do mais pra menos, estão: o inferno, o purgatório, a estação Hidalgo do metrô da Cidade do México nas horas de pico e a encosta do rádio. Já deu pra ter uma idéia? Bom, estávamos subindo para uma das transmissões de sábado da Rádio Insurgente, a voz dos sem voz. Estávamos na metade da encosta e, enquanto a insurgente Erika subia trotando sem demonstrar cansaço algum, eu estava á beira de uma parada cardio-respiratória (ou seja, estava preste a morrer). Apontei então para um lado qualquer e, com o único objetivo de conseguir uma parada sem que o meu ego ficasse tão mal quanto os meus pulmões, com a minha última reserva de ar perguntei a Erika: "O que é aquilo?" Erika parou para olhar para onde apontei e eu aproveitei para sentar e fazer de conta que estava ajeitando a bota esquerda. "Onde?", perguntou Erika. No lugar de responder-lhe, disse-lhe para descer e dizer a Moy que me enviasse os informes na hora em que chegassem. Pelos meus cálculos, nessa de Erika descer e subir de novo eu chegaria no ponto mais alto da encosta sem ver arranhado o meu orgulho machista. Erika desceu...correndo. Eu continuei subindo, apoiando-me em galhos e pedras e amaldiçoando a minha maldita idéia de transformar a novela Mortos Incômodos em radionovela e transmiti-la pelos 100.5 megahertz de freqüência modulada. Quando me faltavam uns 50 metros para chegar lá em cima, Erika me alcançou trotando morro acima com um "Tudo certo. Diz o major que vai mandar os informes logo que chegarem". Eu não pude dizer nada (pela falta de ar e pela vergonha) e cedi a ela a vanguarda. Por fim, chegamos. Havia acabado de sentar na frente da choça que serve de sala de transmissão quando a insurgente Toñita subiu correndo com os informes. Desceu correndo dizendo que ia começar o jogo de futebol das insurgentas. Enquanto Adolfo preparava os apetrechos para iniciar a transmissão com essa de "Já se vê o horizonte..." li os informes. Nada de grave, só que a comandante Hortênsia estava aprendendo a ser "motorista" e que as companheiras de Los Altos não aceitavam que as "sociedades civis" dessem os cursos de direitos das mulheres e que elas mesmas iam decidir os temas e dirigir as conversas. A comandante Hortênsia informava que já estava aprendendo mecânica e que já podia desmontar o distribuidor do "Chompiras". Erika entrou carregando uma bateria de carro que pesa uns 15 quilos e foi embora, descendo pela encosta...correndo. Foi aí que o tenente de transmissões Adolfo, que lê o que lhe cai na mão e pergunta tudo, me disse "e aí Sup, quem disse que a mulher é o sexo frágil?" Eu, não sem grandes esforços, fiquei de pé e lhe respondi: "com certeza, um imbecil", enquanto arrancava da porta um letreiro que eu mesmo havia colocado faz tempo, e que dizia: "CLUBE DO TOBI, NÃO SE ADMITEM MULHERES". Talvez, deve ter sido a minha imaginação, mas tive a impressão de que o sol ria. Mais lento Acho que entendo o que me conta. Esta espécie de enjôo, a vertigem produzida pelo rápido ir e vir dos temas nos meios de comunicação. A aparente instabilidade da agenda nacional: narcotráfico, processo de cassação, o idílio em Los Pinos, os assassinatos, tsunamis, Iraque, Líbano, as disputas no interior dos partidos, ministros em campanha e ex-ministros pedindo que os ministros em campanha deixem de ser ministros, esta semana se reduz a isso. Tudo tão rápido...e tão superficial. Como disse o finado Elias Contreras: chega a doer a cabeça de tanto passar de uma brincadeira a outra. Agora as pessoas sabem de cor os horários dos noticiários...para mudar de canal. Então, deixe que lhe diga que acho que esta frenesi oculta outra coisa: a destruição do que faz com que o México seja uma nação. E mais ainda, esta rápida enxurrada de temas que vem de cima não permite que se tome uma posição, mas sim que se deixe esta tarefa a outros, concretamente, que seja deixada aos políticos, aos locutores e aos que escrevem os editoriais. Na modernidade neoliberal, as imposições devem ser rápidas, frenéticas, brutais. É o que chamam de "terapia de choques seguidos", que consiste em te darem um golpe e, antes que você se recupere, te dão outro e mais outro e outro ainda...até que aceite isso como "normalidade". E para ver isso tudo tem que ir mais devagar. Porque a destruição do México como nação não é só econômica e social, é também legal e política. O processo de cassação é uma parte, e, em linhas gerais, vou responder às suas perguntas sobre este tema com o que segue: 1. Ao ser levado adiante, o processo de cassação do chefe do governo da Cidade do México colocaria o nosso país quase um século atrás no calendário. E, precisamente, em 1910. Isso significaria, de fato, a anulação da via eleitoral para ter acesso ao poder. Só isso. Rejeitando com desprezo a história do México, a Presidência está fazendo um uso patrimonialista do aparato judicial e a classe política continua em seus cálculos mesquinhos para saber se os cheques vão cobrir o papel ridículo que vai fazer. O processo de cassação não só é ilegítimo, como também é ilegal. Quando a Secretaria de Governo, a Presidência, a Suprema Corte, o Poder Legislativo, o PAN, o PRI e esta parte do PRD que transformou em negócio o se fazer passar por esquerda anunciam de forma estridente que a lei está acima de tudo, a única coisa que conseguem fazer é aumentar o rancor social que se acumula em baixo. Por mais anúncios, coletivas de imprensa e soporíferos discursos e declarações do Governo e da Presidência, o processo de cassação é ilegal e não resiste à menor avaliação jurídica que seja honesta. A insistência da direita em manter o assunto do processo de cassação no campo estritamente jurídico não passa de uma arapuca: sabem que o processo de cassação não se sustenta legalmente, mas sabem também que a teia de aranha das leis mexicanas pode ocultar o que é ilegal...com as leis. Já fizeram isso antes, quando da contra-reforma indígena de 2001. Mas, além de ilegal, o processo de cassação é ilegítimo, e é isso que o México de baixo está pensando. 2. É pra valer ou é uma ameaça (acho que se chama blefe no pôquer e no dominó)? Não sei. Acredito que em seus cálculos pesam, pelo menos os seguintes aspectos: a) O calendário. Ou seja, pensam que se houver alguma confusão, melhor agora do que mais perto das eleições presidenciais. Calculam que vai haver outros circos para distrair as pessoas (provavelmente o iminente casamento religioso de Fox-Sahagún, algum homicídio de pessoa ilustre, a briga de ratos no PAN, no PRD e no PRI) e que a "opinião pública" chegará nas eleições "novinha" e desmemoriada. b) O PRD. Confiam em que a direção perredista ratifique sua corrupta ala mais moderada e que Cárdenas Solórzano (abençoado por Fox e Salinas) sirva de mediador diante dos protestos no interior do PRD, dilua a inconformidade na intelectualidade progressista e isole os focos de descontentamento fora da área de influência perredista. E há também esta parte (mínima) honesta do perredismo, para a qual opor-se ao processo de cassação significa apoiar López Obrador. Logo: bem-vindo o que aniquila o inimigo...ainda que venha do inimigo. c) López Obrador. Que, cercado que está do pior do PRI-salinismo, opte por ceder aos chamados à "prudência" e à "sensatez" (a mesma, que agora aplaudem, que teve Cárdenas em 1988) e se mantenha nos limites da mesma "legalidade" que procura cassá-lo. Manobrariam rapidamente para colocar na ilegalidade toda manifestação de repúdio, e, se podem tirar alguém da corrida presidencial, por que não podem prender alguém que se oponha? Afinal, as leis são isso mesmo: uma dissimulação para a falta de legitimidade. d) O povo. Têm preparado o terreno com verdadeiro fervor para que a política provoque fastio e apatia na grande maioria das pessoas. A quem interessa que um ou outro não possa ser candidato à presidência se lá em baixo as coisas continuam do mesmo jeito? e) O esquecimento. A cada mandato, o sistema põe pra funcionar a operação "Falta de memória". Mesmo que, claro, com cada vez menos êxito. 3. Neste momento, percebemos um ambiente de histeria na classe política (alimentado pelos meios de comunicação). Algo que nós chamamos de síndrome de Tláhuac e que consiste no fato de policiais de qualquer lugar distribuírem golpes, gases e prisões... "para evitar um mal maior" (claro, tomando o cuidado para não dizer que, na realidade, é para evitar um escândalo na mídia). Esta síndrome está elevando a repressão e, no sentido inverso, inibindo a mobilização. Como tudo é suspeito de estar apoiando um ou outro lá em cima, então fiquem todos quietos para que nada altere a "paz" com a qual se ajusta a agenda de cima. Chiapas, Oaxaca, Veracruz e a Cidade da Esperança são brotos de uma amostra que já é nacional. 4. Você conhece bem a nossa posição a respeito de López Obrador e do PRD: não passam da mão esquerda da direita (talvez nem isso). Mas aqui o problema não é de simpatias políticas ou de cálculos cínicos do "mal menor". Não. Como sempre, em nosso caso é um problema ético. Não se trata só de que o processo de cassação é, em sentido estrito, um golpe de Estado "preventivo" (como já o chamam alguns) e que, se o ano 2000 deu alento às idéias de que as eleições são o caminho para o poder, 2006 será a ratificação de que qualquer meio (atenção: qualquer meio) é válido para conseguir os fins. Não, não se trata disso. Ou não só. Trata-se de que é uma injustiça. E todo homem e mulher honestos devem opor-se a uma injustiça e, neste caso, a esta injustiça. Nós zapatistas não só nos opomos ao processo de cassação, jurídico e realizado pela mídia, que anule as possibilidades de um homem ou de uma mulher chegar ao poder por vias pacíficas, mas chamamos também todos a se manifestarem, em seu tempo, lugar e forma, contra esta injustiça. E tem mais. Adianto a você que estamos discutindo as formas (atenção: pacíficas) nas quais nós nos manifestaremos para opormo-nos ao golpe de Estado. Claro que chamamos a que nas mobilizações se separe claramente o que é o repúdio ao processo de cassação do que é o apoio a López Obrador (a confusão entre uma coisa e outra deve-se, honra a quem honra merece, à forma rude com a qual o governo faz sua campanha e ao já legendário oportunismo do PRD). 5. Isso quer dizer que apoiamos López Obrador e que já esquecemos a longa história de traições e inconseqüências do PRD? Não. E tem mais. Se no lugar de López Obrador a ser processada fosse Marta Sahagún nós também no oporíamos. O problema, repito, não é de pessoas ou de tendências políticas (mesmo porque a direita tem muitos rostos...e siglas partidárias), mas sim de história e de coerência política. Talvez você se lembre do pronunciamento de Rosario Ibarra de Piedra, então candidata à presidência, quando da fraude eleitoral de 1988. Palavras mais, palavras menos, disse que Cárdenas havia ganhado, que não concordava com seu programa e posição política, mas que o que Salinas havia feito era uma fraude. Já dissemos antes que só viramos para cima se uma mão de baixo apontar para lá. Não estamos olhando para cima, mas sim para baixo. Mais concretamente: para baixo e para esquerda. E o que vem de baixo tem outro ritmo; como não aponta para o imediato, mas para o futuro, vai mais devagar...mas vai. Mais baixo Um dos problemas da esquerda é com o que se identifica: com a direção do PRD, que tem a consistência ideológica e prática de um merengue (e, como os merengues, se jogam no cara ou coroa); ou com a posição dos que dão uma de advogado e promovem a eleição de governantes "menos ruins" como programa de ação de esquerda, ou com aqueles que, do conforto da academia, distribuem missões e tarefas...às organizações de esquerda; ou daqueles que, aceitando o calendário que vem de cima, e que aponta este como o ano eleitoral, promovem o atual equivalente ao "voto útil": impulsionemos o mal menor... dando por suposto que, de fato, é um mal menor. Mas, se você me permite, analisando mais lentamente podemos apontar que o denominador comum desta "esquerda" está no cinismo, na falta de memória e no conformismo. Não. Quando se olha para a esquerda, não temos que dirigir o olhar para cima, mas sim para baixo. Lá em cima é só claudicação com cadeiras de magistrados e governos disfarçada de moderna sensatez. A geografia da esquerda (atenção: falo do México dos inícios do século XXI) se estende lá em baixo e costuma estar longe do frenesi de cima. E falo então da esquerda de baixo, a marginalizada por esta "esquerda" de cima que tanto agrada à direita. Em termos gastronômicos, a esquerda de cima ("os marxistas de pantufas", como alguém os chamou) pode lhe fornecer uma agenda com os melhores restaurantes e os melhores vinhos; e a esquerda de baixo só pode te dizer onde vendem os lanches mais baratos. Falo da chamada esquerda "marginal", "radical", "jurássica" (para usar alguns dos termos que vêm de cima). Das organizações políticas que não integram a classe política e nem a sociedade civil. Daqueles que não se orientam por modas, mas sim por compromissos. Dos desprezados pelos intelectuais, pelos meios de comunicação, pelos governos, pelos políticos profissionais. Dos que não são carne de canhão, mas sim de presídio, de cemitério, do limbo onde os desaparecidos esperam a justiça que não virá de cima, mas sim de baixo, à esquerda. Dos poucos. Dezenas. Centenas quando muito. Costumo rir dos argumentos quantitativos. "São um punhado, muito poucos", nos dizem para recomendar que se ignore alguma organização de esquerda. Mas, quantos são poucos? O EZLN não começou com seis pessoas? Porque esses poucos têm sido o motor das grandes mobilizações no México: os poucos que puseram pra andar o 68, o 85, o 94, o 99. O cardenismo de 88 teria sido um movimento de massas sem o apoio dessas pessoas e organizações de esquerda que se juntaram? Nós achamos que não. Talvez nos equivocamos, mas é nisso que acreditamos. Estas pessoas e organizações merecem não só o respeito de todos, mas também a admiração. Qualquer iniciativa de transformação real da nossa sociedade deverá contar com eles. Do contrário, não passará de uma luz isolada (quando nasce em baixo), ou uma enganação (quando nasce em cima). Porque você deve saber que há uma esquerda que não pode ver se não com vergonha e indignação que pretendem colocar na frente, dirigindo e coordenando, aqueles que só sabem de movimentos sociais quando é para reprimi-los ou comprá-los, os dirigentes sindicais pelegos, os dirigentes religiosos e políticos que mudam de bandeira como trocam de calças. Se você me permite a imagem cronológica, o relógio de baixo tem outro ritmo e o calendário aí exige mais compromissos, e em tudo. Se lá em cima são os meios de comunicação eletrônicos (sobretudo, a televisão) que ditam e acompanham a agenda do poder, lá em baixo se escreve um livro no qual não existe a palavra "fim". Cada um vai acrescentando letras, palavras, páginas, até capítulos inteiros como os da revolução iniciada em 1910 e 1968. Este livro anda mais devagar, é verdade, mas têm os pés daqueles que têm a luta como forma de vida. Avança, inclusive, quando as derrotas que escrevemos não podem ser atribuídas a bichos de sete cabeças, mas sim às picuinhas que arrastamos. Mesmo assim, cada página permite a seguinte, e atrás de nós não estão só Hidalgo, Morelos, Guerrero, Villa, Zapata e Flores Magón. Estão também os atuais desaparecidos políticos da guerra suja, as organizações políticas que tornaram possível a insurgência sindical no anos 70, e aqueles que, sem manifestações de espanto e com tenacidade fazem trabalho político com operários, colonos, camponeses, indígenas, mulheres, religiosos, homossexuais e lésbicas, estudantes, professores. E, continuando com o exemplo do relógio, permita-me dizer-lhe que, a partir da sexta hora, o horário começa em baixo e à esquerda. Este país foi mordido pela história e pela geografia. A oriente e ocidente, as sierras madres são duas grandes cicatrizes que nos dizem: "somos isso". Seria muito bom se houvesse algo que unisse os esforços que se dão em baixo, no âmbito destas cicatrizes. Algo que conectasse Mérida a Ensenada. Ou, melhor ainda: La Realidad a Tijuana. Vou me despedindo. Só lembro-lhe que, para nós, o olhar chega mais longe quando sua base se assenta em baixo e à esquerda. Valeu. Saúde e, se você me perguntar a cor da bandeira que flutua aqui em baixo, responderia "rubronegra". Das montanhas do Sudeste Mexicano Subcomandante Insurgente Marcos México, fevereiro de 2005. P.S.: Com este programa esportivo termina a transmissão do Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica, a única televisão que se lê. A partir deste momento nosso sinal sai do ar. O que? Sim, ainda falta o que falta...
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