O Assentamento Oito de Junho e a Universidade
12/11/2014
- Opinión
Poucos movimentos sociais no Brasil andam tão preocupados com a educação como o MST. Um exemplo disso é o Assentamento Oito de Junho.
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Poucos movimentos sociais no Brasil andam tão preocupados com a educação como o MST. Não há mistério: perceberam que tão ou mais importante que um pedaço de terra para plantar é plantar conhecimento, aceder a um ensino que dê vez e voz aos trabalhadores rurais. Há duas mil escolas públicas em acampamentos e assentamentos. Dentro do maior deles, o Celso Furtado, em Quedas do Iguaçu, são três colégios, fruto de parceria entre as quase 1100 famílias, a prefeitura e o governo estadual. A vantagem mais óbvia, diz a professora, é evitar que as crianças andem quilômetros para aprender. Não só: a escola mais acessível tem favorecido um salto qualitativo na vida de muitos antigos sem-terra, com o ingresso na universidade.
Chego a Laranjeiras do Sul, sudoeste paranaense, para participar da II Semana de Economia da Universidade Federal da Fronteira Sul. A universidade tem cinco anos, é da fornada que o ex-presidente Lula promoveu para interiorizar o ensino superior. Seus cinco campi cobrem municípios do sudoeste do Paraná, oeste de Santa Catarina e noroeste do Rio Grande do Sul: a mesorregião Fronteira Mercosul. “A UFFS é fruto da pressão dos movimentos sociais, pois nosso desafio era construir uma universidade pública, democrática e popular”, comenta Pedro Ivan Christoffoli, catarinense diplomado em agronomia, administração e desenvolvimento sustentável. Desafio maior, vencido em 2010, foi instalar o campus de Laranjeiras do Sul dentro de um assentamento da reforma agrária.
“Isso é mais que um símbolo”, ele diz, “é uma porta de acesso à juventude rural. Temos aqui uma centena de assentados”. Outro diferencial é o processo seletivo: “Mais de 90% dos nossos graduandos fizeram escolas públicas no ensino médio”, lembra Pedro, professor nesse campus — por ora dois prédios novos em folha — que privilegia o ensino ligado à vida socioeconômica local: “Nosso esforço é montar cursos de agronomia voltados para a agroecologia, de desenvolvimento baseado no sustentável”. Uma novidade é o curso de Educação do Campo, em diálogo com as ciências sociais e visando formar gestores e professores para escolas rurais.
Vou com Pedro ao Assentamento Oito de Junho, o primeiro do Brasil a sediar um campus universitário. Quem nos recebe é Ivandro Amorin, assentado que vive ali desde os 14 anos, quando os pais ainda estavam precariamente acampados. Mora com a mulher e uma filha de 2 anos. Estudou na escola de Laranjeiras do Sul, onde uma professora dizia ser impossível, pelo bom nível, que o aluno fosse um acampado. Formou-se em técnico em agropecuária.
O AOJ nasceu da ocupação, dia 8 de junho de 1997, da fazenda Rio do Leão, às margens da rodovia. Quatro anos de disputas e de apuros com alimentação, saúde, educação, até que o Incra desapropriou o latifúndio de 1477 hectares, abandonado e entregue a posseiros, e o dividiu em 74 lotes, com média de 14 ha. Hoje vivem ali 71 famílias. Os 3 lotes restantes foram repassados à universidade, motivo de orgulho e esperança no AOJ, que já conta com mais de dez universitários. Quarenta famílias têm internet. As casas são de alvenaria ou de madeira, estas uma tradição do Paraná. Não há igreja dentro da comunidade, mas o culto dominical ecumênico pode acabar em debates sobre o dia a dia e a política. No momento, reivindicam uma escola dentro do assentamento, com perspectiva de oito salas e horário integral.
No pequeno escritório logo à entrada, Ivandro serve café e um saboroso queijo orgânico. O AOJ está focado em projetos de agroecologia. “Nem sempre é fácil convencer os assentados. Há conflitos, alguns resistem aos novos métodos de produção e preferem perpetuar o que aprenderam com pais e avós”, ele conta.
Nem todos os assentados são militantes do MST (no AOJ, 90% são), nem todos negam a agricultura capitalista. Mas a organização do assentamento, esta sim ligada ao MST, vai avançando: “Tentamos superar o embate no agroecológico com palestras, formação técnica e política”, diz Ivandro: “Participa quem quer”.
Muitos querem. Pedro conta que o mais avançou no movimento foi a formação dos camponeses: hoje são milhares de técnicos. Ele mesmo andava atarefado com a conclusão de um curso de especialização em produção de leite agroecológico, em que se formaram mais de 40 técnicos para atuarem nos assentamentos. A educação da mão-de-obra rural é a chave para viabilizar uma agricultura de preservação ambiental e estímulo aos cuidados com solo, nascentes e sementes.
O MST se preza de ter sido um dos primeiros movimentos rurais a adotar, com o auxílio de cientistas, técnicas agroecológicas. No AOJ, onde a produção de leite responde por 83% da renda, é de 20 mil litros por dia a capacidade do laticínio agroecológico. No dia seguinte à nossa visita, Ivandro receberia os técnicos do Incra para liberar o uso das novas instalações, de onde sairão produtos feitos somente com leite orgânico, de maior valor agregado e demanda crescente. Para isso, os assentados devem obedecer a parâmetros rígidos, como a não utilização de agrotóxicos e transgênicos. “A média nacional é de mais de 5 quilos de agrotóxicos por habitante/ano. Aqui no Paraná tem quem use 100 quilos”, diz Pedro. Os que ultrapassarem o limite perderão, por alguns anos, o selo agroecológico que lhes garante mercado mais exclusivo e maior remuneração. Plantar transgênico é muito mais grave: por cinco anos o assentado estará privado da certificação.
Agricultura ecológica, formação permanente, ingresso ao ensino superior são temas que perpassam as conversas no campus “assentado” de Laranjeiras do Sul. O MST nasceu em janeiro de 1984, e em trinta anos atualizou a agenda da reforma agrária. A correlação de forças também é outra. João Pedro Stédile, líder histórico do movimento e membro da coordenação nacional, sabe que “o inimigo já não é só o latifundiário de botas sujas, mas o capital internacional e os gigantes do agronegócio; o sem-terra pensa que vai encontrar um gatinho, e encontra uma onça rugindo”. Como escapar da onça? “No século passado, a reforma agrária respondia a uma necessidade de democratizar a propriedade da terra. A luta principal era contra o latifúndio. Agora, com o capitalismo financeiro e as corporações transnacionais dominando a agricultura, a disputa não é apenas por terra. É pelo modelo de produção agrícola, é pelo destino dos recursos naturais. Por isso, estamos diante de um novo desafio que chamamos de reforma agrária popular.”
Chego a Laranjeiras do Sul, sudoeste paranaense, para participar da II Semana de Economia da Universidade Federal da Fronteira Sul. A universidade tem cinco anos, é da fornada que o ex-presidente Lula promoveu para interiorizar o ensino superior. Seus cinco campi cobrem municípios do sudoeste do Paraná, oeste de Santa Catarina e noroeste do Rio Grande do Sul: a mesorregião Fronteira Mercosul. “A UFFS é fruto da pressão dos movimentos sociais, pois nosso desafio era construir uma universidade pública, democrática e popular”, comenta Pedro Ivan Christoffoli, catarinense diplomado em agronomia, administração e desenvolvimento sustentável. Desafio maior, vencido em 2010, foi instalar o campus de Laranjeiras do Sul dentro de um assentamento da reforma agrária.
“Isso é mais que um símbolo”, ele diz, “é uma porta de acesso à juventude rural. Temos aqui uma centena de assentados”. Outro diferencial é o processo seletivo: “Mais de 90% dos nossos graduandos fizeram escolas públicas no ensino médio”, lembra Pedro, professor nesse campus — por ora dois prédios novos em folha — que privilegia o ensino ligado à vida socioeconômica local: “Nosso esforço é montar cursos de agronomia voltados para a agroecologia, de desenvolvimento baseado no sustentável”. Uma novidade é o curso de Educação do Campo, em diálogo com as ciências sociais e visando formar gestores e professores para escolas rurais.
Vou com Pedro ao Assentamento Oito de Junho, o primeiro do Brasil a sediar um campus universitário. Quem nos recebe é Ivandro Amorin, assentado que vive ali desde os 14 anos, quando os pais ainda estavam precariamente acampados. Mora com a mulher e uma filha de 2 anos. Estudou na escola de Laranjeiras do Sul, onde uma professora dizia ser impossível, pelo bom nível, que o aluno fosse um acampado. Formou-se em técnico em agropecuária.
O AOJ nasceu da ocupação, dia 8 de junho de 1997, da fazenda Rio do Leão, às margens da rodovia. Quatro anos de disputas e de apuros com alimentação, saúde, educação, até que o Incra desapropriou o latifúndio de 1477 hectares, abandonado e entregue a posseiros, e o dividiu em 74 lotes, com média de 14 ha. Hoje vivem ali 71 famílias. Os 3 lotes restantes foram repassados à universidade, motivo de orgulho e esperança no AOJ, que já conta com mais de dez universitários. Quarenta famílias têm internet. As casas são de alvenaria ou de madeira, estas uma tradição do Paraná. Não há igreja dentro da comunidade, mas o culto dominical ecumênico pode acabar em debates sobre o dia a dia e a política. No momento, reivindicam uma escola dentro do assentamento, com perspectiva de oito salas e horário integral.
No pequeno escritório logo à entrada, Ivandro serve café e um saboroso queijo orgânico. O AOJ está focado em projetos de agroecologia. “Nem sempre é fácil convencer os assentados. Há conflitos, alguns resistem aos novos métodos de produção e preferem perpetuar o que aprenderam com pais e avós”, ele conta.
Nem todos os assentados são militantes do MST (no AOJ, 90% são), nem todos negam a agricultura capitalista. Mas a organização do assentamento, esta sim ligada ao MST, vai avançando: “Tentamos superar o embate no agroecológico com palestras, formação técnica e política”, diz Ivandro: “Participa quem quer”.
Muitos querem. Pedro conta que o mais avançou no movimento foi a formação dos camponeses: hoje são milhares de técnicos. Ele mesmo andava atarefado com a conclusão de um curso de especialização em produção de leite agroecológico, em que se formaram mais de 40 técnicos para atuarem nos assentamentos. A educação da mão-de-obra rural é a chave para viabilizar uma agricultura de preservação ambiental e estímulo aos cuidados com solo, nascentes e sementes.
O MST se preza de ter sido um dos primeiros movimentos rurais a adotar, com o auxílio de cientistas, técnicas agroecológicas. No AOJ, onde a produção de leite responde por 83% da renda, é de 20 mil litros por dia a capacidade do laticínio agroecológico. No dia seguinte à nossa visita, Ivandro receberia os técnicos do Incra para liberar o uso das novas instalações, de onde sairão produtos feitos somente com leite orgânico, de maior valor agregado e demanda crescente. Para isso, os assentados devem obedecer a parâmetros rígidos, como a não utilização de agrotóxicos e transgênicos. “A média nacional é de mais de 5 quilos de agrotóxicos por habitante/ano. Aqui no Paraná tem quem use 100 quilos”, diz Pedro. Os que ultrapassarem o limite perderão, por alguns anos, o selo agroecológico que lhes garante mercado mais exclusivo e maior remuneração. Plantar transgênico é muito mais grave: por cinco anos o assentado estará privado da certificação.
Agricultura ecológica, formação permanente, ingresso ao ensino superior são temas que perpassam as conversas no campus “assentado” de Laranjeiras do Sul. O MST nasceu em janeiro de 1984, e em trinta anos atualizou a agenda da reforma agrária. A correlação de forças também é outra. João Pedro Stédile, líder histórico do movimento e membro da coordenação nacional, sabe que “o inimigo já não é só o latifundiário de botas sujas, mas o capital internacional e os gigantes do agronegócio; o sem-terra pensa que vai encontrar um gatinho, e encontra uma onça rugindo”. Como escapar da onça? “No século passado, a reforma agrária respondia a uma necessidade de democratizar a propriedade da terra. A luta principal era contra o latifúndio. Agora, com o capitalismo financeiro e as corporações transnacionais dominando a agricultura, a disputa não é apenas por terra. É pelo modelo de produção agrícola, é pelo destino dos recursos naturais. Por isso, estamos diante de um novo desafio que chamamos de reforma agrária popular.”
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