Os meninos do Recife
25/05/2005
- Opinión
A rotina da guerra deve fazer das suas baixas vítimas rotineiras. Está certo, todos nos espantamos, nos indignamos, e com justiça nos levantamos contra um terrorismo que assalta uma escola. Os jornais gritam, com sobeja razão nos títulos, nas manchetes: “Barbárie!”. Então sabemos que existem uns terroristas desalmados que adormecem bebês com tiros, que atiram nas costas de crianças que fogem do pesadelo, e que por isso são a causa de soldados invadirem uma escola, com absoluto desprezo à vida dos reféns. Está certo, esqueçamos Putin, que não negocia, pois é mais inflexível que a pedra. Está certo, contra terroristas, contra essas bestas, o terror do Estado, porque o governo é a ordem, e a ordem é o nosso último chão, nosso último sólido contra a anarquia.
Mas nos perdoem por favor o oportunismo. Segurem seus estômagos, suas gargantas, seus narizes sensíveis, sua reserva moral de bons cidadãos. Porque lhes digo:
As crianças de rua do Recife bem que precisavam de uns terroristas da Chechênia. Vamos, escrevam, e inscrevam, e repitam à náusea nas suas mentes: Os meninos de rua do Recife precisam de terroristas da Chechênia. Insatisfeitos? De novo, é só mais uma, até que acordem, porque o bom cidadão é o sal e a salvação: Os meninos do Recife precisam de terroristas. Quando acordarem, detenham-se,
porque todas as manhãs os seus corpos enchem a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoam-se, pode-se dizer, como se enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, organizados pela anarquia, dispostos que estão como cadáveres. E, se somos oportunista, saibam que não somos retórico, quando escrevemos “cadáveres”. Saibam. Não andamos chutando seus corpos para ter a certeza de se alguns deles estão mortos. Se o fizéssemos, perderíamos a metáfora, embora ganhássemos o status de mensageiro da boa-nova, ao anunciar aos passantes, “este menino está morto”. Não, o nosso desprazer estético é mais feroz. Dizemos como cadáveres, porque os meninos dormem, e sabemos que dormem porque estão imóveis, no chão, de bruços, ou com a cara para o sol, com a boca aberta. Dizemos como cadáveres porque há deles que dormem sem fechar os olhos: ficam a olhar vítreo para as marquises dos prédios, ao lado de floristas, íris à meia-lua. E assim postos, só nos ocorre a foto do cadáver de Che, sem camisa, abatido na Bolívia. A diferença é que são bem mais novos, e têm por causa causa nenhuma, além de uma urgente necessidade, de tóxicos, da comida de tóxicos, e do afeto que o tóxico dá.
As ruas, as avenidas onde jazem têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes cola na pele, ou melhor, neles existe uma poesia que ninguém vê, até porque ninguém mesmo os vê. Eles são ratões e ratazanas pela madrugada, porque com eles se confundem ao sair das cavernas e das cloacas da cidade, no escuro da noite. Então eles são todos negros, na pele, ou na comum rejeição, ou no disfarce, na camuflagem dos animais que correm pelo asfalto da avenida. Ao amanhecer, jazem como defuntos, misturados a latas e papéis no chão, acumulados ao longo da noite. Durante o dia, estão em grupos, na primeira refeição, com o tubo de cola à boca, que aspiram, para melhor se tornarem voláteis. Então, mesmo em grupos, aos bandos, ninguém os vê, ou melhor, às vezes, sim, quando rondam como símios as bolsas, os relógios, em silêncio. Vêem-se sem serem vistos, assim como vemos no solo uma cratera, um obstáculo, ou grandes conjuntos de merda. As pessoas fazem a volta e tratam de assuntos mais sérios. Todos estão excessivamente acostumados àqueles atores figurantes, de cenário. Atorezinhos que nem falam, porque estão em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega, plenos da anestesia que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios (e é interessante a relação da curva da sua embriaguez com a curva de suas ações), de repente, os que podem, saltam para a traseira de um carro coletivo. Então se transformam em mamíferos alados, em morcegos, que adoram assustar, que gostam de ser vistos como à beira da morte, nos testes que os motoristas fazem, ao frear e acelerar, e a fazer voltas velozes, para ver se os morcegos se estendem ao solo. Ainda assim se vêem sem serem vistos, porque só nos metem repulsa.
Mas não a todos. Olhando-os bem, pode-se perceber que despertam o amor e a compaixão em algumas almas caridosas. Olhando-os detidamente, às sete da manhã, como quem faz um exame de corpo de delito, podem-se ver os traços deixados pelo coração da melhor gente cidadã. Esses meninos imóveis, a ressonar, têm roupas de griffe. Sim, identificam-se claramente bermudas, camisas com etiquetas que são uma distinção em outros corpos nos shoppings. Roupas sujas, cheias de grude, é verdade, mas roupas caras, e isto é o que importa. Ao vê-los assim, no desprezo da cidade, ficamos a imaginar o impulso que move o coração da gente que somente lhes quer o bem. Disseram-se, uma noite, ao chamamento de instituições religiosas, ao clamor de “olha o teu irmão”, ao imperativo de que Deus também pode estar naqueles meninos de rua: “eu tenho tantas roupas no meu guarda-roupa, eu tenho tantas coisas que não mais uso, bem que poderia vestir um negrinho daqueles com uma das minhas roupas”, e mais adiante, numa iluminação que não desmerece Buda: “Por que somente doar o ruim? A doação, para ser boa, tem que ser feita com o melhor da gente”. E não resistiram ao impulso, que, como todo bom impulso, sempre é muito generoso. E haja rejeitados com roupinhas de griffe. Não fosse por um detalhe, estariam prontos, os negrinhos e os misturados a eles, a saírem numa escola de samba, com muito garbo, na ala dos meninos de rua que recebem a caridade do shopping.
O detalhe, que os unifica nas mais variadas tendências da moda, é muito estranho. Todos estão descalços. Todos. Deve haver uma lei que impeça os corações caridosos de descerem até os sapatos. Já não digo sapatos, mas qualquer calçado, qualquer um, para isto deve haver algum impedimento. Não queremos crer que a generosidade do cidadão recue diante do preço relativo de um par de tênis. Até porque o preço relativo dos céus é bem mais alto. Ou será que a gente mais cristã, quando vê os meninos, não lhes vai com a vista até os pés? Ou será que acham, os corações em boa fé, que andar descalço pelas ruas seja uma festa? Talvez a moral cristã se preocupe com a nudez, do sexo para os ombros. Talvez. Ou talvez, quem sabe, os meninos recebam tênis, sapatos, sandálias, e os atirem com desprezo ao lixo, ou às águas do Capibaribe, que por ser um belo rio, gosta de andar calçado. Ou talvez os sapatos sejam um bem supérfluo, para os pés dos meninos de rua. Assim como os bonés, porque neles não se vêem bonés à cabeça, como é costume nos seus irmãos caridosos, da mesma idade. Ou talvez os sapatos sejam trocados por cola, de sapateiro, como nos garantiu um senhor sensato e educado. “Vivem de cola”. O que faz sentido. Para que sola nos pés, se a cola de sapateiro que usam é somente para colar a sua felicidade?
A um deles, ontem, perguntei a idade. “Onze anos”, ele me disse. E eu, com minhas exatidões burras, de classe média: “Vai fazer, ou já fez?” . Silêncio. Eu insisti, crente de que não havia sido entendido. “Você faz anos em que mês?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:
- Eu não tenho aniversário.
Ah, por favor não nos perguntem por que era bom que esses meninos do Recife sofressem um atentado terrorista.
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