Um dia nos protestos do Recife
23/11/2005
- Opinión
Na sexta-feira, dia 18, segundo dia da mobilização contra o aumento das passagens de ônibus, eu estava indo encontrar com Hugo Souza - do site www.boivoador.com - na faculdade em que ele estuda. Então, precisei descer uma parada antes da do Derby porque estava tudo interditado. Olhei e vi o batalhão de choque subindo a ponte. Parecia cena de filme. Aquele mar de homens vestidos de cinza, com cacetete e escudo.
Na faculdade, um grupo de alunos que está indo para o segundo ano de jornalismo, estava se preparando para fazer o segundo dia da cobertura da passeata, mas, de última hora, ficaram sem fotógrafo. Como eu estava com a minha máquina e colaborava com notas e comentários de conteúdo para o site, decidi acompanhar o pessoal fotografando. Quando a gente saiu pra fazer a cobertura, vimos quatro ônibus quebrados e pichados. Tiramos fotos e entrevistamos motoristas, cobradores e passageiros. Seguimos, tranquilamente, em direção ao centro da cidade, tomando uns desvios para não sermos alvo de nada.
Quando a gente chegou no centro, muita gente estava voltando pra casa, dizendo que tinha acabado a passeata. Então, nós encontramos com a manifestação na frente do palácio do governo. Na hora em que chegamos, os estudantes estavam fazendo uma assembléia pública para decidir se continuariam ou parariam, e qual o destino a tomar. Falaram o destino para o público, na frente da polícia.
Então, a manifestação seguiu pacificamente pelas pontes até parar na frente da Assembléia Legislativa. Então, vimos um ônibus parado no sinal e um grupo entre cinco e oito garotos - em uma manifestação de mais de 300 pessoas - correram em direção ao ônibus e atiraram um cavalete pelo vidro de trás do veículo. Enquanto eles corriam, os organizadores da passeata no carro de som pediam, desesperadamente, que eles voltassem, não fizessem aquilo, que os garotos não atirassem pedras, mas era tarde demais.
Os demais manifestantes nem chegaram perto dos ônibus. Pelo contrário, se aglomeraram atrás do carro de som, que estava, ainda, na frente da Assembléia Legislativa, ou seja, dois quarteirões atrás de onde o ônibus estava. A polícia partiu pra cima, mas a organização conseguiu negociar. A passeata continuou. Quando chegamos na esquina entre a Avenida Cruz Cabugá e a Rua Visconde de Suassuna, estava tudo bloqueado do lado direito. O pessoal falou aos estudantes, que decidiram continuar a passeata pela Suassuna e foram em frente.
A manifestação seguiu e eu, Hugo Souza e dois fotógrafos - um deles da Folha de Pernambuco - ficamos bem atrás. Quando a gente olhou para trás, vinha o batalhão de choque dividido em duas fileiras, uma do lado esquerdo e uma de trás, do lado direito a PM tinha fechado a rua. Hugo, que tinha conseguido uma segunda máquina na loja do pai dele, ficou para tirar fotos - uma delas, inclusive, sai os outros fotógrafos. Deu tempo apenas de clicar. Não tinha como voltar. A PM pegou a passeata pelas costas e começou a atirar bombas de gás lacrimogênio.
Eu estava tirando fotos na frente do MPPE da Suassuna e quase fui atingida. Hugo subiu a rampa do prédio que fica de esquina e eu entrei no meio do batalhão de Choque para não ser atingida, logo atrás de Rodrigo Lobo, do JC. A PM conseguiu dispersar a manifestação. O pessoal dos sindicatos da Suassuna gritando contra os policiais. Eu consegui achar Hugo e disse a ele que, naquelas condições, era melhor a gente ir embora.
Então aconteceu um negócio terrível: dois policiais pegaram um garoto e encostaram na parede. Um senhor vinha entrando em um escritório e viu a cena, se dirigiu ao policial e disse "mas não precisa disso". O policial tirou uma pedra da bolsa do garoto apontou para o homem e disse "o senhor sabe o que é isso? isso é vandalismo! Venha incitar agora, seu merda". Eu me revoltei e disse "que história é essa de chamar um cidadão de seu merda?". Então, ele partiu pra cima de mim, foi grosso, me empurrou, e as pessoas em volta protestaram.
Então, uma amiga nossa disse: "Ana, eles estão tirando fotos das pessoas". E eu disse "Meu irmão, isso é coisa séria". Encontramos um professor de história que nos falou "Meus filhos, o DOPS não acabou. Eles estão fichando todo mundo". Eu fiquei bege com aquilo e pedi aos meninos que fóssemos embora. Afinal, tinha muita gente nova com a gente. A mãe de Hugo tinha feito a equipe prometer que ele voltaria inteiro, e eu fiquei logo preocupada com isso.
Então, nós fomos para a Conde da Boa Vista encontrar o resto do pessoal da reportagem para ir pra casa. Quando chegamos lá, eles pegaram um dos garotos que também estava fazendo reportagem, mas para outro veículo de comunicação. Eu virei para o policial e disse "Moço, ele está fazendo cobertura. Não prenda ele, não". O cara virou para mim e disse "Está achando ruim? Quer ir, também?" e eu respondi: "não, quero não". Ele me retrucou "Você vai também", e partiu pra cima de mim.
Eu sai me desvencilhando dele - tem fotos no Arquivo da Folha de PE - e outro tomou a frente. Eu subi a calçada e eles tentando me agarrar. Os fotógrafos em cima. Quando vi, cai no chão. Eles me arrastaram. Hugo veio tentar me defender. Eles pegaram Hugo pelo pescoço e atiraram nós dois dentro do camburão, junto com mais um fotógrafo que tentou ajudar a gente.
A gente conseguiu entregar as máquinas para colegas nossos, antes do carro da PM sair. Quando a gente estava dentro do camburão, o cara do BChoque ficava dizendo "senta, senta agora" e eu dizia a ele "moço, não cabe" e ele berrava "você quer que eu entre ai e mostre que cabe?". Eu engoli seco, porque a raiva que eu estava, não conseguia medir. De dentro do camburão, eu liguei pra amigos, que acionaram a coordenação da faculdade.
Então, eles arrastaram a gente e muitas outras pessoas - gente, inclusive, que nem estava na passeata e, sim, esperando ônibus - para a delegacia. Quando chegou no local, eles ficavam gritando com a gente. Impediram da gente falar no celular. Eu estava atendendo as ligações de Maria Cleidjane e do pessoal do Centro de Cultura Luiz Freire, que queriam saber onde eu estava, e eles ameaçando de tomar meu telefone, gritando comigo.
Uma jornalista amiga nossa, que estava fazendo cobertura pela Agência Carta Maior, levou grito e foi empurrada na frente da delegacia. Havia um advogado de direitos humanos, que estava levando grito dos policiais na frente da delegacia, mesmo se identificando. Acho que foi por isso que representantes da OAB e a Comissão de Direitos Humanos, em peso, foram para o local. Se brincar havia mais advogados que gente detida, na delegacia, por volta das 18 horas.
A nossa sorte é que o pai de Hugo acompanhou tudo e conseguiu falar com o chefe do batalhão ainda na Conde da Boa Vista. Meira colocou todas as pessoas que haviam sido "pegas, por engano", segundo eles, e colocaram em uma sala. Inclusive, o filho de um jornalista do Sistema Jornal do Commercio. Enquanto isso, a coordenadora do meu curso de jornalismo, Maria Cleidjane conseguiu falar com um professor de Direito Penal, e pediu que ele fosse para a delegacia.
Quando ele chegou lá, era Marcelino Lira, meu vizinho. Depois dele, chegaram meu pai, que é advogado, um amigo meu, Conrado Falbo, que acabou de se formar em Direito, o pessoal do Centro Luiz Freire, com quem eu trabalhei junto com o pessoal do Departamento de Direitos Humanos do Grupo de Assessoria Jurídica para Organizações Populares (Gajop), que foi onde eu estagiei recentemente.
Eles resolveram tudo e a gente foi liberado. No entanto, o pai de um dos garotos disse que eles colocaram no registro da delegacia que a gente havia sido detido porque estava fazendo "baderna" na passeata. Eu fiquei tão indignada quando eu soube disso no sábado de manhã, que ainda estou abalada.
O pior é que minha orientadora de pesquisa científica, Aline Grego, me ligou dizendo veicularam minha imagem sendo presa tanto no NETV quanto no Jornal Nacional em um contexto que dizia "os estudantes, que entraram em conflito com a polícia foram detidos". Eu não entrei em conflito com ninguém. Eu tenho meu juízo em perfeito lugar. Não vou discutir com gente que diz "a ordem da gente é prender", independente de quem seja.
No entanto, o que me arrasou foi ter visto a foto de Hugo pego pela polícia sendo estampada na capa do Diário de Pernambuco e na Folha de Pernambuco. Na Folha estava com a legenda "manifestante é imobilizado por policiais militares". Poxa, ele estava trabalhando, fazendo a cobertura para o site. A foto mostra ele de máquina na mão. Pelo menos a repórter do Diário de Pernambuco coloca a fala do pai dele, na matéria, contando a verdade, mas na capa não diz isso.
Então, tanto eu quanto ele ficamos super arrasados ao ver nossas imagens veiculadas na grande imprensa como "perturbadores da ordem pública", como gosta de chamar Luiz Meira, quando a gente estava, apenas, fazendo cobertura para o Boi Voador. Eu não durmo direito desde sexta-feira, e nem sei o que ficou registrado na delegacia. Soube ontem que, para o moço do Sistema JC, eles deram uma cópia do documento que preencheram sobre o filho dele, que também não estava fazendo nada e foi pego.
No entanto, para o meu pai e para o pai de Hugo, não deram um papel sequer. Eu não tenho noção do que está escrito naquele documento porque o cara que decidiu que eu devia ser detida foi o cara que preencheu a minha ficha na delegacia. O que é um absurdo.
Eu espero que outras pessoas não passem, nos próximos dias, o que a gente passou, porque foi muito difícil. Está sendo doloroso até hoje, e Hugo está tendo a maior dificuldade para limpar a imagem dele, depois das fotos que sairam nos jornais. Então, eu acredito que as diversas pessoas que foram detidas e machucadas, indevidamente, nos últimos cinco dias, em Recife, também estão na mesma situação.
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