O alerta de Rafael Correa
21/07/2014
- Opinión
Em visita ao Brasil na semana passada, o presidente Rafael Correa, do Equador, concedeu uma instigante entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha. Bastante animado com os resultados da reunião promovida pela presidenta Dilma Rousseff entre os membros da Unasul e dos Brics, ele destacou a importância da união dos povos diante da grave crise que abala o sistema capitalista internacional. Ao mesmo tempo, porém, ele alertou para os riscos de uma “restauração conservadora” na América Latina. Reproduzo abaixo alguns trechos da entrevista publicada nesta segunda-feira (21), que contribuem para o processo de reflexão das forças de esquerda do nosso continente:
Os EUA ficaram incomodados com a reunião dos Brics?
Se queremos um mundo multipolar, temos que conformar e aproximar blocos. Foi o que ocorreu agora, entre os Brics e a Unasul. Para o país hegemônico de um mundo unipolar, deve ser preocupante. Não me cansei de felicitar a presidente Dilma. A reunião foi uma ideia brilhante. E pode marcar o início de uma ordem mundial menos injusta.
Mas as medidas anunciadas conseguirão criar de fato um contraponto à hegemonia dos EUA e seus aliados?
A união faz a força. Os Brics são 40% da população e 25% da produção mundial. Criaram uma nova arquitetura financeira para não depender do FMI nem do Banco Mundial. A Unasul deve fazer o mesmo - criando até, no futuro, a moeda única regional, para sermos menos dependentes dos centros de poder. Por que um juiz nos EUA pode quebrar a Argentina? Porque por eles passam todos os pagamentos [do mundo], que podem bloquear. Com um sistema alternativo, o sistema hegemônico perderia poder.
O senhor fala de moeda única desde 2006. O Banco do Sul, da Unasul, foi criado em 2007 e não funciona. A integração energética mal sai do papel.
Há coisas teoricamente impecáveis. Outra coisa é na prática, quando o tema envolve várias nações. Os Brics atuam há dez anos, são só cinco países e recém estão executando as coisas. Mas de fato não temos tempo a perder [na América Latina]. Temos que fazer coisas rapidamente. E não vamos rápido.
O senhor diz que há presidentes de países no continente que não têm interesse na integração sul-americana.
Não nos enganemos: a integração da América Latina, com visão independente, soberana e digna, é uma preocupação para os EUA. E já há uma restauração conservadora, da direita, das elites de sempre do continente, para brecar estes processos integracionistas e progressistas no interior de nossos países. E aí surgem contrapropostas à Unasul, como a Aliança do Pacífico [integrada por Chile, Peru, México e Colômbia], que é neoliberalismo puro.
Na última década, a bonança econômica mundial coincidiu com a chegada ao poder de lideranças de esquerda carismáticas como Lula e Hugo Chávez. Agora tudo mudou. A economia piorou. As lideranças não são as mesmas. O modelo não pode estar esgotado?
Começou um novo ciclo na América Latina quando Chávez chegou ao poder, em 1999, em plena noite liberal. Logo vieram Lula, Evo Morales na Bolívia, Tabaré Vázquez no Uruguai, Michelle Bachelet no Chile, Néstor Kirchner na Argentina, a revolução cidadã no Equador. Quem poderia imaginar, nos anos 90, que esses progressistas chegariam ao poder, quando a América Latina era puro Fujimori, Collor de Mello, Menem? Foi uma mudança de época. Mas temos dito: há uma restauração conservadora. A direita nacional e a internacional já superaram o aturdimento com a debacle do liberalismo e com nossos governos. Estão claramente articuladas. A direita equatoriana tem contato com a venezuelana, com a americana, que financia supostas ONGs, não sei se com a brasileira, tudo para nos combater.
Mas há os problemas reais internos de cada país.
Somos vítimas de nossos próprios êxitos. Olhe os espetaculares avanços no Brasil, sociais, de redução da pobreza. E veja os protestos que ocorreram contra Dilma e contra o Partido dos Trabalhadores. Há uma nova classe média que nos exige cada vez mais. Os meios de comunicação, que são instrumentos da direita, se aproveitam para dizer que nada vale, que o passado era melhor. Claramente há uma restauração conservadora que pode pôr fim a esse ciclo de governos progressistas. Precisamos estar muito atentos.
O senhor já disse que é preciso evitar personalismos na política. Pode concorrer a uma nova reeleição?
É preciso evitar. Mas, precisamente por essa restauração conservadora, há uma imensa responsabilidade sobre nossos ombros. Mas creia-me: como último recurso de nosso projeto está a minha reeleição em 2017.
A questão da imprensa é um tema sensível em qualquer parte do mundo e também na América Latina. Vários países, inclusive o Equador, aprovaram leis de regulação da comunicação.
O poder midiático se converteu em um poder político. Nossos adversários no Equador não são a direita, mas sim seus meios de comunicação. Nos apresentam como governos autoritários que perseguem jornalistas patrióticos que só querem dizer a verdade. E isso não é certo. Enfrentamos dia a dia a manipulação de informação de certos meios de comunicação em mãos da oligarquia. Sem nenhuma legitimidade democrática, querem impor a agenda política, querem submeter os governos, caluniam, manipulam. A sociedade tem que se defender disso.
O PT, que no Brasil lidera essa discussão, diz que se trata de garantir pluralidade, regulando concessões audiovisuais, o negócio, mas jamais o seu conteúdo. No Equador a lei não interfere também no conteúdo quando diz, por exemplo, que uma pessoa não pode ser "desprestigiada" na imprensa ou sofrer "linchamento midiático"?
Talvez nosso erro tenha sido não utilizar a palavra acosso em vez de linchamento. Mas está claramente descrito na lei o que é linchamento. E isso tem que ser regulado. Você não imagina os excessos que havia na imprensa do Equador. Se o diretor de uma empresa municipal cobrasse taxa de água de uma rádio, sofria um linchamento até ser tirado do cargo.
O excesso de um lado não pode criar, do outro, um desequilíbrio? O poder midiático é forte, mas o poder do Estado também o é.
Por isso há escrutínio público, há instâncias, uma Superintendência de Comunicação [Supercom], todos [os meios de comunicação] têm direito a defesa. E o que criticam? "Nos obrigaram a retificar [informações] 82 vezes." Não dizem que não mentiram! Estavam acostumados a mentir, a não dar direito de resposta, a ter o controle, a que os presidentes tremessem diante deles. Um projeto político ganhava as eleições, mas eles é que governavam, legislavam e julgavam. Acabou a festa. Quando lhe convém, a imprensa se denomina o quarto poder. E todo poder deve ser regulado pela sociedade, por meio de lei. Imagine-se o poder financeiro sem regulação, o poder político sem fiscalização. E até o poder religioso: de repente surge uma religião que permite sacrifícios humanos. E o único poder em que não se pode tocar é o midiático? Temos que superar esses tabus.
22 de julho de 2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/101829
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