Responsabilidade social das empresas
19/05/2001
- Opinión
Toda empresa é uma comunidade de pessoas voltadas à produção, administração e/ou
serviços. E nenhuma delas é uma ilha. Para bem funcionar, depende de uma teia
de relações com outras empresas, bancos, setores do poder público e a mídia.
Se os pontos de partida de uma empresa são a criatividade e o investimento do
empresário, o ponto de chegada é o público. O equilíbrio dá-se entre esses dois
pontos. Para o empresário, sua empresa pode ser apenas uma galinha dos ovos de
ouro, destinada a multiplicar o patrimônio de sua família. Para o público, a
empresa é sempre encarada como um serviço, seja de transporte, saúde ou turismo,
seja de produção de laranja, calçado ou material de escritório.
Um olhar egocêntrico sobre a própria empresa, tida apenas como a galinha dos
ovos de ouro, pode induzir o empresário ou o grupo empresarial a perder de vista
o contexto em que se situa o empreendimento. Essa cegueira de quem depende de
relações múltiplas, mas não percebe a teia em que se encontra inserido, coloca a
empresa numa situação de risco. Sobretudo ao ignorar os valores que fundam a
ética das relações pessoais e sociais vigentes na sociedade atual. É o caso do
empresário que tem duas caras: a pública, maquiada por notas fiscais e tributos
em dia, e a privada, atolada na prática de subornos, propinas, sonegações e
operações fraudulentas.
Conteúdo e forma
Uma empresa é a qualidade de seu produto ou serviço, somada à imagem que projeta
na opinião pública. Essa imagem é tão importante a ponto de mobilizar bilhões
de dólares anuais, através de agências de publicidade e veículos da mídia.
Uma empresa que mantém duas caras sabe que corre o sério risco de desabar sob a
perda de credibilidade. É o caso de empresas flagradas em delito por programas
de TV. Não há imagem publicitária que restaure a beleza desse rosto maculado.
Foi o caso da farmácia de manipulação de maior prestígio no Brasil, "Ao Veado
d¹Ouro", em São Paulo, flagrada falsificando medicamentos. A recente guerra
comercial entre Canadá e Brasil mostrou como uma informação negativa e falsa a
de que a carne brasileira poderia estar contaminada pela doença da "vaca-louca"
é uma arma poderosa capaz de fechar as portas do mercado a um produto.
A teia de relações da empresa tem seu ápice no contato com o público. Em outras
palavras, no mercado. E aqui dá-se uma contradição que, se não for bem
compreendida, pode comprometer a empresa.
Esta sabe que o jogo competitivo do capitalismo é uma batalha sem tréguas. Não
há solidariedade entre empresas, nem o concorrente demonstra a mínima compaixão
frente ao fracasso alheio. Por outro lado, as relações com o poder público e os
bancos também não são nada facéis. A burocracia emperra os negócios, sem lobby
não se avança, os fiscais nem sempre atuam com transparência. Feliz do
empresário que tem amigos poderosos, políticos e banqueiros interessados no bom
êxito de seus negócios!
O público, entretanto, não sabe nada disso, exceto uma minoria. Quando ele bebe
um refrigerante, dirige um carro ou usa um perfume, está em busca de um produto
de qualidade que favoreça sua auto-estima, seja em forma de saúde, elegância ou
rapidez na mobilidade.
Adquirir um produto é uma necessidade, material ou psicológica, ainda que esta
pareça supérflua aos olhos de terceiros. Manter-se fiel à marca do produto é
sinal de confiança na empresa. Imaginem se consumidores de enlatados
descobrissem que a sua marca preferida trabalha com embalagem cujo revestimento
interno contém estrogênio capaz de ocasionar alterações na conformação sexual
das gerações mais jovens! Ou que certos produtos agrícolas estão contaminados
por agrotóxicos que contêm DDT que, por sua vez, provocam atrofia dos órgãos
sexuais de fetos machos e redução dos espermatozóides dos adolescentes!
Uma empresa é o seu produto mais a sua imagem. E essa imagem é tanto mais
confiável quanto mais respaldada pela transparência na qualidade do produto.
Por isso, uma empresa que sonega informações ao consumidor, não leva a sério as
suas queixas, não reconhece nem corrige seus erros, caminha para a ruína,
sobretudo neste momento histórico em que o consumidor passa a ser ativo
controlador dos produtos e serviços que utiliza.
Código de ética
A teia de relações em que se situa a empresa é, contudo, muito mais vasta do que
o arco que se estende entre o empreendedor e o mercado. Uma empresa não pode
ignorar a conjuntura social e histórica em que se situa. Como uma família, ela
deve possuir um código de ética. Tais princípios devem valer tanto para a vida
interna da empresa, quanto para a sua inserção no contexto social em que atua.
Uma empresa não tem o direito de tratar seus funcionários como escravos,
exigindo-lhes riscos de vida ou horas-extras excessivas e, por vezes, sem
remuneração adequada. O empresário que vampirescamente suga todas as energias
físicas, psíquicas e intelectuais de seus empregados, cava a própria cova. É
provável que os funcionários se vinguem por outros meios ao alcance deles, como
prejudicar a qualidade do produto e do atendimento ao público, ou retirar
clandestinamente da empresa certos objetos. Quem de nós não gosta de ser bem
atendido num posto de gasolina ou no supermercado? Sei de um grande restaurante
em São Paulo cujos garçons, revoltados com o Ritmo intenso de trabalho, atiravam
no lixo restos de carne envoltos em saco plástico e, mais tarde, longe das
vistas do patrão, retiravam os sacos e levavam para casa suculentas peças de
filé mignonŠ
E de nada adianta o nariz empinado de quem, ao dar-se conta desses fatos, julga
que as classes subalternas não são confiáveis. O empregado que engana o patrão
está apenas reproduzindo o patrão que engana o fisco e a legislação, e até mesmo
o consumidor, quando introduz em seus produtos substâncias nocivas à saúde
humana. É como o garoto que, depois de uma surra, bate no cachorro, que bate no
gatoŠ
Empresa-comunidade
Uma empresa convencida de sua responsabilidade social não se restringe a cumprir
rigorosamente as leis trabalhistas. Ela avança na direção de constituir-se numa
comunidade. Não se trata aqui daquela concepção de reengenharia que, além de
querer que o funcionário vista a camisa da empresa, pretende também que ele
vista a peleŠ Trata-se de criar, dentro da empresa, espaços e métodos de crítica
e autocrítica, de modo que todos possam ter liberdade de opinar sem medo de
desagradar o patrão.
Em depoimento autobiográfico, Betinho, que era hemofílico, contava que,
clandestino sob a ditadura militar, ao trabalhar como operário numa fábrica de
vidro em São Paulo, inventou um processo engenhoso de lidar com vasilhas,
evitando cortar-se. Mas até que o patrão lhe desse ouvidosŠ Mais tarde, adotada
a invenção, a produção aumentou consideravelmente.
Quando cheguei a São Bernardo do Campo, em 1979, onde trabalho ainda hoje com a
Pastoral Operária, os operários da Volks brincavam: "Nunca compre um veículo
fabricado na segunda-feira após uma derrota do Corínthians no domingoŠ" Com
isso, revelavam a influência do fator humano na qualidade do produto.
Um trabalhador magoado ou irado com certeza não terá o mesmo rendimento daquele
que opera feliz o seu trabalho. Isso vale para aqueles que trazem de casa
problemas terríveis, angustiantes, como a doença grave de um filho, e não
encontram ninguém da área de recursos humanos disposto a ouvi-los e ajudá-los.
Como esperar um bom desempenho das mulheres que, na De Millus do Rio, fábrica de
roupas íntimas femininas, eram revistadas à saída do trabalho como ladras
potenciais?
A crise social
Transformar a empresa numa comunidade não consiste apenas em recusar mão-de-obra
infantil e oferecer aos funcionários boa alimentação, banheiros limpos,
transporte adequado e tratamento digno. Nem colônia de férias, cestas básicas e
brindes natalinos. É, sobretudo, inserir no quadro de alcance da empresa o
tendão de Aquiles de todo ser humano: a família.
Há uma lei no Brasil que obriga toda empresa, com mais de cinqüenta empregados,
a manter uma creche. Quem cumpre? Num dos colégios particulares em que estudei
havia um faxineiro analfabeto. Não é uma absurda contradição?
Se a empresa oferece à família oportunidades de educação e lazer, serviços de
saúde e qualificação profissional, possivelmente ela caminhará para se
transformar em comunidade. A elevação do clima de confiança terá seu reflexo no
bom andamento da empresa.
Ocorre que a empresa brasileira ou estrangeira operando em nosso país está
cercada por um vulcão de problemas sociais prestes a reativar-se. Somos 170
milhões de habitantes, dos quais 64 milhões são trabalhadores e, desses, 8%
encontram-se desempregados. Hoje, só 61,3% têm carteira assinada. O índice de
1992 era de 64%.
Enquanto na Europa a distância entre os mais ricos e os mais pobres é de 1 para
9, aqui é de 1 para 30. Segundo o IBGE (Pnad 99), a participação dos 10% mais
ricos na renda nacional é de 45,7%. Dos 10% mais pobres, 1%. O nosso salário
mínimo é um dos menores da América Latina, inferior ao da Argentina, Paraguai,
Uruguai e Chile. No Brasil, 19,9% da população têm renda familiar mensal per
capita de, no máximo, 1/2 salário mínimo; 21,9%, até 1 salário mínimo; e apenas
9,8% ganham mais de 5 salários mínimos.
A pobreza que atinge 52 milhões de brasileiros, somada à miséria de mais 35
milhões, não é culpa da indolência de nosso povo, nem do clima tropical do país
ou de nossa pouca inteligência ou cultura. É culpa de uma história que insiste
em manter o Brasil como nação periférica, dependente e, internamente,
excludente. Nossos governos jamais promoveram a reforma agrária, embora o
território possua dimensões continentais, com 600 milhões de hectares
agricultáveis.
Mesmo considerando que, hoje, a zona rural abriga apenas 20% da população
brasileira, é a agricultura que mais emprega mão-de-obra, cerca de 23%, bem
acima da indústria de transformação, que caiu de 28% para 12%, e pouco acima dos
serviços, com 20% da população economicamente ativa. Basta dizer que 1% dos
proprietários rurais são donos de 44% das terras do país. E segundo a TV Globo,
os alimentos desperdiçados entre a ponta da colheita e o mercado de consumo
dariam para abastecer os 35 milhões de brasileiros mais pobres.
O governo federal não tem uma política agrícola satisfatória e promove, a meu
ver, uma política equivocada de privatizações, como foi o caso das
telecomunicações que, como a Vasp, decaíram muito. O Brasil é mantido como
refém das imposições monetaristas do FMI, voltadas unicamente a satisfazer os
credores externos. Basta dizer que o orçamento federal de 2001, no montante de
R$ 1 trilhão, reservou apenas R$ 18 bilhões para investimentos e R$ 607 bilhões
para pagar os serviços da dívida pública!
Não defendo o calote, mas concordo com Tancredo Neves que a dívida externa não
pode ser paga com o sangue do povo. Se ao menos 1/3 dessa fortuna reservada aos
credores fosse acrescido à verba de investimentos, com certeza acabaríamos com a
miséria no país e, portanto, reduziríamos a violência urbana.
A globalização que prefiro qualificar de "globocolonização" exige maior
estreitamento de relações comerciais entre países. Segundo pesquisa da
jornalista Vivian Osuald, publicada em O Globo (9/7/00), se um empresário
brasileiro importar insulina, vital à sobrevivência de muitos pacientes, o
imposto será de 17%; se importar pérolas ou diamantes, apenas 13%. Quem importa
cadeiras de rodas paga 15% de imposto; quem importa alimentos para cães e gatos,
11%. Lentes de contato e armação de óculos exigem tributo de 21%; caviar, 19%.
Remédios para seres humanos, 43%; para animais, 25%.
A carga tributária do Brasil equivale a 33% do PIB, uma das mais altas do mundo,
sobretudo considerando a baixa qualidade dos serviços que o governo oferece.
Vide a saúde, inacessível para quem não dispõe de um plano privado. Segundo o
ministério da Saúde, só 35,5% dos trabalhadores têm plano de saúde. Dos 10%
mais ricos, 74,2% gozam deste privilégio. Dos 40% mais pobres, só 5,2% possuem
um plano de saúde.
O papel da empresa
Dentro dessa conjuntura, o que significa responsabilidade social da empresa? Em
primeiro lugar, envolver-se com projetos que visem minorar as contradições
sociais, como propõe o Instituto Ethos e fazem a Fundação Abrinq, a Fundação
Roberto Marinho e tantas outras instituições e empresas.
Há bons exemplos de empresas com responsabilidade social. Há tempos, fui
convidado a proferir palestra na DHL, empresa de serviços postais. Todos os
funcionários foram liberados no horário de trabalho e o vice-presidente, que me
recebeu, enfatizou em público a preocupação de elevar o nível de consciência
cidadã, mostrando-se indignado com a falta de reação dos paulistanos frente a um
prefeito acusado de corrupção.
Como a DHL, cresce o número de empresas que investem na cidadania de seus
quadros, ampliando o nível de cultura e de consciência cívica. Uma delas é o
Laboratório Aché, no qual estive há pouco para proferir palestra sobre "Crise da
modernidade e espiritualidade". Todos os funcionários da unidade de Guarulhos
foram convidados e o evento foi aberto pelo empresário Victor Siaulys, que fez
uma crítica contundente às empresas, como a Nike, que se expandem às custas de
procedimentos que estão longe de servir de exemplos para quem se pauta pela
ética.
No final do ano passado, a Ford do Brasil criou a Gerência de Responsabilidade
Social, integrada por um gerente e três assessores. Além de doações a projetos
sociais, a empresa passou a investir em educação e meio ambiente. Em termos
concretos, a Ford apóia o programa governamental de Alfabetização Solidária
(considerado ainda ineficaz por entendidos); o projeto MOVA Movimento de
Alfabetização de Jovens e Adultos, monitorado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC; o projeto Meu Guri, patrocinado pela Força Sindical e pelo Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo, e que visa retirar crianças da rua. Na área
ambiental, desde 1997 existe o Prêmio Ford de Conservação Ambiental e, agora, a
empresa investe em estudos de desenvolvimento sustentável em áreas como Mata
Atlântica, Pantanal, Cerrado e Floresta Amazônica.
Por razões éticas, a Xerox do Brasil retirou-se do Espírito Santo, em fevereiro
deste ano. Em carta ao governador do estado, denunciou que fora procurada por
pessoas que ofereceram uma "intermediação onerosa" para liberar financiamentos
retidos no valor de R$ 20 milhões e sustar pagamentos de impostos que, aliás, a
empresa já havia pago.
Infelizmente a Shell Brasil não teve igual procedimento ao se comprovar que
contaminou a água e o solo do bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia. Demorou
a assumir os exames laboratoriais e o tratamento de saúde dos moradores do
bairro, sem que ainda esteja claro como serão as indenizações às vítimas da
poluição ambiental.
Exemplos positivos no exterior são os chamados "fundos éticos" que, na França,
movimentam no mercado financeiro cerca de US$ 285 milhões por ano. São
selecionadas empresas que potencialmente trarão benefícios de alcance social,
sem prejudicar pessoas ou instituições. Para obter recursos desse fundo exigem-
se alta rentabilidade e impecáveis políticas trabalhista e ambiental.
O Brasil talvez seja o país do mundo com maior número de movimentos sociais.
Todos eles, dos que atuam junto aos sem-terra ou teto, aos que se empenham em
questões ecológicas, precisam de parceria com empresas. Isso traria benefícios
para ambos os lados. Mas, para que se torne realidade, faz-se necessário
quebrar tabus e preconceitos e um dar o passo na direção do outro. Uma coisa é
certa: o Projeto Brasil, de uma nação justa, livre, solidária e feliz, ainda é
uma utopia. E o que vemos à nossa volta exige urgentemente que arregacemos as
mangas para transformar o sonho em realidade.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105165
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