Comunhão holística

20/06/2001
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Em julho, Campinas abrigará, de 19 a 22, o 14º Congresso Eucarístico Nacional. Eucaristia significa "ação de graças". É o sacramento central da vida cristã. Entre os fiéis, não se costuma dizer: "Fiz a primeira eucaristia". O habitual é: "Fiz a primeira comunhão". Quem vai à missa diz: "Vou comungar". Quase nunca fala: "Vou receber a eucaristia". Comunhão - eis uma palavra abençoada. Expressa bem o que a eucaristia significa. Comunhão vem da mesma raiz que a palavra comunicar. Se comungo as mesmas idéias de uma pessoa é porque sinto profunda afinidade com ela. Ela diz o que penso e exprime o que sinto. Na eucaristia comungamos: (1) com Jesus; (2) com os nossos semelhantes; (3) com a natureza; e (4) com a Criação divina. 1. Comungar com Jesus Jesus instituiu a eucaristia em vários momentos de sua vida. O mais significativo deles foi a Última Ceia, quando tomou o pão, repartiu entre seus discípulos e disse: "Tomai e comei, pois isto é o meu corpo". A partir daquele momento, todas as vezes que uma comunidade cristã reparte entre si o pão e o vinho, abençoados pelo sacerdote, é o corpo e o sangue de Jesus que ela está compartindo. A palavra "companheiro" significa "compartir o pão". Na eucaristia, compartimos mais do que o pão; é a própria vida de Jesus que nos é ofertada em alimento para a vida terna, deste lado, e eterna, do outro. Ao receber a hóstia consagrada - pão sem fermento - os cristãos comungam a presença viva de Jesus eucarístico. Nossa vida recebe a vida dele que nos revigora e fortalece. Tornamo-nos um com ele ("Šque todos sejam um" (Jo 17,21). Ao instituir a eucaristia na Última Ceia, Jesus concluiu: "Fazei isto em minha memória". Fazer o quê? A missa? A consagração? Sim, mas não apenas isso. Fazer memória é sinônimo de comemorar, rememorar juntos. Ao comemorar os 500 anos da invasão portuguesa, o Brasil deveria fazer memória do que, de fato, ocorreu: genocídio indígena, tráfico de escravos, exclusão dos sem-terra etc. Fazer algo em memória de Jesus não é, portanto, apenas recordar o que ele fez há dois mil anos. É reviver em nossas vidas o que ele viveu, assumindo os valores evangélicos, dispostos a dar o nosso sangue e a nossa carne para que outros tenham vida. Quem não se dispõe a dar a vida por aqueles que estão privados de acesso a ela, não deveria se sentir no direito de aproximar-se da mesa eucarística. Só há comunhão com Jesus se houver compromisso de justiça com os mais pobres, "pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê" (I Jo 4,20). 2. Comungar com os nossos semelhantes A vida é o dom maior de Deus. "Vim para que todos tenham vida e vida em plenitude" (Jo 10,10). Não foi em vão que Jesus quis perpetuar-se entre nós naquilo que há de mais essencial à manutenção da vida humana: a comida e a bebida, o pão e o vinho. O pão é o mais elementar e universal de todos os alimentos. O vinho era bebida de festa e liturgia no tempo de Jesus. De certo modo, o pão simboliza a vida cotidiana e, o vinho, aqueles momentos de profunda felicidade que nos faz sentir que vale a pena estar vivos. No entanto, há milhões de pessoas que, ainda hoje, não têm acesso à comida e à bebida. O maior escândalo deste início de século e de milênio é a existência de pelo menos 800 milhões de famintos entre os 6 bilhões de habitantes da Terra. Só no Brasil, 40 milhões estão excluídos dos bens essenciais à vida. E milhões trabalham de sol a sol para assegurar o pão de cada dia. Em toda a América Latina morrem de fome, a cada ano, cerca de 1 milhão de crianças com menos de 5 anos de idade, das quais 400 mil nascidas no Brasil. A fome mata mais que a aids. No entanto, a aids mobliza campanhas milionárias e pesquisas científicas caríssimas. Por que não há o mesmo empenho no combate à fome? Por uma simples razão: a aids não faz distinção de classe social, contamina pobres e ricos. A fome, porém, só afeta os pobres. Não se pode comungar com Jesus sem comungar com os que foram criados à imagem e semelhança de Deus. Fazer memória de Jesus é fazer com que o pão (símbolo de todos os bens que trazem vida) seja repartido entre todos. Hoje, o pão é injustamente distribuído entre a população mundial. Basta dizer que 80% dos bens industriais produzidos no mundo são absorvidos por apenas 20% de sua população. Ou seja, se toda a riqueza da terra fosse um bolo dividido em 100 fatias, 1 bilhão e 600 milhões de pessoas ficariam com 80 fatias. E as 20 fatias restantes teriam de ser repartidas para matar a fome de 4 bilhões e 400 milhões. Basta dizer que apenas 4 homens, todos dos EUA, possuem uma fortuna pessoal superior à riqueza somada de 42 nações subdesenvolvidas, que abrigam cerca de 600 milhões de pessoas! No Brasil, os 20% mais pobres (32,6 milhões de pessoas) dividem entre si 2,5% da renda nacional, isto é, R$ 22,5 bilhões, considerando que o PIB é de R$ 900 bilhões. Os 20% mais ricos abocanham 63,4% da renda nacional, cerca de R$ 570,6 bilhões! Há um abismo de 25 degraus entre os mais ricos e os mais pobres! Segundo o Banco Mundial, 10% da população brasileira (16,3 milhões de pessoas) possuem 50% da renda nacional. E 1% (1,63 milhão de pessoas) embolsa 15% da renda (cerca de R$ 135 bilhões). Em pelo menos três episódios evangélicos Jesus deixou claro que, comungar com ele, é comungar com o próximo, sobretudo com os mais pobres: a) No "Pai Nosso" ensinou-nos uma oração com dois refrões: "Pai Nosso" e "pão nosso". Não posso chamar Deus de "Pai" e de "nosso" se quero que o pão (os bens da vida) seja só meu. Portanto, quem acumula riquezas, arrancando o pão da boca do pobre, não deveria sentir-se no direito de se aproximar da eucaristia; b) No seu encontro com o homem rico (Mc 10, 17); c) No capítulo 25, 31-44 de Mateus, quando sujeita a salvação ao serviço libertador aos excluídos, com quem se identifica; d) Na multiplicação dos pães (Mc 6,30-44). 3. Comungar com a natureza De onde vem a vida humana? O livro do Gênesis, que significa "livro das origens", ou "livro da evolução", narra que Deus criou o mundo em sete dias. Sete, na tradição hebraica, representa "muitos". Os nossos pecados serão perdoados, não apenas sete, mas setenta e sete vezes (Mt 18,21-22). É uma maneira de ressaltar que a misericórdia de Deus é infinita. A Criação, portanto, foi um processo, assim como o surgimento de uma mangueira. A semente contém a árvore, como a árvore contém a semente. De uma pequena semente de manga brota uma árvore forte, alta e frondosa. Do mesmo modo, Deus criou o Universo. De um "ovo" primordial, que quebrou há 15 bilhões de anos - provocando o Big Bang ou a Grande Explosão - surgiram todos os elementos que formam a matéria do Universo, inclusive nós, seres humanos. Observe o seu corpo. De que é feito? De células. Trilhões de células. Da fusão de duas células - o espermatozóide e o óvulo - nasce o ser humano, homem ou mulher. Como a semente contém a mangueira em potencial e o ovo, a galinha, inclusive com o seu cacarejar, o feto encerra o ser humano completo - membros e órgãos, inteligência e aptidões. À medida que as células se desenvolvem, o corpo cresce e o cérebro se forma, despertando a consciência. De que são feitas as nossas células? De moléculas. Todo ser vivo - gente, animais, plantas - é feito de células. Todo ser não-vivo - areia, água, terra, pedra - é feito de moléculas. A célula e, portanto, a vida precisam de oxigênio para viver. Na Lua, há pedras, mas não há vida, porque o oxigênio é insuficiente. De que são feitas as moléculas? De átomos. Tudo que existe no Universo - das estrelas ao nosso corpo, dos colibris às montanhas - é feito de átomos. Átomos são os tijolos da Criação. Na natureza há 92 átomos. Pode-se compará-los às 26 letras do alfabeto. Com essas 26 letras, a palavra de Deus pode ser lida na Bíblia, os jornais divulgam todo tipo de noticia, Guimarães Rosa retratou o espírito de Minas em sua obra. Do mesmo modo, com 92 átomos se faz toda a escrita da natureza, dos peixes aos macacos, da chuva às pedras preciosas. Portanto, o nosso corpo é feito de células, que são feitas de moléculas, que são feitas de átomos. E onde são feitos os átomos? Num único forno: o calor das estrelas. Explico: imagine-se uma padaria. Quase tudo ali é feito de uma única matéria-prima - a farinha de trigo. Com ela se fazem pães e bisnagas, bolos e tortas, biscoitos e doces. Do mesmo modo, a farinha de trigo do Universo é o átomo de hidrogênio, o número 1. À medida que ele cozinha no calor das estrelas, muda de "ponto" (se não sabe o que é "ponto" de um molho ou doce, pergunte a uma cozinheira) e assim adquire nova qualidade: o átomo de hidrogênio transforma-se em átomo de hélio, o hélio em lítio, o lítio em oxigênio etc. Isso significa que todos nós somos feitos de matéria estelar. Trazemos em nosso corpo 15 bilhões de anos da história ou da evolução do Universo. Os átomos de nosso corpo já foram mares e vulcões, águias e serpentes, carvalhos e rosas (experimente olhar uma criança de rua consciente de que ela traz, em si, 15 bilhões de anos!). Toda a Criação está, pois, entrelaçada, formando uma única malha. Tudo que existe, pré-existe e subsiste. Daí falarmos em Universo, e não em Pluriverso. Essa unidade faz o Cosmo - termo grego que significa "belo", e está na raiz da palavra cosmético, aquilo que traz beleza. De certo modo, o nosso corpo reproduz a geografia do Universo. Ou pelo menos do planeta Terra. Os mesmos elementos químicos que se encontram na Terra acham-se também em nosso corpo. Nosso corpo e a Terra têm a mesma proporção de água: 70%. Como a Terra, nosso corpo possui protuberâncias e grutas, ondulações e sistemas de irrigação, e até matas em forma de pêlos que protegem a fonte da vida. Somos filhos da Terra. Ela é a nossa mátria. Tem 4,5 bilhões de anos. Nela, a vida surgiu há 3,5 bilhões de anos; e a vida humana, há cerca de 2 milhões de anos. Já reparou que a nossa vida é uma respiração boca-a-boca com a natureza? Do nascimento à morte, jamais deixamos de respirar. Morreríamos se não absorvêssemos o oxigênio que nos é fornecido pelas plantas e algas dos oceanos. Se as florestas forem destruídas e os oceanos, contaminados, a vida na Terra desaparecerá. E quando expiramos, soltamos ar pelas narinas e pela boca, devolvendo gás carbônico à natureza. As plantas e os plânctons nutrem-se de gás carbônico. Eis a respiração boca-a-boca. Vejamos outra dimensão eucarística da nossa relação com a natureza. Impossível viver sem comida e bebida. Toda a comida é uma vida que morreu para nos dar vida. O arroz que comemos no almoço é um cereal que morreu para nos dar vida. A carne, um animal que morreu para nos dar vida. O vinho, uma fruta que foi esmagada para alegrar o nosso coração. No ato de nutrição há um caráter eucarístico. Comer é comungar. O que morreu "ressuscita" em nova qualidade de vida. Agora, a batata é carboidrato em meu organismo, e a carne, proteína. Vivo porque algo morreu para me dar vida. Em suma, viver é um movimento eucarístico. Nada pior do que comer sozinho. É melhor quando há mais de uma pessoa à mesa (missa rima com mesa; vou á missa, vou à mesa). Pois, ao me alimentar, comungo com outro que também se alimenta. Dou a ele um pouco do meu ser, da minha amizade, das minhas idéias, bem como acolho e me nutro do que ele tem a me dar. Pois o ser humano não se alimenta apenas de bens materiais (verdura, cereal, máquinas, equipamentos). Alimenta-se também de bens simbólicos (religião, arte, amor etc). São os bens materiais que tornam a vida possivel como fenômeno biológico. São os bens simbólicos que a tornam bela, plena de sentido. Dizia o escritor cubano Onélio Cardozo que o ser humano tem duas grandes fomes: a de pão e a de beleza; a primeira, é saciável, a segunda, infindávelŠ 4. Comungar com a Criação divina No corpo de Cristo todo o Universo encontra-se resumido. Ele é o ápice da Criação. Por isso, não é só o nosso ser que será salvo. Toda a matéria que constitui o Universo será resgatada pela redenção trazida por Jesus. Como diz são Paulo, "a Criação, em expectativa, anseia pela revelação dos filhos de Deus" (Rom 8,19). Esse Universo em que vivemos, com suas 100 bilhões de galáxias, é o ventre de Deus, no qual estamos sendo gestados para a vida eterna. Comungar com a Criação divina é contemplá-la com os olhos de quem vê em todas as coisas os sinais do Criador. Como dizia santo Agostinho, Deus nos ofertou dois livros: a Bíblia e a natureza. O primeiro nos permite compreender o caráter sagrado do segundo. Contudo, temos tratado a natureza como se ela fosse um mero objeto, do qual se deve extrair proveito e lucros. Milhares de espécies vivas desaparecem definitivamente a cada ano. Rios, lagoas e mares estão sendo poluídos. Gastamos perdulariamente os recursos naturais, como a água, como se fossem inesgotáveis. Ao agir com descaso pela preservação do meio ambiente damos as costas às gerações futuras, que serão vítimas dos desequilíbrios causados hoje. Se olhássemos a natureza como nossa casa ("oikos", em grego, de onde deriva a palavra ecologia), pleroma ou extensão do corpo de Deus, com certeza teríamos uma atitude mais reverencial a esses bens criados para a nossa felicidade, e não para a ganância de alguns. No caso do Brasil, o bem que mais falta ao nosso povo é a terra. Há cerca de 15 milhões de sem-terra em nosso país. No entanto, 44% das terras produtivas do Brasil estão nas mãos de apenas 1% dos proprietários rurais. A eucaristia simboliza o acesso de todos à comida e à bebida, aos bens da vida, irmanados em torno da mesma mesa e unidos sob as bênçãos de Deus, nosso Pai. Todas as vezes que uma sociedade exclui desse acesso uma parcela de sua população, caminha na contramão da direção eucarística. Nega o dom de amor de Deus, em Cristo. Nesse sentido, toda luta por justiça, por direitos humanos, por maior igualdade social, possui um caráter eucarístico. É o próprio corpo de Cristo que é profanado na miséria do pobre ou na contaminação da natureza. Pois como assinalam os Atos dos Apóstolos, "nele vivemos, nos movemos e existimos" (17,28). A Criação é, toda ela, sacramento divino, coroada pelo ser humano, imagem e semelhança de Deus.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105224
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