Sou eu o deficiente?
11/08/2001
- Opinión
Porque sou tetraplégico, preso a uma cadeira de rodas, chamavam-me de
"aleijado". Por sofrer de cegueira, fui considerado "deficiente físico".
Psicótico, trataram-me como um bicho de sete cabeças. Agora, por ter
perdido um braço num acidente, cuja pancada deixou-me leso, sou
qualificado de "portador de deficiências física e mental".
Mudam os termos, mas não a cultura que ponha fim aos preconceitos que me
cercam. Antes, diziam que sou mongolóide; agora sofro de síndrome de
Down. Era leproso; agora tenho hanseníase.
Nesta sociedade contaminada pela síndrome de Damme, e que cultua a
idolatria dos corpos - ainda que a cabeça se assemelhe à do camarão - sou
confinado, léxica e socialmente, às limitações que carrego.
Se saio à rua, pouco encontro rampas, em calçadas e prédios, para passar
com a minha cadeira de rodas. Com freqüência, há um carro estacionado na
vaga a mim reservada. Temo um novo atropelamento ao cruzar a rua, pois o
tempo do semáforo e a fúria dos motoristas não respeitam a lentidão deste
corpo que se apóia na bengala.
Muitas vezes, na rua, dependo da solidariedade anônima para subir no
ônibus ou poder sentar no metrô. À noite, sonho com fantasmas gritando em
meus ouvidos:
‹ Fique em casa! Sua debilidade é o seu cárcere! Não se atreva a
imiscuir-se neste mundo de corpos esbeltos e saudáveis, sarados e
curados, lindos e louros. Não se manca que esta nação cultua heróis que
ousaram desafiar os limites do corpo? O Brasil não tem nenhum santo
canonizado, embora o Peru tenha um casal, Rosa de Lima e Martinho de
Porres. Nunca o prêmio Nobel chegou a estas terras. Só em poesia, o Chile
ostenta dois, Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Em compensação, chutamos a
bola como ninguém (embora não estejamos em nossos melhores diasŠ),
corremos na Fórmula 1 numa velocidade que nenhum outro mamífero alcança;
erguemos os braços vitoriosos em quadras de tênis e vôlei. Você, nem
herói nacional pode ser! Se ao menos pudesse requebrar sobre o gargalo de
uma garrafa, haveria de merecer o seu minuto de fama. Fique em casa!
Não fico. Nem aceito que minhas limitações permaneçam estigmatizadas por
expressões equívocas. Não sou um portador de deficiência. Sou um portador
de inteligência, aptidões e talentos. De dignidade e cidadania. Por que
não qualificam de deficientes visuais aqueles que usam óculos?
Sou um PODE portador de direitos especiais. Todos temos direitos
universais. Tenho direito também aos especiais: equipamentos sociais,
prioridade no atendimento público, estacionar em local proibido etc.
Quero ser definido, não pela carência que atinge a minha saúde, mas pelo
direito que a sociedade está obrigada a me assegurar.
Neste mês de agosto, é a mim que o Ano Internacional do Voluntariado
dedica sua atenção. O Comitê Brasileiro de Voluntariado e o Centro de
Voluntariado de São Paulo esperam que a campanha deste mês sirva para
mobilizar todos aqueles que podem ajudar-me a ser reconhecido como
cidadão.
Como qualquer pessoa, preciso trabalhar. Sei que não tenho aptidão para
certas tarefas, devido ao meu descontrole motor. Mas de quantas coisas
sou capaz, graças à minha inteligência e cultura, habilidade e talento!
Sei pintar com a boca ou com os dedos dos pés; posso ensinar idiomas ou
computação sem me erguer da cadeira; sou bom no controle de qualidade dos
produtos.
O que seria de nós se Beethoven fosse discriminado como surdo e Stephen
Hawking como aleijado? E se Van Gogh permanecesse internado após cortar a
própria orelha? E se Lars Grael ficasse em casa lamentando a perda de uma
perna?
Deficiente é quem traz, na vida, um déficit com quem depende de
solidariedade: o pai que ignora o filho doente; a mãe que se envergonha
da filha excepcional; o empresário que exige "boa aparência" de seus
funcionários; o poder público que não constrói equipamentos, nem põe na
cadeia quem discrimina um portador de direitos especiais.
Vontade de fazer as coisas eu tenho. Capacidade também. Sei que posso,
sou um PODE. Só faltam oportunidades e quem reconheça que, aquém dos
direitos especiais, tenho também direitos universais.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105297
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