A opção brasileira hoje
28/08/2001
- Opinión
Minha comunicação gira em torno das bases para a construção de um
modelo alternativo de desenvolvimento. Este tem sido uma espécie de
ponto cego das oposições, não só aqui, mas em muitos países. A crítica
ao neoliberalismo está bastante desenvolvida e madura, mas ainda temos
dificuldades em imaginar e propor outro caminho. O descompasso é cada
vez mais chocante: as experiências neoliberais apodrecem, mas as
alternativas a elas permanecem mal formuladas. Em casos como o da
Argentina isso tem gerado situações que seriam caricatas, não fossem
tremendamente trágicas.
A verdade é que não sabemos bem como sair desse modelo. Resulta
daí um sentimento de impotência, às vezes ocultado pela retórica,
outras pela ênfase exclusiva na denúncia, outras ainda por formulações
ambíguas, hesitantes e inconsistentes. Esse sentimento tem múltiplas
causas. Destaco duas delas, que se incorporaram aos nossos hábitos de
pensamento e, por isso, quase não têm sido objeto de crítica. A
primeira é a hegemonia, francamente abusiva, dos especialistas em
economia – e, mais particularmente, em macroeconomia – nesse debate.
Nos últimos vinte anos, nos acostumamos a pedir que os economistas
apontem as soluções para a crise que se prolonga. Trata-se de um erro.
É claro que eles têm uma contribuição a dar – tratarei dela mais
adiante –, mas seu modo de pensar é muito limitado. É fácil constatar
isso. Em primeiro lugar, eles não levam em conta o espaço. Ouçam o que
os economistas dizem e façam a si mesmos a seguinte pergunta: se, em
vez de ter 8,5 milhões de km2, o Brasil tivesse 500 mil km2, o que
mudaria? Nada. Se esse território tivesse outra configuração, outra
posição geográfica, outra dotação de recursos, o que mudaria? Nada. Os
modelos macroeconômicos ignoram o espaço. Em segundo lugar, não levam
em conta o tempo. Quem comanda o atual processo de acumulação é o
capital financeiro, que é fluido, móvel, veloz, em grande parte
fictício, centrado em operações de curto prazo. Ofuscados por esses
fluxos, os economistas perderam de vista a escala do longo prazo, que
é a verdadeira escala em que as sociedades e as nações – que, como se
sabe, não são fluidas, nem móveis, nem fictícias – se constroem. Por
fim, esses economistas não levam em conta as pessoas. Tivesse o Brasil
20 milhões de habitantes, em vez de 170 milhões, os modelos
macroeconômicos seriam basicamente os mesmos.
Caímos, assim, em uma armadilha intelectual, ao conceder o
monopólio de descrição da realidade a um pensamento que não leva em
conta o espaço, o tempo e as pessoas, que são justamente os elementos
essenciais da realidade que se quer descrever. Uma sociedade é um
grupo humano que estabelece entre si relações múltiplas, que existe em
um espaço definido, com o qual também se relaciona de forma múltipla,
e cujo presente é o ponto de interseção de duas dimensões temporais –
o passado e o futuro – que se projetam longe. Tudo isso se perde, em
um discurso que retém e valoriza apenas os elementos que dizem
respeito à acumulação de capital e, dentro dela, especialmente à
acumulação financeira. Esses elementos, altamente selecionados, passam
a ser considerados a realidade em si, ou pelo menos o núcleo relevante
da realidade, em torno do qual somos levados a raciocinar. Nossas
sociedades mergulham em crises profundas, de alcance histórico e de
muitas dimensões – crises de destino, de projeto, de identidade, de
civilização – e, enquanto isso, acompanhamos as oscilações das bolsas
de valores, a cotação diária do dólar, variações milimétricas nas
taxas de juros americanas, renegociações de empréstimos que apenas
preparam novas renegociações, em condições ainda piores, e demais
variáveis dessa enlouquecida macroeconomia do curto prazo, que não nos
oferece saída a partir de si mesma. Quando somos desafiados a buscar
alternativas, começamos logo a debater como gerenciar os fluxos
financeiros – “sem romper contratos”, como está na moda dizer –, e
logo nos perdemos nesse atoleiro. Não é um procedimento neutro, pois
contém em si um reconhecimento implícito – e uma legitimação – da
hegemonia do capital financeiro sobre nossas sociedades. A
predominância desse pensamento é um componente da crise, uma expressão
da crise, e por isso não pode conter uma solução para ela.
Um segundo elemento que contribui para fortalecer aquele
sentimento de relativa impotência é a idéia de que o futuro só pode
ser pensado como resultante da soma, ou da sucessão, de operações de
curto prazo, tanto na economia como na política. Nessa perspectiva,
que boa parte da oposição assimilou, o futuro não contempla
descontinuidades, mutações ou rupturas. Daí a tendência a
raciocinarmos construindo cenários, que são apenas prolongamentos,
considerados possíveis ou prováveis, do presente. Não se faz história
dessa forma. Faz-se apenas pequena política. O processo histórico
sempre combinou períodos em que predominam desenvolvimentos
processuais e períodos marcados por mutações. O abandono dessa
percepção representa, na prática, a apologia das instituições de poder
em vigor, que se traveste de apologia da democracia, numa operação
ideológica perfeitamente vulgar, mas dotada de formidável eficácia.
Graças a ela, nossa democracia restrita – impotente para promover
justiça social, alicerçada sobre uma deformação sistemática da
representação, alimentada pelo esvaziamento da participação –, nossa
democracia restrita torna-se uma vestal intocável. Por trás da
idolatria a uma idéia genérica de democracia, cada vez mais
desconectada da vida real das pessoas, o que se defende é a
perpetuação do sistema de poder resultante da contra-reforma
conservadora que predominou na última década.
As forças políticas que reproduzem em seus programas a hegemonia
do enfoque macroeconômico e defendem a intocabilidade do sistema de
poder são representantes do status quo. Sem colocar em xeque esses
pressupostos não há, de fato, como construir alternativas ao
neoliberalismo. O debate, nesse caso, se resume a como gerenciá-lo.
* * *
Inicia-se no continente uma década de grande crise. Não preciso me
estender sobre a crise econômica stricto sensu. Sob esse aspecto,
fechamos em 1999 a segunda década perdida consecutiva. A primeira
delas – a de 1980 – havia sido marcada pela crise das dívidas
externas, que desequilibrou profundamente os Estados nacionais e logo
se desdobrou em uma crise inflacionária prolongada e grave. A segunda
– a de 1990 –, paradoxalmente, se iniciou com as renegociações
daquelas mesmas dívidas externas, que num passe de mágica
desapareceram do debate, pois teriam deixado de ser um problema.
Feitas as renegociações, o continente pôde voltar a receber grandes
somas de recursos do exterior, o que, em última análise, permitiu o
controle da inflação. Esse controle foi decisivo para legitimar, em
certo momento, a hegemonia do modelo patrocinado pelas instituições
mais importantes do mundo capitalista.
Hoje podemos dizer, sinteticamente, que esse modelo foi muito
eficaz para desconstruir a forma de funcionamento anterior de nossas
economias – com suas potencialidades e problemas –, mas fracassou em
reconstruir outra forma delas funcionarem com um mínimo de
sustentabilidade. Isso fica claro, no caso brasileiro, quando
retomamos a antiga metáfora do “tripé”. O Estado, que durante décadas
comandou os conglomerados estratégicos e investiu pesadamente em
infra-estrutura, hoje gasta parcela crescente de sua receita em juros
aos bancos, tornando-se refém do sistema financeiro, que lhe impõe
sucessivos “ajustes fiscais”. As empresas multinacionais pouco
investem na criação de capacidade nova, seja porque agora o mercado
brasileiro está aberto, sendo mais atraente importar, seja porque se
tornou muito lucrativo comprar instalações já existentes, privadas ou
públicas. O setor privado nacional, por sua vez, controla setores que
enfrentam prolongada crise (como a agricultura) ou estão em processo
de rápida desnacionalização (como os bancos).
Nenhum agente, ou combinação de agentes, comanda mais o
investimento em grande escala, de modo que o sistema econômico
brasileiro assumiu uma configuração estrutural que não é favorável ao
desenvolvimento. Alguns setores se modernizam e há miniciclos de
crescimento, como houve nas décadas de 1980 e 1990, mas tudo indica
que estamos iniciando uma nova década perdida, que será, em seqüência,
a terceira.
Até aqui, nenhuma novidade. Mas, sobre qual sociedade desabará
esta década de grande crise? Creio que ninguém sabe. O Brasil que
temos pela frente é um país muito mudado – e muito desconhecido. É
como um quebra-cabeças que ninguém montou. Peças isoladas, ou
encaixadas em pequenos grupos, nos trazem fragmentos de informação,
mas não enxergamos uma nítida imagem de conjunto. Da trajetória
percorrida no século XX, até cerca de vinte anos atrás, já temos
interpretações mais ou menos coerentes, mais ou menos consagradas. De
lá para cá estamos em vôo cego. Algumas mudanças estruturais,
relativamente recentes, parecem ser importantes.
Já me referi à primeira, embora sem nomeá-la claramente. Ainda se
situa no terreno da economia. Trata-se do seguinte: durante a maior
parte do século XX, o Brasil foi uma economia capitalista dependente,
geradora de pobreza, concentradora de renda e de propriedade, mas
também foi, ao mesmo tempo, uma economia extraordinariamente dinâmica.
Entre 1930 e 1980, mantivemos uma taxa média de crescimento de 7% ao
ano. Isso significa que dobramos o produto interno bruto brasileiro em
cada década, durante cinco décadas sucessivas. Foi uma façanha. Hoje,
continuamos a ser uma economia dependente, desigual, produtora de
pobreza, porém de baixo crescimento. Ficamos com o que havia de ruim,
perdemos o que havia de melhor. Isso tem uma série de conseqüências.
Enfoquemos uma. O crescimento anterior foi puxado pela indústria, que
naquele período cresceu 9,5% ao ano, em média. Para crescer nessa
taxa, a indústria brasileira, até 1980, contratava, por ano, 6% a mais
de força de trabalho. Quase dobrávamos o nosso contingente de
trabalhadores industriais a cada dez anos. Como o crescimento
populacional era de 2,0% a 2,5% ao ano, a indústria trazia gente dos
setores e regiões atrasados, de baixa produtividade, para dentro do
segmento moderno da economia.
Pois bem: na última década expulsamos da indústria, quase que de
uma só vez, 50% do seu contingente de força de trabalho. Vou repetir:
ao longo de cinqüenta anos, a cada dez anos dobrávamos a absorção de
força de trabalho pela indústria; nos dez últimos anos, jogamos fora
50% de todo o estoque de força de trabalho industrial. Isso tem duas
conseqüências óbvias: a primeira é de que a força de trabalho no
Brasil não está mais vindo das regiões e setores atrasados para dentro
do pólo dinâmico e moderno. Ela está saindo do pólo dinâmico e moderno
na direção de outras formas de inserção, socialmente mais atrasadas e
de mais baixa produtividade, pois continuamos a ser uma economia em
que o progresso técnico se distribui de modo extremamente desigual. A
trajetória típica do brasileiro da década de 1950 era vir do Nordeste
para São Paulo e acabar empregado na indústria, ou em serviços ligados
à indústria, onde as relações de trabalho têm mais alto grau de
formalização e os salários médios tendem a ser maiores. Hoje, a
trajetória é inversa: vai da indústria e das áreas dinâmicas para os
setores e áreas de baixa produtividade, ou então, simplesmente, para o
desemprego aberto. Alguns segmentos, que empregam pouco, se
modernizam. Na média, porém, a força de trabalho está sendo alocada em
níveis decrescentes de produtividade, agravando a velha
heterogeneidade, típica do subdesenvolvimento.
Um segundo elemento novo, desconhecido até recentemente e
associado ao primeiro, é a formação de um enorme bolsão de desemprego
estrutural. Na história do Brasil, nunca o desemprego havia sido
especialmente alto, mesmo em conjunturas de recessão. Hoje, temos
taxas que variam de 16% em Porto Alegre, que é a região metropolitana
com a menor taxa, a 25% em Salvador e Recife, sendo que nas periferias
dessas regiões as taxas são significativamente maiores. Este novo
contingente de desemprego estrutural, ao contrário do que se diz, não
decorre de uma suposta baixa qualificação da força de trabalho. É
errada a idéia, difundida pela mídia e aceita por muitos companheiros
nossos, de que o trabalhador brasileiro não está preparado para o
nível de qualificação que a economia está demandando. Isso é verdade
em alguns setores pequenos, de alta tecnologia, que precisam de pouca
gente. Mas, quando abrimos as estatísticas – para isso, Relação Anual
de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho é a grande
fonte –, verificamos o seguinte: o brasileiro ou brasileira que perde
o emprego é, normalmente, uma pessoa de 35 a 45 anos de idade, chefe
de família, com experiência profissional e com algum grau de
qualificação: operador de máquinas, ferramenteiro, bancário, e assim
sucessivamente. Quando procuramos saber que vagas a economia
brasileira vem abrindo, mesmo insuficientes, verificamos que são
empregos no setor de serviços sem qualificação: balconistas,
vigilantes, vendedores, e assim sucessivamente. A força de trabalho
brasileira é subqualificada em relação à Terceira Revolução
Industrial, mas não em relação ao tipo de emprego que está sendo
criado no Brasil, uma economia que vem perdendo capacidade de agregar
valor a cadeias produtivas cada vez mais internacionalizadas.
* * *
Recuperando: uma primeira mutação estrutural importante no Brasil
recente, que vai ter conseqüências sobre a década que se inicia, é
nossa passagem da condição de economia dinâmica para a condição de
economia de baixo crescimento, que consegue ter alguns miniciclos
expansivos, como tivemos no primeiro semestre deste ano, mas que não
atinge um ciclo sustentável. Note-se que isso é diferente de falar em
“década perdida”, como eu mesmo falei acima, por comodidade. Esta
expressão me parece otimista. Não perdemos uma ou duas décadas, vistas
isoladamente. Sofremos uma transformação que nos coloca em uma nova
condição estrutural.
Outra modificação importante, que altera a nossa sociedade, não
sabemos para onde, é a seguinte: ao longo do século XX, mesmo sendo
uma economia injusta, o Brasil foi uma sociedade que garantiu, na
média, mobilidade social ascendente. Um jovem casal brasileiro, típico
das décadas de 1940, 1950, 1960 ou 1970, podia olhar para trás e
dizer: “Vivemos melhor do que nossos pais e avós.” Ou: “Tivemos mais
escolaridade do que nossos pais.” Ou: “Temos acesso a uma cesta de
bens mais diversificada do que nossos pais.” Esse jovem casal também
podia dizer: “Esse processo deve prosseguir com os nossos filhos.
Provavelmente, vão estudar mais do que nós, terão acesso a uma cesta
de bens mais diversificada.”
Ao longo das gerações, na média, havia uma expectativa de ascensão
social, lenta porém visível. Para isso, vários elementos se
combinavam. Já me referi a um deles: o dinamismo da economia, que
absorvia gente nos setores modernos. Este – e todos os demais –
mecanismos que garantiram mobilidade social ascendente foram
destruídos nos últimos dez ou vinte anos: a indústria não emprega
mais, a escola pública mergulhou em crise, a fronteira agrícola foi
fechada, o Estado deixou de ser um pólo demandante de mão-de-obra. Um
jovem casal brasileiro já não diz mais: “Nosso filho terá mais do que
temos.” Ele diz: “Será que nós vamos ter o que temos – um simples
emprego, por exemplo – daqui a seis meses?” Nos transformamos em uma
sociedade produtora de insegurança e incerteza em larga escala, com um
futuro opaco, gerador de medos e de todo tipo de perplexidades. É uma
terceira mutação estrutural importante, que ainda não foi captada em
toda a sua extensão.
A ela, soma-se uma quarta. Em seus 500 anos de história, durante
470 anos o Brasil foi uma sociedade de maioria de população rural. O
primeiro censo demográfico que aponta equilíbrio entre as populações
rural e urbana – ainda com pequena predominância rural – é o de 1970.
O censo de 2000, no entanto, mostra a presença de mais de 80% das
pessoas nas cidades. Alteramos a distribuição da nossa população, de
forma rápida e brutal. Hoje, 40% da população brasileira vivem em
apenas nove aglomerados urbanos, as regiões metropolitanas, cada vez
mais ingovernáveis. Isto tem múltiplas conseqüências. Uma delas, para
não me estender demais: uma família que vive no campo, mesmo que seja
pobre, se tiver acesso a um pedaço de terra, tem a sua roça, a sua
casa, a sua criação, o seu pomar, a sua economia de trocas, tem
ocupação para todos os seus integrantes. Precisa de uma renda
monetária para comprar aquilo que não consegue produzir em sua própria
economia natural. A base principal da sua sustentação vem do
intercâmbio com a natureza, mediado pelo trabalho direto, e das
relações de vizinhança. Quando essa família deixa o campo e se instala
na cidade, rompem-se suas relações com a economia natural. Ela
mergulha inteiramente no mundo do mercado: na cidade, ninguém tem roça
ou criação, e freqüentemente as pessoas não têm nem a casa em que
moram. Precisam obter renda monetária para satisfazer todas as suas
necessidades. Essa renda, na cidade, quase sempre exige a mediação de
um emprego.
Percebam a contradição: no mesmo período histórico, o Brasil se
transforma em uma economia de baixo crescimento, que não gera emprego.
Rompe os mecanismos de ascensão social, de modo que, salvo uma ou
outra exceção – o Ronaldinho, a Tiazinha, o Ratinho, Zezé di Camargo e
Luciano, por exemplo –, quem nasce pobre, será pobre. E onde estão
esses pobres? Agora estão concentrados em grandes cidades,
completamente imersos em uma economia mercantil. É uma extraordinária
mutação, muito recente, cujos efeitos mal começaram a aparecer.
* * *
Poderíamos apontar outras mutações estruturais importantes e
relativamente recentes, que se somam para formar esse novo país, ainda
pouco compreendido. Houve, por exemplo, o fechamento da fronteira
agrícola, com a reprodução, nas “áreas novas”, de uma estrutura de
propriedade agrária ainda mais concentrada que nas “áreas velhas”.
Eliminou-se assim um espaço de manobra tradicional da sociedade
brasileira, que permitia uma espécie de “fuga para a frente” no
território, e o conflito pela terra se nacionalizou.
Houve também uma profunda mudança na forma de socialização da
pessoas, especialmente crianças e jovens. A forma de socialização hoje
predominante não passa mais, principalmente, pela escola, a família, a
comunidade, a paróquia – esse conjunto de instituições, digamos assim,
locais e tradicionais. Passa pelos meios de comunicação de massa. Isso
altera profundamente a formação das pessoas. Pode-se ver isso, em
primeiro lugar, através da própria linguagem. Tempo, na televisão, é
dinheiro. A televisão tem de ser rápida, sua linguagem está dominada
pelo signo da velocidade. Por outro lado, ela fala sempre para
milhões. Sua mensagem tem de ser simples, sem nuances, sem grandes
explicações, sem contextualizações, não pode ser sofisticada. Ora,
para falar de maneira rápida para milhões, não se usa principalmente a
razão, mas sim a emoção. A palavra cede a vez à imagem como veículo de
transmissão, não mais de idéias, mas de sensações, hábitos, desejos,
sentimentos, vontades, impulsos, tendo em vista, antes de mais nada,
estimular o consumo. Nessa sociedade de baixo crescimento, urbanizada,
sem mobilidade social, inocula-se diariamente, maciçamente, uma enorme
compulsão ao consumo não mediada pela linguagem e a consciência, não
mediada pelo contato humano, da família, da igreja, da escola,
daquelas instituições que trabalham em escala local, minimamente
acessível.
Tudo isso formou um vulcão. Pelo menos desde o fim do escravismo,
nunca os diversos componentes da nação viveram situações tão desiguais
e tiveram interesses tão conflitantes. Depois de mais de dez anos de
experimento neoliberal, uma parte minoritária da sociedade brasileira
efetivamente alterou seus padrões de consumo, suas expectativas e seus
valores, adotando os padrões, expectativas e valores – ou seja, a
visão de mundo – das populações afluentes do capitalismo globalizado.
Outra parte ainda deseja preservar certos direitos sociais abolidos ou
ameaçados, mantendo por isso alguma referência, ativa ou difusa, em
partidos de oposição, sindicatos, movimentos ou organizações não
governamentais. Mas a maioria do nosso povo foi, simplesmente,
desligada desses processos. Formaram-se grandes contingentes humanos
de que o capitalismo não necessita. Sobrevivem no desemprego, no
subemprego, na economia informal, em atividades sazonais, incertas ou
ilegais. Por insistirem em sobreviver, apesar de tudo, e por estarem
relativamente concentrados, ameaçam. E, de alguma forma, se organizam.
São dezenas de milhões. Mas, até aqui, não se tornaram agentes da
transformação social, na qual são os maiores interessados. Formam o
ponto cego de qualquer alternativa transformadora. Mesmo assim,
contrariando as aparências e o pessimismo de muitos, nunca o povo
brasileiro ocupou uma posição potencialmente tão forte. Essas
multidões concentradas em grandes cidades, com acesso a informação e
sem alternativas dentro do sistema atual são – em tamanha escala – um
fenômeno novo em nossa história. Quando se levantarem, tudo tremerá.
* * *
Creio ter ficado claro que nossa crise não é apenas, nem
principalmente, econômica, muito menos conjuntural. Fomos lançados em
trajetória em que a situação “normal” é a de uma crise disseminada e
crônica, que de tempos em tempos se torna aguda ou mesmo dramática. É
ilusório imaginar que uma sociedade possa ingressar em um período
histórico com tais características sem enfrentar turbulências de
grande monta. Por mais que se esforcem para generalizar sua visão de
mundo, as classes dominantes não afastam as indagações que as pessoas
fazem, temerosas, sobre o perigoso presente e o incerto futuro que
pressentem para si e para seus filhos. Eis a face mais evidente da
crise: as pessoas já sabem que é preciso mudar, mas ainda não sabem
como e para onde mudar. A necessidade de transformar as circunstâncias
vigentes é clara, mas o caminho para isso permanece indefinido. Sem
ter sido tomada, a decisão de mudar fica pendente, mas a necessidade
de tomá-la não desaparece. Nesse contexto, o próprio discurso
conservador só pode legitimar-se como um discurso de “reformas”.
Falando de modo simplificado, três grandes campos – o que não quer
dizer três partidos, ou três candidatos – se enfrentarão nos próximos
anos, oferecendo suas soluções. O primeiro deles é representado,
abertamente, pelas forças da situação, promotoras das reformas
neoliberais. Elas não têm mais a ampla hegemonia que tiveram há alguns
anos, mas mantêm o controle sobre o aparelho de Estado e contam com
fortes apoios entre os “de cima”, dentro e fora do país. Embora com
dificuldades, seu projeto segue adiante, tendo agora como horizonte
não apenas a implantação dessas “reformas” – em grande parte, já
implantadas –, mas também a criação de mecanismos legais e
instituições que impeçam a reversão delas e eliminem ao máximo a
margem de manobra de qualquer futuro governo. Se esse campo tiver
êxito, ficaremos com a herança de uma sociedade mais dependente e mais
dividida, vivendo sob uma democracia ainda mais restringida. Uma casca
de democracia, vazia por dentro.
Um segundo campo centraliza suas atenções na necessidade de
promover alterações na política econômica, sob a forma de juros mais
baixos, maiores incentivos aos setores produtivos, menor obsessão com
a estabilidade monetária, e assim por diante. É a parte mais visível e
mais ampla da oposição, aquela que conta com maior espaço
institucional e maior cobertura da imprensa. Talvez já tenha hegemonia
sobre a sociedade, embora ainda não controle o aparelho de Estado.
Dependendo da evolução da conjuntura, essa oposição, perfeitamente
integrada às regras do jogo, pode transformar-se na alternativa
preferencial da classe dominante, como ocorreu em outros países. Pois
os centros mais importantes do capitalismo mundial – como o governo
dos Estados Unidos, o Banco Mundial e o FMI – há muito tempo
perceberam que o modelo neoliberal provoca grandes instabilidades nas
economias e agrava a questão social. Sabem que o pêndulo não pode
oscilar indefinidamente em uma mesma direção. Feitas as “reformas”,
muitas vezes o próprio capitalismo passa a necessitar de políticas
mais moderadas, que não questionem seriamente as novas estruturas, mas
possam introduzir correções de rota e estabelecer mediações mais
eficientes com as sociedades. Até aqui, são frustrantes as
experiências em que esse “segundo campo” chegou ao poder na América
Latina, como ocorreu no Chile e na Argentina. Sua trajetória tem sido
centrípeta em relação ao modelo neoliberal.
* * *
Uma terceira alternativa é defendida pelos que tentam colocar-se à
altura da crise de destino que nossas sociedades atravessam. Estes
centram sua preocupação programática em uma alteração do sistema de
poder. É onde se coloca o Movimento Consulta Popular. Sua elaboração,
que não se reduz a fórmulas econômicas, passa por, pelo menos, três
níveis sucessivos. O primeiro é a proposta de novas referências
culturais e políticas para a sociedade e para a ação do futuro
governo. Nesse nível, trata-se de disputar o quadro ideológico de
referência, que forma o pano de fundo diante do qual a sociedade
legitima ou deslegitima a priori as diversas propostas. O campo hoje
dominante se expressa em um conjunto de expressões formadoras do senso
comum e portadoras de certos tipos de valores: competitividade,
modernização, globalização, Primeiro Mundo, tecnologia, sucesso,
marketing, etc. Precisamos propor um outro imaginário – amplo, claro e
simples, não doutrinário, facilmente apropriável pela militância e o
povo –, que redefina os compromissos fundamentais da sociedade consigo
mesma. Embora ainda genéricos, esses compromissos são muito
importantes para que superemos a hegemonia da visão de mundo associada
ao neoliberalismo. A nosso ver, eles são:
(a) o compromisso com a soberania, que afirma a nossa determinação
de dar continuidade à construção da nação, rompendo com a dependência
externa e dando ao Brasil um grau suficiente de autonomia decisória;
(b) o compromisso com a solidariedade, pois a continuidade da
construção da nação só pode se dar em novas bases, com absoluta
prioridade para as ações voltadas para eliminar a exclusão social e a
desigualdade na distribuição da riqueza, da renda, do poder e da
cultura;
(c) o compromisso com o desenvolvimento, que expressa a decisão de
pôr fim à hegemonia do capital financeiro e à nossa condição de
economia periférica, com a mobilização de todos os recursos
disponíveis (terra, capacidade de trabalho, potencial científico e
tecnológico, etc.);
(d) o compromisso com a sustentabilidade, que exige um novo tipo
de desenvolvimento, não baseado na cópia de modelos socialmente
injustos e ecologicamente inviáveis;
(e) o compromisso com a democracia ampliada, que fala da
necessidade de refundação do sistema político brasileiro em novas
bases, amplamente participativas, de modo que o povo possa controlar
de fato os centros de decisão em todos os níveis.
Esses cinco compromissos são solidários entre si. Formam uma
unidade indissolúvel. São o ponto de referência para o programa e as
decisões que, a partir dele, tivermos de tomar. Para realizá-los, é
necessário, evidentemente, alterar o sistema de poder que comanda o
Brasil. Nesse segundo nível de formulação fica clara a diferença entre
este terceiro campo (o campo popular) e o segundo (o campo da oposição
burguesa). Esclareçamos este ponto.
Detêm o poder aqueles grupos que controlam recursos e instituições
decisivas na organização da vida social. Graças a esse controle,
conseguem fazer com que a sociedade funcione de forma subordinada aos
seus interesses. Alterar o sistema de poder é transferir esses
recursos e instituições a outros grupos sociais, o que, para nós,
significa democratizá-los. A pergunta, então, passa a ser: o que
precisaria ser rapidamente democratizado no Brasil para alterar a
correlação entre as forças sociais e dar início a uma reorganização da
sociedade, de modo retirá-la de sua crise estrutural? A nosso ver,
quatro coisas:
(a) Precisaremos democratizar a terra, que é o principal recurso
natural do país. É espantoso o grau de concentração: menos de 1% dos
proprietários (que têm latifúndios de mais de mil hectares) controlam
44% da área agricultável, enquanto 53% (que têm propriedades de menos
de dez hectares) não chegam a controlar 3%. Não estão computados aí os
trabalhadores rurais sem nenhuma terra, que se contam aos milhões.
Bancos, empreiteiras, grandes grupos industriais, todos sem vocação
para a agricultura, têm milhões de hectares. Essa alta concentração
resulta em um baixo uso da terra: na média brasileira, estão ocupados
com lavouras apenas 14% das áreas agricultáveis. Democratizar a terra
é torná-la fonte de empregos, alimentos e renda. E é também
democratizar o poder, pois na maior parte do país quem tem a terra tem
o poder.
(b) Precisamos democratizar a riqueza, especialmente, em um
primeiro momento, aquela que está sob a forma financeira, pois ela
define a alocação de recursos no futuro imediato e assim comanda a
principal força produtiva disponível da sociedade, o trabalho. Também
aqui, o nível de concentração é enorme (e crescente). Dez bancos
controlam 72% dos ativos financeiros e 76% dos depósitos totais do
país. Nos últimos anos, os bancos estrangeiros aumentaram sua
participação de 14% para 45%. Frouxamente regulamentado e amplamente
dominado por atividades especulativas, esse sistema – poderoso,
extenso e moderno – não mobiliza recursos para o investimento
produtivo, especialmente o de longo prazo, nem apóia as famílias, os
trabalhadores ou as pequenas e médias empresas. Funciona como parasita
do desequilíbrio financeiro do setor público e contribui para deixar a
economia mais vulnerável aos choques externos, dadas as suas
crescentes ligações com o capital especulativo internacional e os
paraísos fiscais. Para democratizar a riqueza, será necessário
aumentar a oferta de financiamento aos investimentos produtivos
prioritários e ampliar dramaticamente o acesso ao crédito. E, para
defender a economia nacional, será preciso controlar a movimentação da
riqueza financeira. Ambas as necessidades exigem que o Estado assuma o
controle desse sistema.
(c) Precisamos democratizar a informação, que, como vimos,
determina a formação de opiniões e valores, desempenhando assim um
papel central na organização social e política. Em nível nacional,
apenas seis grupos recebem quase 90% do faturamento dos meios de
comunicação de massa, o que indica o grau de cartelização do setor. Na
maior parte do Brasil, a situação mais comum é a de monopólios
regionais que associam em uma mesma família, ou grupo, a propriedade
de praticamente toda comunicação de massas, o controle da política
local e os cargos de representação nos níveis estadual e federal. Por
outro lado, a submissão dos meios de comunicação à lógica das
mercadorias – pois estão organizados como empresas capitalistas
privadas – faz com que a informação, a cultura e a política se
submetam crescentemente à mesma lógica, formando-se uma corrente
multiplicadora de cinismo, vulgarização e mediocridade. Para libertar
o potencial criador da sociedade, estabelecer autenticidade na
comunicação, garantir o pluralismo e difundir valores construtivos do
processo civilizatório, a rede de televisões e de rádio deve ser
reorganizada na forma de um espaço público, predominantemente nem
governamental nem privado.
(d) Precisamos democratizar a cultura, elemento decisivo na
construção da cidadania. Cerca de 15% de brasileiros com mais de
quinze anos são analfabetos. Se, a eles, somarmos os chamados
analfabetos funcionais – pessoas que escrevem o próprio nome, soletram
palavras, mas não conseguem escrever uma carta ou ler um pequeno
artigo – chegaremos a uma percentagem difícil de precisar, mas de todo
modo assustadora. Alguns falam em mais de 50%, outros em 70%. O maior
patrimônio de um país é seu próprio povo, e o maior patrimônio de um
povo é sua cultura. É a cultura que lhe permite expressar melhor
conceitos e sentimentos, explorar as potencialidades de sua língua,
reconhecer sua identidade, exigir mais direitos, aumentar sua
capacidade de organização, comunicar-se melhor consigo mesmo e com
outros povos, aprender novas técnicas, ter acesso ao que de melhor a
humanidade produziu na ciência e na arte. Eis a quarta democratização
necessária, que exige transformar a disseminação do aprendizado em
prioridade nacional, revitalizar a escola pública, devolver dignidade
ao ofício de ensinar, incrementar um processo intensivo de estímulo à
criação e à difusão do saber, para que os avanços mundiais da ciência
e da técnica sejam assimilados, reprocessados internamente e
integrados em um acervo nacional de conhecimentos e práticas.
* * *
Na década que se inicia – e já nas eleições presidenciais que se
aproximam – a esquerda terá de optar entre dois posicionamentos
fundamentais. O primeiro é integrar-se à segunda alternativa à que nos
referimos mais acima (baseada na proposta de alteração de aspectos da
política econômica e na adoção de certas políticas sociais
compensatórias pelo Estado), tentando obter a maior influência
possível em uma coligação que pode vir a ser uma alternativa das
próprias elites. Muitas lideranças e correntes defendem esse caminho
de forma explícita, ou quase explícita. Ele abre portas, cria
facilidades. É, sem dúvida, mais cômodo. Considera-se, nesse caso, que
a crise brasileira é antes de tudo uma crise do Estado, devendo ser
tratada e resolvida nesse âmbito.
O segundo posicionamento estratégico nos conduz a organizar uma
alternativa popular, que recoloca na ordem do dia a necessidade de
alterar o sistema de poder, realizar mudanças estruturais e questionar
a herança (interna e externa) deixada pelos neoliberais. Considera-se,
nesse caso, que a crise do Estado se subordina a uma crise maior, que
envolve a forma de organização da sociedade como um todo, e cuja
superação é necessária para reverter a rota de degradação da nação.
Esta é a nossa opinião.
Ambas as posições não se excluem completamente: os adeptos do
segundo campo – chamados “moderados” – podem falar em reformas
estruturais, enquanto nós também defendemos alterações na política
econômica, como veremos abaixo. Mas a predominância de uma opção ou de
outra demarca caminhos bem diferentes. A principal diferença é a
seguinte: se limitarmos nossa proposta a alterações nas políticas de
governo, estamos dando às elites a garantia de que seu sistema de
poder não será questionado. É como se um general declarasse que deseja
derrotar o exército inimigo, mas não pretende retirar dele seus fuzis,
seus tanques e sua aviação de combate, nem desmobilizar suas tropas,
nem desorganizar sua cadeia de comando. A proposta dos “moderados” é
assim: as elites “derrotadas” continuarão controlando os recursos e
instituições mais importantes da sociedade. Poderão perder um pouco
aqui e ali. Porém, mantendo o controle da terra, da riqueza, da
informação e da cultura, manterão a capacidade de organizar e comandar
a vida social, conservar-se fortes e organizadas, impor limites,
reagir, exigir concessões e, finalmente, vencer. Tem sido assim ao
longo da nossa história.
Muito obrigado.
1. Palestra, realizada em debate em Porto Alegre, auditório da UFRGS,
junho 2001.
* César Benjamin é co-autor de A opção brasileira (Rio de Janeiro,
Contraponto, 1998) e membro da coordenação nacional do Movimento
Consulta Popular.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105310?language=en
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