Mutações
24/09/2001
- Opinión
Desde Kant é novo o nosso horizonte. A torre das igrejas deslocou-se
para os edifícios dos bancos e as catedrais cederam lugar aos
shopping-centers com linhas arquitetônicas de templos futuristas.
Já não se trata de acumular graças no Céu e sim juros bancários; a
remissão transfere-se do confessionário para o divã do psicanalista;
os índices do mercado ressoam mais alto que os oráculos divinos.
A natureza, enfim, foi dessacralizada e, com ela, todas as obras
culturais. O que a lenta e implacável erosão do tempo não logra
desfazer, num piscar de olhos tratores e dinamites derrubam, implodem
e pulverizam. Gaia é estuprada na mesma proporção que o nosso olhar
consome a exuberância de nádegas protuberantes, nesse desaprender
incessante de discernir o belo e pensar com a cabeça.
Nada parece resistir ao império da razão, despida de mitos e utopias.
O único eixo é a economia, e a pessoa só importa enquanto ser
produtivo ou revestida dos adornos de fama e fortuna. O resto -
ilusões, fantasias, valores, espiritualidade - fica relegado à esfera
privada. Lá no recôndito do lar ou do coração podemos nos imaginar
super-homens ou encarar a própria mesquinhez.
A cada dia, multiplicamos os pequenos assassinatos. A síndrome
penitencial acaba vencida por seu único antídoto: a liberdade de
consciência. Já não devemos nos sentir culpados de nossas culpas nem
arcar sobre os ombros a redenção universal. Arcaismos
contemporâneos.
Se somos livres e a consciência é a nova rainha que nos liberta dos
castigos celestiais e dos temores infernais, por que esperar além do
que nossas mãos podem fazer? Um moinho vale mais que mil palavras. E
de que vale regar os campos com água-benta se o adubo químico produz
cem por um? Adeus a Deus.
Não nos basta sentir o perfume das mangas. Estendemos as mãos,
rasgamos a casca com os dentes e desfrutamos da polpa dourada,
cremosa, cujo sumo pinga entre dedos, palmas, pulsos e braços,
açucarando o paladar. Mas, se temos pressa, a voracidade amarga o
prazer.
Nisto se resume nossa atitude mais frontal: a árvore esquartejada nos
dá bancos e mesas; o curso do rio desviado propicia irrigação; o
ventre aberto da terra aborta minérios preciosos. No entanto, como é
difícil ser próximo do próximo! Misteriosos os subterrâneos de nosso
próprio ser... Tanta cultura, tantos propósitos e, súbito, a emoção
liberta a fera, lima as unhas, afia a língua e ficamos reduzidos a um
saco de carnes, ossos e músculos que vomitam impropérios.
Somos como o barco que, ao sabor das ondas, ignora a riqueza que se
esconde sob as águas. Outrora tudo parecia mais sedutor à nostalgia
que perfura o peito qual saudade atávica: os cultos primitivos que, a
cada manhã, reinventavam o Sol e, à noite, distribuíam as estrelas
pelos céus; os livros sagrados que nos apontavam as veredas da
transcendência e da profundência, e nos familiarizavam com as vozes
inaudíveis dos deuses; a filosofia que tudo organizava em seus
conceitos, como se o sentido fosse apenas uma questão de mecânica; os
símbolos que nos remetiam a premonições e revelações, maldições e
profecias, no espaço imponderável de nossas crenças; o vasto
reservatório de evidências que oferecia uma explicação para cada
indagação (ainda que a pergunta fosse tão absurda quanto a
possibilidade de resposta).
Enquanto Descartes não nos ensinou a pensar, quando crer era tão
cômodo, a vida não carecia de sentido: o badalar dos sinos, o cheiro
de incenso, os lábios ascendentes das curvas góticas, o promíscuo
bailado dos anjos. O rio corria preso a seu leito, os galos cantavam
o alvorecer, o trigo jamais se confundia na procedência da flor, da
espiga e do grão. O vinho trazia o gosto de pés cobiçados, o pão era
abraçado por seios fartos, a carne assada na lareira aquecia o sangue
e o sexo.
Agora, tudo gira em torno dessa premência de colher o trigo, preparar
a massa, assar o pão, afiar a faca, deixar o leite gordo adensar-se
em manteiga e comer. Abrir sulcos na terra salpicando-a de óleo, o
galpão entulhado de máquinas, no lucrativo movimento de transformar o
algodão em tecidos.
Na antiga aldeia cruza a rota do mercado e, nela, as carroças dão
passagem aos caminhões. A paisagem quebra-se encoberta por edifícios
que arranham os céus, o frescor da manhã volatiliza-se na fumaça
espessa, os telefones frenéticos encurtam distâncias e tornam agora o
que seria depois. Premissas pós-modernas.
Não seria hora de condicionar o progresso das coisas à felicidade da
gente e, ao menos, admitir que o Criador crê em sua criatura?
https://www.alainet.org/pt/articulo/105320
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