Que mundo é este?
18/09/2001
- Opinión
Uma mesma geração pôde viver dois períodos históricos radicalmente
diferentes. Quem completou vinte anos nos sessenta do século XX, passou
de uma das décadas mais abertas para outra, trinta anos depois – quando
já chegava aos cinqüenta anos – que parecia das mais fechadas. Do “Seja
realista: peça o impossível” dos muros de Paris para o “There is no
alternative”, o famoso TINA da senhora Thatcher, passou um mundo.
Como essa passagem tão rápida foi possível? O que mudou tão
profundamente no mundo? Quais as razões para essa mudança tão brusca?
A humanidade já havia vivido passagens radicais, porém movidas por
grandes convulsões, como aquela introduzida pela primeira guerra mundial
ou pela crise de 1929. Nelas alterou-se bruscamente a relação de forças
entre as principais forças em conflito, numa ou noutra direção,
impulsionadas pela eclosão do enfrentamento bélico aberto entre as duas
coalizões imperiais e pela – até aqui – maior crise econômica do
capitalismo.
O mundo pré-guerra de 1914 – é bom lembrar: a última das guerras,
segundo a propaganda da época, a guerra para acabar com todas as
guerras... – foi substancialmente modificado com a derrota da Alemanha e
o começo da ascensão dos EUA, para além de sua expansão já em curso na
América Latina, desde a guerra contra a Espanha, ocupando o espaço
deixado livre pela decadência britânica. Além, é claro, de um de seus
efeitos colaterais não desejados: o triunfo da revolução russa. Da
euforia do crescimento que se pretendia ilimitado, sob o impulso do
desenvolvimento científico e das grandes inovações tecnológicas, passava-
se à barbárie bélica entre as potências que se consideravam as mais
civilizadas da época, com os milhões de mortos na guerra de baionetas,
cara a cara.
Nos seus desdobramentos, aquela conjuntura provocou uma situação de
impasse na Alemanha, duramente penalizada na sua condição de perdedora,
gerando o cenário para soluções radicais à sua crise. A derrota do
movimento espartaquista de Rosa Luxemburgo – reprimido pela social
democracia – abriu o campo para que a outra alternativa radical
galvanizasse o país: o nazismo de Hitler. Aquele novo marco político
levaria à humanidade à segunda guerra ou melhor, ao segundo rounde da
mesma prolongada guerra inter-imperialista prognosticada por Lênin em seu
“O imperialismo, etapa superior do capitalismo”.
Outra virada brusca – que, combinada com esta, delineou o novo
período de guerra – foi aquela produzida pela crise de 1929. O
diagnóstico consensual das responsabilidades do liberalismo pela crise
levaram a que se configurasse um campo de disputa situado todo ele no
campo do anti-liberalismo entre o socialismo soviético, o keynesianismo e
o fascismo. Da euforia do clima festivo dos anos 20, como ressaca do
susto da guerra (a “última”), passou-se à depressão – econômica e
psíquica – da década de 30. A guerra acabou definindo o novo cenário, com
a derrota das últimas alternativas e o triunfo das duas primeiras, que
passaram a disputar a nova hegemonia mundial, no mundo bi-polar do
segundo pós-guerra.
Foi nesse período que se consolidaram os grandes fenômenos que se
estavam gestando nas décadas anteriores: a consolidação da hegemonia
norte-americana no bloco capitalista, a extensão do então chamado “campo
socialista” para cerca de um terço da humanidade, o aparecimento do
denominado Terceiro Mundo, fortalecido pelo final dos impérios coloniais
na África e na Ásia e pela industrialização de países latino-americanos.
Escalada militar entre as duas super-potências, revolução cubana, guerra
do Vietnã, movimentos rebeldes dos anos 60 na Europa, nos EUA, no Japão e
na América Latina, a morte do Che, a invasão da Checoslováquia, os
Beatles, a pílula, a teologia da libertação, o boom literário latino-
americano – só para citar alguns casos, protagonizaram uma época em que o
“assalto ao céu” parecia possível, pelo debilitamento da capacidade
hegemônica dos EUA e da URSS para manter o mundo sob controle com seus
acordos de grandes potências.
O período histórico atual nasce daí – do triunfo dos EUA sobre a
URSS, da desarticulação do chamado Terceiro Mundo – cujo detonante pode
ser localizado na crise da dívida – e do surgimento de um cenário com uma
única super-potência. Ao mesmo tempo se deu a transição do modelo
hegemônico keyseniano – “Somos todos keynesianos”, chegou a dizer Richard
Nixon – ao modelo neoliberal – introduzido pela direita (Pinochet,
Reagan, Thatcher e incorporado pela social-democracia) com seu corolário
de hegemonia do capital financeiro.
O mundo da chamada globalização surgiu das ruínas do Terceiro Mundo
e da URSS. Impõe-se a hegemonia norte-americana como única super-potência
e, ao mesmo tempo, com o desaparecimento do horizonte histórico do
socialismo como alternativa anti-capitalismo, o islamismo foi se firmando
como o anti-americanismo. Polarizou-se assim o cenário político e
ideológico mundial entre dois fundamentalismos – o religioso e o de
mercado. Os que lutam por um outro mundo – cujas mobilizações afloraram à
superfície em Seattle têm em Porto Alegre seu lugar de formulações
estratégicas – buscam libertar a humanidade dessa espiral de terror,
buscando abrir espaço para um mundo sem fundamentalismos, baseado na
solidariedade, na cooperação e na resolução pacífica dos conflitos.
As passagens de período não são fácies de caracterizar. Apreender
o novo é muito mais difícil do que dar-se conta de que algo envelheceu.
Este processo se dá como continuidade do existente, enquanto que o novo
amadureceu na surdina, de forma fragmentada, por meio de sinais,
indiretamente, de forma obliqua, muitos desses sinais apontavam para
outra coisa, alguns se condensaram, catalizados por algo que surge quase
que inesperadamente.
Giovanni Arrighi recorda como o clima de debate intelectual, não
apenas na esquerda, nos anos setenta era tomado pela tema do fim do
capitalismo, cujos prazos e forma eram debatidos abertamente. Os
economistas soviéticos, por sua vez, nos anos trinta, depois de terem
prognosticados a crise final do capitalismo, tiveram que introduzir fases
nessa crise, para dar conta da capacidade de sobrevivência desse tipo de
sociedade: fase segunda da crise geral do capitalismo, etc., etc. O fim
do regime socialista cubano foi previsto pela grande mídia – com as
câmaras se transferindo do leste europeu para Havana em 1989 – e em
livros, que tiveram que mudar de título e de capa, com a sobrevivência do
Estado cubano à sua própria morte anunciada.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105354
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