A ótica míope do fundamentalismo
21/10/2001
- Opinión
As ideologias foram supostamente derrubadas com a queda do Muro de
Berlim. Agora, com a destruição das torres do WTC emergem as
teologias. Nunca se venderam tantos exemplares da Bíblia e do Alcorão
no Ocidente. Desde o fim da Idade Média, não se recorria tanto à
linguagem religiosa para justificar, de um lado, o terrorismo de face
oculta; de outro, o de rosto estatal.
É como se a racionalidade moderna naufragasse, de repente, em sua
própria incapacidade de encarnar-se em atos humanos. Pensamos o que
não ousamos fazer, fazemos o que podemos justificar, queremos o que
não convém à razão ética. Assim, a modernidade, sobretudo na esfera
política, torna-se vítima de seu próprio paradoxo. Quem fala em
democracia instaura ditadura; quem promete assegurar a paz faz a
guerra; quem professa o nome de Deus não O reconhece na face do
semelhante; quem aspira por um mundo melhor não ousa admitir a
transformação da realidade atual.
Súbito, a contradição atinge o seu limite. O elástico rompe-se,
alterando o equilíbrio de forças. E o resultado é este cenário de
insensatez generalizada. Enquanto os terroristas fazem da vingança
seu gesto de protesto, sacrificando milhares de inocentes, o
terrorismo de Estado, na falta de um alvo preciso no qual atirar,
mobiliza exércitos para, na caça a um homem, disseminar a morte numa
das regiões mais pobres do mundo. Pobreza, aliás, causada pelos
agressores, cujo poder e riqueza jamais foram usados para levar
prosperidade àquele povo.
Uma das conquistas da modernidade foi separar religião e política. O
Estado, agora, é laico, e as religiões não têm o direito de pretender
confessionalizar a esfera pública, malgrado eventuais abusos de ambos
os lados.. Tal direito só é desrespeitado em países que permanecem
aquém da modernidade. No Brasil, por exemplo, partidos confessionais,
como o PDC, nunca plantaram raízes, e apesar da reação da Igreja
católica, o divórcio é legal e o governo distribui preservativos para
reduzir os casos de Aids.
A modernidade corre o risco de retrocesso quando emergem os
fundamentalismos. Ele consiste em interpretar literalmente os textos
religiosos, seja a Torá, os Evangelhos ou o Alcorão. Recordo as aulas
de catecismo que negavam as teorias de Darwin, tentando nos inculcar
que somos mesmos descendentes diretos do senhor Adão, casado com a
senhora Eva, sem que os catequistas se dessem conta de que Adão, em
hebraico, significa terra, e Eva, vida.
O fundamentalista faz uma leitura míope dos livros sagrados e da
realidade, aplicando a primeira à segunda. Lê o texto fora do
contexto, como se a Bíblia tivesse a pretensão de normatizar, não
apenas a ética que rege todas as dimensões da vida, inclusive a
pesquisa científica, mas também dados científicos específicos. O
fundamentalista não sabe que a linguagem simbólica da Bíblia, rica em
metáforas, recorre a lendas e mitos para traduzir o ensinamento
religioso. Por isso, acredita que a Arca de Noé anda perdida em
alguma região da Turquia, e que os cursos de idiomas existem graças
ao castigo divino aos construtores da Torre de Babel.
O mais grave é que o fundamentalismo julga-se tão portador da verdade
quanto sua hermenêutica do texto lido por sua ótica equivocada. Não
admite críticas, considerações ou contribuições de outras correntes
religiosas ou científicas. Como se só ele entendesse a vontade de
Deus. E todos que com ele não concordam são tratados como infiéis,
heréticos ou excomungados. Enfim, ele se arvora em paradigma
universal. Dialoga por gentileza, não por interesse em também
aprender; ouve para munir-se de mais argumentos contra o
interlocutor; finge-se de tolerante para reforçar sua convicção de
que o outro merece, como infiel, ser queimado na fogueira da
Inquisição, das torres de NY ou dos mísseis atirados no Iraque e,
agora no Afeganistão, convencido de que só a sua verdade haverá de
prevalecer.
Se estudasse Apel e Habermas, o fundamentalista descobriria a
reciprocidade dialógica universal. Se conhecesse melhor os
ensinamentos dos Profetas, de Jesus e de Maomé, veria que o amor
consiste em não fazer da diferença divergência.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105379
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020