Páscoa - a vida como dom maior
13/04/2006
- Opinión
Celebrar a Páscoa é reafirmar a nossa fé na ressurreição de Cristo e na
própria ressurreição de todos os nossos projetos de justiça. No entanto,
sabemos que a morte é a única coisa certa na vida. A postura que temos
diante da morte traduz o sentido que damos à vida. Outrora, a morte
incorporava-se ao nosso cotidiano: morria-se em casa, cercado de parentes
e amigos. Em Minas, havia velório com pão de queijo e cachaça,
carpideiras, missa de corpo presente e despedidas no cemitério. Em suma,
celebrava-se o rito de passagem.
Hoje, o enterro tornou-se mais um produto de consumo. Morre-se
clandestinamente, num leito anônimo de hospital ou nas gavetas de um
necrotério, como se o falecido fosse uma presença tão incômoda quanto um
gato numa loja de cristais. Não há choro nem vela, nem fita amarela.
Em tudo, há começo, meio e fim. No entanto, nossa racionalidade, tão
equipada de conceitos, esvai-se nos limites da vida. Só a fé tem algo a
dizer a respeito desta fatalidade. Se Cristo não houvesse ressuscitado,
afirma são Paulo, nossa fé seria vã. Mas a vitória da vida sobre a morte
arranca da injustiça o troféu da última palavra. No ocaso da existência -
lá onde toda palavra humana é inútil alquimia - Deus irrompe como um
teimoso posseiro. E, como no amor, não há nada a dizer, só desfrutar.
Na América Latina, morre-se antes do tempo. De cada 1.000 crianças
brasileiras nascidas vivas, 36 morrem antes de completar um ano. Aqui, a
morte não é uma possibilidade remota. Ela nutre o sistema econômico. Sem
privar milhares de brasileiros de possibilidades reais de vida, não seria
possível entregar aos credores internacionais US$ 2 bilhões por mês!
Tira-se tudo isso dos minguados salários dos trabalhadores, através de
cirurgias assassinas eufemisticamente denominadas "ajustes estruturais ou
fiscais". Mata-se à prestação, lenta e cruelmente, como se o direito à
vida fosse um luxo.
A morte é, pois, uma questão política, assim como a esperança, centrada
no mistério pascal, move a nossa luta pela vida, dom maior de Deus. O
Brasil detém o vergonhoso título de campeão mundial de acidentes de
trabalho (1 milhão por ano) e de trânsito (50 mil mortos por ano). Ora, a
ressurreição de Cristo não significa apenas que do outro lado desta vida
encontraremos a inefável comunhão de Amor. Diz respeito também à vida
nesta Terra. "Vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância"
(João, 10, 10). Não haverá vida em abundância senão pela via das
mediações políticas, como a distribuição de renda, a reforma agrária e o
investimento em educação e saúde.
* Frei Betto é escritor, autor de Batismo de Sangue (Casa Amarela), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105677
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